(ROMANCE : ENQUANTO AGONIZO)
“além de ser um clássico da literatura norte-americana, é considerado um dos cem melhores romances em inglês do século XX”
O FLUXO DE CONSCIÊNCIA NA LITERATURA
William James, filósofo e psicólogo, norte-americano, foi quem primeiro teorizou o chamado fluxo de consciência, que definia como se dava esta característica contínua de nossos pensamentos, sua intercalação imprevisível, que se define, sobretudo, como fluxo, e que teve uma influência intensa na literatura moderna do século XX, com muitos herdeiros pós-modernos no século XXI. Historicamente, William James é o responsável pela expressão "fluxo de pensamentos" da psicologia, James usou esta expressão, primeiramente, no capítulo IX de seu livro "Princípios de Psicologia", proposta no fim do século XIX.
Na literatura, temos uma associação direta do fluxo de consciência com a técnica literária do monólogo interior ou interno, em que a narrativa simula ou imita este fluxo contínuo de pensamentos, refletindo numa forma ou estilo literário de orações extensas e sem pontuação ou exatamente parágrafos. Tal técnica do fluxo de consciência, em literatura, varia em sua aplicação de acordo com o autor, e ainda entre diferentes obras de um mesmo autor ou de vários autores. A narrativa pode tanto aparecer em primeira pessoa, como com uma terceira pessoa onisciente, em que este pode ter acesso total aos pensamentos do protagonista, por exemplo.
Na literatura, os principais expoentes desta técnica literária são James Joyce, da Irlanda, Virginia Woolf, da Inglaterra, T.S. Eliot, o poeta e editor, e William Faulkner (Faulkner que tematizarei aqui em seu romance “Enquanto Agonizo”), ambos dos Estados Unidos, e temos um grande monumento à memória em Marcel Proust, autor francês, em seus volumes de Em Busca do Tempo Perdido, e no Brasil podemos citar escritores como Clarice Lispector e Guimarães Rosa.
Temos outros autores conhecidos que herdaram a técnica do fluxo de consciência como Albert Camus, Hermann Hesse, J. D. Salinger, o dramaturgo Samuel Beckett (herdeiro direto de Joyce), William Burroughs e vários outros autores da geração beat, Milan Kundera, Julio Cortázar, e muitos autores do chamado Boom latino-americano. No Brasil, podemos citar, ainda, depois de Clarice e Rosa, o poeta Paulo Leminski e o romancista Graciliano Ramos.
Portanto, a literatura se apropriou da teoria de William James, e criou um tipo de ficção que coloca o psiquismo dos personagens em destaque, e que produz uma literatura psicológica que pode ser associada a esta ideia de James, mas também às descobertas sobre o inconsciente na psicanálise freudiana. Na literatura, o fluxo de consciência torna camadas mais profundas da mente em um tipo de pré-discurso.
Robert Humphrey escreveu um livro intitulado “O Fluxo da Consciência (um estudo sobre James Joyce, Virgínia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros)” em que delimita com precisão o papel do fluxo de consciência na literatura destes autores, ele nos diz : “podemos definir o fluxo de consciência ficcional como um tipo de ficção no qual a ênfase básica está na exploração dos níveis de consciência pré-discursivos, com o propósito, principalmente, de revelar o ser psíquico dos personagens.”
Os níveis pré-discursivos aqui tematizados podem ser definidos como algo que antecede o discurso verbal, num mundo mental em que não há censura e controle racional ou lógico. Humphrey demonstra um uso diferente do fluxo de consciência para a literatura, em que na ficção literária temos a fusão de um caráter psicológico originário, que agora se associa a um caráter epistemológico.
A vivência humana, na literatura do fluxo de consciência, aparece para além de uma atividade puramente mental, mas como testemunho de uma vida espiritual, onde aparecem as faculdades da intuição, da visão, e toda uma carga de histórias dos personagens, o que se reflete em seus estados mentais e espirituais, e que resulta neste grande edifício da literatura do fluxo de consciência erguido durante o século XX. O fluxo de consciência, na literatura, transforma o inconsciente em material discursivo e estético, com o uso de diversas técnicas verbais, alcançando este estilo literário o status de um verdadeiro objeto estético.
O fluxo de consciência foi utilizado primeiro, em literatura, por Édouard Dujardin em 1888, e temos que, ao fim, diferenciar o fluxo de consciência do monólogo interior, que já tinha sido utilizado, anteriormente, por autores como Dostoiévski e Tolstói. Por exemplo, Raskolnikov, do romance Crime e Castigo, de Dostoiévski, tem uma intensa vida mental, e conflitos psíquicos dolorosos.
O autor russo reúne o conhecimento científico de sua época e produz um personagem psicologicamente complexo e conflitante, que se julga num estado de superioridade moral e intelectual que se encontra subjugada na mediocridade de uma vida comum. Em Dostoiévski podemos dizer que o fluxo de consciência está em crisálida, num estado embrionário, com Raskolnikov temos mesmo é o monólogo interior.
Alguns autores informam que o fluxo de consciência é também o monólogo interior. Contudo, diversos autores separam os dois conceitos, em que o monólogo interior é uma camada da mente humana, e o fluxo de consciência vai mais fundo, como uma radicalização do monólogo interior, em que o leitor pode se colocar dentro do puro ato de pensar do personagem, em um fluxo imprevisível de pensamentos.
O ROMANCE “ENQUANTO AGONIZO” DE WILLIAM FAULKNER
O romance “Enquanto Agonizo” de William Faulkner, publicado em 1930, além de ser um clássico da literatura norte-americana, é considerado um dos cem melhores romances em inglês do século XX, pelo júri especializado da editora Modern Library (atual Random House). Faulkner produziu uma obra composta por dezenove romances e mais de setenta e cinco contos.
William Faulkner escreveu “Enquanto Agonizo” em oito semanas sem mudar uma palavra, e antes de escrever o romance, disse a si mesmo : “Eu vou escrever um livro graças ao qual, em caso de necessidade, eu possa me manter ou cair se eu nunca tocar na tinta de novo”. A única tradução disponível, no Brasil, deste romance, está na edição para livros de bolso da L&PM.
William Faulkner recriou o sul americano em toda sua decadência, com todas as implicações socioeconômicas da herança da Guerra de Secessão, nos apresentando um quadro vasto da condição humana, contudo, a partir de uma matéria simples, a vida comum em versão literária, ganhando contornos profundos de conflitos humanos mergulhados na demonstração destes personagens pelo fluxo de consciência, transformando a vida comum sulista norte-americana em um conflito psicológico que revela as entranhas da alma humana enfrentando diversas intempéries.
William Faulkner manipula com maestria as diversas vozes de diferentes personagens, com contrastes constantes, e nutrindo tudo isto com uma riquíssima capacidade de rememoração, que nos conduz na complexidade narrativa do fluxo de consciência até o desenlace do romance. Harold Bloom deu uma boa definição da força desta obra : “De todos os romances americanos do século XX, o que tem o começo mais brilhante é Enquanto Agonizo… o começo pressagia a originalidade do livro que mais surpreende de seu autor.”
“Enquanto Agonizo” é um título retirado da Odisseia, de Homero, que começa com o fim trágico da matriarca da família Bundren, no início deste romance já sabemos que ela está moribunda e que irá morrer, em que ela pede para ser enterrada em Jefferson, sua terra natal, ao lado de seus parentes. Então, seguimos a peregrinação dos Bundren até Jefferson e todos os conflitos e intempéries que eles enfrentam neste caminho.
A narrativa começa abruptamente num clímax, já com um corte seco, que vai desvelando, em seguida, feridas pretéritas dos personagens, com marcações de idiossincrasias de cada personagem, e o começo abrupto se resume no seguinte : alguém lamenta que uma mulher desistira de comprar uns bolos que foram encomendados. E isto poderia ter dado um mísero dinheiro para auxiliar a família Bundren no enterro da mãe, este é o começo de Enquanto Agonizo.
O romance pode ter uma certa aparência de narrativa epistolar, pois cada capítulo revela o monólogo de um personagem, contudo, aparecem relatos isolados e contrastantes, com cada visão particular de um personagem conflitando e contrariando outras. Cada capítulo leva o nome de um personagem e carrega uma versão da realidade, e a personalidade de cada um é delineada pelo "outro", pois nenhum deles fala de si mesmo.
Uma vez apresentados os personagens, o foco se volta ao mote e leitmotiv do romance, o caminho para Jefferson para enterrar a mãe, em que a família Bundren, mesmo sem dinheiro, parte em uma carroça que caía aos pedaços e enfrenta percalços e intempéries diversas como pontes caindo, incêndios e cavalos sendo levados pela correnteza. Não temos qualquer ideia de redenção neste romance, a penúria dos personagens revela um mundo embrutecido e sem perspectiva de superação material ou psicológica, com a viagem ou travessia para Jefferson podendo ser livremente associada à nossa travessia de leitor deste romance.
Nos referindo ao fluxo de consciência, Enquanto Agonizo (As I Lay Dying), publicado em 1930, é um dos melhores trabalhos literários que empregaram esta técnica literária, com seus parágrafos complexos de extensas orações, com uma clareza de fundo na narrativa, no entanto, que veio da intensa preparação prévia de anotações que Faulkner fez antes de começar este trabalho, ao contrário da concepção dispersa de outros trabalhos literários do autor.
No romance de Faulkner também temos a tensão entre o que é pensado e o que é dito, a riqueza narrativa dos pensamentos dos personagens contrasta com a pobreza da comunicação entre eles, com a assertiva de Addie de que 'palavras são apenas palavras', em que a fala nunca expressa totalmente as ideias e emoções, refletindo este clima de desconfiança do romance em relação à comunicação verbal. Os diálogos do romance são, em geral, breves, hesitantes, irrelevantes e inconstantes. Ao passo que os monólogos interiores, enriquecidos pela técnica do fluxo de consciência são, mais uma vez, o motor do romance, em que versões da realidade se entrechocam e se contradizem.
JAMES FRANCO E SEU FILME “AS I LAY DYING”
Em 2013, o ator e diretor James Franco fez uma adaptação do livro para o cinema, As I Lay Dying (em português traduzido como Último Desejo). O filme reproduz o livro, não se trata de uma adaptação, e se revela problemático em sua intenção e ambição, pois a contemplação dos fluxos de consciência e os contrastes do romance original aparecem na filmagem como objeto de técnicas, como a do split screen, que se revelam problemáticas na compreensão da trama filmada. Outro ponto a salientar é que James Franco teve que transformar as várias vozes dos personagens do livro em uma única voz que narra o filme.
O filme, em que James Franco dirige e atua, coloca uma narrativa linear, cortando personagens secundários, e o espírito do romance de Faulkner é todo diluído numa tentativa pretensiosa que resulta em algo forçado para narrar o romance, colocando os atores como títeres que declamam o texto diante das câmeras. James Franco, por fim, reduziu o romance à sua anedota, que é a narrativa da viagem de uma família pobre do Sul dos Estados Unidos para enterrar sua matriarca.
Link da Querido Clássico : https://www.queridoclassico.com/2021/04/enquanto-agonizo-faulkner.html
Gustavo Bastos, filósofo escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/a-travessia-da-familia-bundren-romance-enquanto-agonizo
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