“a coragem de uma vida plena sempre corre o risco de dar muito errado”
Herzog segue ao final de sua saga no coração da floresta, num
governo constante do caos e num misto de coragem e temeridade que fez este
diretor de cinema ousar umas das realizações mais sui generis da História do
cinema, ele segue seu relato : “A primeira tentativa de puxar o navio não
vingou, mas pelo menos filmamos o insucesso. Depois de alguns metros, o navio
ficou levemente atravessado e encalacrou-se; ouvi como o gigantesco cabo de aço
estalou estranhamente na roldana e produziu sons nada agradáveis.
Por fim, rompeu-se o cabo de aço, que tinha a grossura de um
braço; a pressão o fez esquentar por dentro, e ele caiu fumegando no chão. No
lugar em que se rompeu, vi que os fios internos ardiam, vermelhos. O navio
escorregou lentamente para trás, e até estava com uma boa aparência, mesmo que
isso não ajude muito em nossa tarefa. Os atores principais de nosso drama
estranho, rodeados pela floresta indiferente como nossa espectadora, já não são
as pessoas, mas os cabos de aço, o Caterpillar, os cabrestantes, os troncos das
árvores, o barro, o rio, a chuva, os deslizamentos de terra.”
Herzog não nos poupa das escatologias, que volta e meia
aparece neste livro Conquista do Inútil, e aqui vemos mais casos curiosos e
lendo este livro posso dizer que tive momentos bem felizes, com frouxos de
riso, Herzog relata : “Ao arrastar para longe um cabo de aço renitente sujo de
barro, um dos índios peidava em razão do esforço, e fazia-o com uma intensidade
tão duradoura, que soava na vulgaridade ressonante da natureza como o início de
um primeiro desejo de ordem humana a se contrapor a ela. Eu gostaria de estar
em outro lugar, onde pessoas partem voando sobre torres de igrejas, torres de
igrejas sobre campos arados, navios sobre montanhas e continentes sobre
oceanos.”
Herzog narra, mais uma vez, as dificuldades práticas da
filmagem, e nos faz perceber que para dirigir um filme, não basta somente uma
boa ideia, existe uma infinidade de problemas que exigem do diretor de cinema
um forte senso prático, sem isto, qualquer filmagem não passaria de uma miragem
de um sonhador, e Conquista do Inútil, embora se trate de uma ideia delirante,
talvez por isto mesmo tenha exigido de Herzog mais do que qualquer outra de
suas filmagens, e isto tudo numa concepção de senso prático extremamente
selvagem.
Herzog relata : “Filmagens. Várias tentativas com o navio;
grande labuta, grandes decepções. Anéis com cabos de aço pesados e renitentes;
colocação de troncos extremamente pesados sob o corpo do barco; ganchos de
ferro da grossura de braços se abrem, como quando abrimos um clipe de papel,
transformando-o em um fio reto. Huerequeque está com um de seus surtos de
malária, que sempre voltam em ciclos.”
Herzog segue seu relato : “Quando já estava escuro, fui
chamado ao posto de saúde do grande acampamento. Os lenhadores estavam
derrubando árvores entre os dois rios – como sempre, todos descalços, e um foi
picado por uma cobra. Jamais foram vistas cobras nem mesmo no entorno mais
amplo das serras elétricas, porque elas fogem selva adentro em razão do barulho
e da fumaça; mas aconteceu que de repente o homem foi picado duas vezes no pé.
Ele deixou a serra cair e ainda pôde ver que a cobra, que desaparecera pela
vegetação, era uma chuchupe.
Normalmente, depois de menos de um minuto a contar do ataque,
a respiração e o coração param, e praticamente não se conhecem casos de alguém
que tenha sobrevivido a essa picada por mais do que sete ou oito minutos sem
tratamento. E nosso acampamento, com o médico e o soro antiofídico, ficava a
vinte minutos de distância. O homem – assim me contou o que estava trabalhando
ao lado dele – ficou totalmente imóvel por alguns segundos, mergulhado em
pensamentos. Então pegou do chão a serra elétrica, que com a batida parara de
funcionar, puxou a corda, que, de modo semelhante a um motor de barco, a faz
funcionar, e cortou o próprio pé acima do tornozelo.”
A imprevisibilidade era o estado de espírito dominante de
toda a filmagem, Herzog nos dá esta noção extrema de uma realidade que desliza
e dá saltos, ele segue seu relato : “Último dia de filmagem em Camisea, por
ora. Não consigo me lembrar de algum dia ter trabalhado sob tanta pressão em
minha vida. Normalmente, o que resolvíamos era um programa para cinco dias. Kinski
gritava histérico, e em seguida agia como um doente terminal que precisava se
apoiar em Paul; depois, mais uma vez, novo e revigorado ataque de fúria.”
Herzog, mais uma vez, narra os ataques de fúria de Kinski,
mais um fator de pressão sobre as filmagens : “Mais um ataque de fúria de
Kinski, e o cacique dos ashaninka-campas e o cacique dos machiguengas de
Shivankoreni me puxavam de lado, perguntando calmamente se deviam matá-lo para
mim. Para ter certeza, eu perguntei, matar quem? Eles se referiam a K., e, pela
forma como falavam, não havia dúvida de que realmente o fariam de pronto,
naqueles próximos sessenta segundos. K. percebeu que algo estava acontecendo e
rapidamente passou de ataque de fúria a doente terminal.”. Kinski começa a
incomodar, e pode ser que o ator colérico tenha escapado de algo mais grave nestas
filmagens.
Mais relatos de Herzog sobre o vaidoso e colérico Kinski : “De
lancha no Camisea, K. veio em minha direção aos brados, espumando. Ele estava
de pé na proa e balançava um machete em golpes confusos contra um inimigo
visível apenas para ele. Duas curvas do rio antes de ele me alcançar eu já o
ouvira, brigando com o barqueiro em francês. Ao que tudo indica, ele viu do
avião, antes de pousar, que o navio estava quase na mesma posição de antes, no
rio, mas não percebeu que, de modo rocambolesco, ele já estava bem inclinado
para cima.
Ele berrava feito um louco, dizendo que eu era um enganador,
que ele não iria filmar, que só falaria comigo em Los Angeles, no tribunal. O
nível do rio baixara de forma inimaginável, tanto que em alguns pontos tivemos
de descer do barco para poder passar por trechos muito rasos; ao mesmo tempo
que eu prestava atenção em K., mecanicamente tirava água do barco, com um prato
de lata. A floresta, assim como eu, calada, absorvia os decibéis, e fazia-o com
certa leveza. Acontece que K. está desmoronando, e nada mais pode impedir
isso.”
A narrativa se volta, mais uma vez, para o leitmotiv do
filme, a ideia delirante e megalomaníaca de Herzog, o barco atravessando a
montanha, a Conquista do Inútil propriamente dita, Herzog relata : “De fato, no
início o barco tomou a direção do monte de terra ao lado da câmera, e eu vi
como Raimund pulou para o outro lado, em direção à água, para salvar a câmera,
enquanto os campas se mantiveram a postos para Klausmann. Tercero, porém,
conseguiu virar o barco para a outra direção. Já com metade do casco na água,
foi de maneira tão incrível que o barco se inclinou para o lado, contra a
corrente, que parecia inevitável : vai emborcar e afundar.
Rodopiando como que em um sonho febril confuso e desordenado,
ele se inclinava de um lado para outro. Perdi o Caterpillar de vista –
corajoso, ele se enfiara debaixo do casco, e o navio ameaçava emborcar; eu
corri, fora do foco da câmera, em torno dele. Descalço, acabei pisando nos
cacos dentados de uma garrafa de cerveja quebrada – os índios a tinham deixado
no barro em sua fiesta noturna;
sangrando muito, vi que realmente havia muito caco por ali. Correndo aflito, eu
já prestava mais atenção aos cacos no chão do que o navio, o Caterpillar já
tinha agarrado, violentamente com a pá, a transversal traseira do casco; nisso,
a balaustrada, inclinada e quase tocando no chão, foi esmagada, com um
estrondo, e o barco, já quase inteiro na água, endireitou-se de novo.
Meu pé sangrava, e eu não sentia. Não me importava com o
navio, que já não tinha valor maior do que quaisquer garrafas de cerveja
quebradas no barro, do que um cabo de aço qualquer serpenteado na lama. Não
houve nenhuma dor, nenhuma alegria, nenhum alívio, nenhum sentimento de
felicidade, nenhum som e tampouco um suspiro profundo. Era apenas a compreensão
de uma grande inutilidade, ou, mais exatamente, eu tinha apenas penetrado de
maneira mais profunda em seu misterioso reino. Vi como o navio, impelido de
volta ao seu elemento, endireitou-se lentamente e suspirando. Hoje,
quarta-feira, 4 de novembro de 1981, pouco depois do meio-dia, conseguimos
transportar o navio do rio Camisea por cima de uma montanha até o rio Urubamba.
Tudo o que se tem a relatar é isto : eu participei.”
Herzog aqui finaliza a sua narrativa, a memória registrada de
uma das filmagens mais insanas da História do cinema, o diretor Werner Herzog
consegue seu intento, a um custo de muito perigo, mas nada do que é feito de
grandes conquistas é realizado sem uma enorme dose de perigo, a coragem de uma
vida plena sempre corre o risco de dar muito errado, e se deu certo, tem um
gosto bem doce de olhar e admirar a própria obra, pode ser esta a sensação do
diretor de cinema Werner Herzog, que depois do alívio, sente o gozo de ser um
realizador de sonhos e um conquistador do inútil.
(Fim da série sobre o livro Conquista do Inútil de Werner
Herzog)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/werner-herzog-a-conquista-do-inutil-parte-final
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