PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 23 de agosto de 2020

WERNER HERZOG : A CONQUISTA DO INÚTIL (PARTE FINAL)

 “a coragem de uma vida plena sempre corre o risco de dar muito errado”

Herzog segue ao final de sua saga no coração da floresta, num governo constante do caos e num misto de coragem e temeridade que fez este diretor de cinema ousar umas das realizações mais sui generis da História do cinema, ele segue seu relato : “A primeira tentativa de puxar o navio não vingou, mas pelo menos filmamos o insucesso. Depois de alguns metros, o navio ficou levemente atravessado e encalacrou-se; ouvi como o gigantesco cabo de aço estalou estranhamente na roldana e produziu sons nada agradáveis.

Por fim, rompeu-se o cabo de aço, que tinha a grossura de um braço; a pressão o fez esquentar por dentro, e ele caiu fumegando no chão. No lugar em que se rompeu, vi que os fios internos ardiam, vermelhos. O navio escorregou lentamente para trás, e até estava com uma boa aparência, mesmo que isso não ajude muito em nossa tarefa. Os atores principais de nosso drama estranho, rodeados pela floresta indiferente como nossa espectadora, já não são as pessoas, mas os cabos de aço, o Caterpillar, os cabrestantes, os troncos das árvores, o barro, o rio, a chuva, os deslizamentos de terra.”

Herzog não nos poupa das escatologias, que volta e meia aparece neste livro Conquista do Inútil, e aqui vemos mais casos curiosos e lendo este livro posso dizer que tive momentos bem felizes, com frouxos de riso, Herzog relata : “Ao arrastar para longe um cabo de aço renitente sujo de barro, um dos índios peidava em razão do esforço, e fazia-o com uma intensidade tão duradoura, que soava na vulgaridade ressonante da natureza como o início de um primeiro desejo de ordem humana a se contrapor a ela. Eu gostaria de estar em outro lugar, onde pessoas partem voando sobre torres de igrejas, torres de igrejas sobre campos arados, navios sobre montanhas e continentes sobre oceanos.”

Herzog narra, mais uma vez, as dificuldades práticas da filmagem, e nos faz perceber que para dirigir um filme, não basta somente uma boa ideia, existe uma infinidade de problemas que exigem do diretor de cinema um forte senso prático, sem isto, qualquer filmagem não passaria de uma miragem de um sonhador, e Conquista do Inútil, embora se trate de uma ideia delirante, talvez por isto mesmo tenha exigido de Herzog mais do que qualquer outra de suas filmagens, e isto tudo numa concepção de senso prático extremamente selvagem.

Herzog relata : “Filmagens. Várias tentativas com o navio; grande labuta, grandes decepções. Anéis com cabos de aço pesados e renitentes; colocação de troncos extremamente pesados sob o corpo do barco; ganchos de ferro da grossura de braços se abrem, como quando abrimos um clipe de papel, transformando-o em um fio reto. Huerequeque está com um de seus surtos de malária, que sempre voltam em ciclos.”

Herzog segue seu relato : “Quando já estava escuro, fui chamado ao posto de saúde do grande acampamento. Os lenhadores estavam derrubando árvores entre os dois rios – como sempre, todos descalços, e um foi picado por uma cobra. Jamais foram vistas cobras nem mesmo no entorno mais amplo das serras elétricas, porque elas fogem selva adentro em razão do barulho e da fumaça; mas aconteceu que de repente o homem foi picado duas vezes no pé. Ele deixou a serra cair e ainda pôde ver que a cobra, que desaparecera pela vegetação, era uma chuchupe.

Normalmente, depois de menos de um minuto a contar do ataque, a respiração e o coração param, e praticamente não se conhecem casos de alguém que tenha sobrevivido a essa picada por mais do que sete ou oito minutos sem tratamento. E nosso acampamento, com o médico e o soro antiofídico, ficava a vinte minutos de distância. O homem – assim me contou o que estava trabalhando ao lado dele – ficou totalmente imóvel por alguns segundos, mergulhado em pensamentos. Então pegou do chão a serra elétrica, que com a batida parara de funcionar, puxou a corda, que, de modo semelhante a um motor de barco, a faz funcionar, e cortou o próprio pé acima do tornozelo.”

A imprevisibilidade era o estado de espírito dominante de toda a filmagem, Herzog nos dá esta noção extrema de uma realidade que desliza e dá saltos, ele segue seu relato : “Último dia de filmagem em Camisea, por ora. Não consigo me lembrar de algum dia ter trabalhado sob tanta pressão em minha vida. Normalmente, o que resolvíamos era um programa para cinco dias. Kinski gritava histérico, e em seguida agia como um doente terminal que precisava se apoiar em Paul; depois, mais uma vez, novo e revigorado ataque de fúria.”

Herzog, mais uma vez, narra os ataques de fúria de Kinski, mais um fator de pressão sobre as filmagens : “Mais um ataque de fúria de Kinski, e o cacique dos ashaninka-campas e o cacique dos machiguengas de Shivankoreni me puxavam de lado, perguntando calmamente se deviam matá-lo para mim. Para ter certeza, eu perguntei, matar quem? Eles se referiam a K., e, pela forma como falavam, não havia dúvida de que realmente o fariam de pronto, naqueles próximos sessenta segundos. K. percebeu que algo estava acontecendo e rapidamente passou de ataque de fúria a doente terminal.”. Kinski começa a incomodar, e pode ser que o ator colérico tenha escapado de algo mais grave nestas filmagens.

Mais relatos de Herzog sobre o vaidoso e colérico Kinski : “De lancha no Camisea, K. veio em minha direção aos brados, espumando. Ele estava de pé na proa e balançava um machete em golpes confusos contra um inimigo visível apenas para ele. Duas curvas do rio antes de ele me alcançar eu já o ouvira, brigando com o barqueiro em francês. Ao que tudo indica, ele viu do avião, antes de pousar, que o navio estava quase na mesma posição de antes, no rio, mas não percebeu que, de modo rocambolesco, ele já estava bem inclinado para cima.

Ele berrava feito um louco, dizendo que eu era um enganador, que ele não iria filmar, que só falaria comigo em Los Angeles, no tribunal. O nível do rio baixara de forma inimaginável, tanto que em alguns pontos tivemos de descer do barco para poder passar por trechos muito rasos; ao mesmo tempo que eu prestava atenção em K., mecanicamente tirava água do barco, com um prato de lata. A floresta, assim como eu, calada, absorvia os decibéis, e fazia-o com certa leveza. Acontece que K. está desmoronando, e nada mais pode impedir isso.”

A narrativa se volta, mais uma vez, para o leitmotiv do filme, a ideia delirante e megalomaníaca de Herzog, o barco atravessando a montanha, a Conquista do Inútil propriamente dita, Herzog relata : “De fato, no início o barco tomou a direção do monte de terra ao lado da câmera, e eu vi como Raimund pulou para o outro lado, em direção à água, para salvar a câmera, enquanto os campas se mantiveram a postos para Klausmann. Tercero, porém, conseguiu virar o barco para a outra direção. Já com metade do casco na água, foi de maneira tão incrível que o barco se inclinou para o lado, contra a corrente, que parecia inevitável : vai emborcar e afundar.

Rodopiando como que em um sonho febril confuso e desordenado, ele se inclinava de um lado para outro. Perdi o Caterpillar de vista – corajoso, ele se enfiara debaixo do casco, e o navio ameaçava emborcar; eu corri, fora do foco da câmera, em torno dele. Descalço, acabei pisando nos cacos dentados de uma garrafa de cerveja quebrada – os índios a tinham deixado no barro em sua fiesta noturna; sangrando muito, vi que realmente havia muito caco por ali. Correndo aflito, eu já prestava mais atenção aos cacos no chão do que o navio, o Caterpillar já tinha agarrado, violentamente com a pá, a transversal traseira do casco; nisso, a balaustrada, inclinada e quase tocando no chão, foi esmagada, com um estrondo, e o barco, já quase inteiro na água, endireitou-se de novo.

Meu pé sangrava, e eu não sentia. Não me importava com o navio, que já não tinha valor maior do que quaisquer garrafas de cerveja quebradas no barro, do que um cabo de aço qualquer serpenteado na lama. Não houve nenhuma dor, nenhuma alegria, nenhum alívio, nenhum sentimento de felicidade, nenhum som e tampouco um suspiro profundo. Era apenas a compreensão de uma grande inutilidade, ou, mais exatamente, eu tinha apenas penetrado de maneira mais profunda em seu misterioso reino. Vi como o navio, impelido de volta ao seu elemento, endireitou-se lentamente e suspirando. Hoje, quarta-feira, 4 de novembro de 1981, pouco depois do meio-dia, conseguimos transportar o navio do rio Camisea por cima de uma montanha até o rio Urubamba. Tudo o que se tem a relatar é isto : eu participei.”

Herzog aqui finaliza a sua narrativa, a memória registrada de uma das filmagens mais insanas da História do cinema, o diretor Werner Herzog consegue seu intento, a um custo de muito perigo, mas nada do que é feito de grandes conquistas é realizado sem uma enorme dose de perigo, a coragem de uma vida plena sempre corre o risco de dar muito errado, e se deu certo, tem um gosto bem doce de olhar e admirar a própria obra, pode ser esta a sensação do diretor de cinema Werner Herzog, que depois do alívio, sente o gozo de ser um realizador de sonhos e um conquistador do inútil.

(Fim da série sobre o livro Conquista do Inútil de Werner Herzog)

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/werner-herzog-a-conquista-do-inutil-parte-final 

 

 

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