“uma voz nova na poesia, e também trazendo ecos da tradição
poética”
Temos em Jóquei¸ de Matilde Campilho, a apresentação de uma
obra singular, e mesmo se tratando de uma estreia, tal livro teve uma boa
repercussão, tanto nos meios literários como na mídia.
A crítica a situa ao mesmo tempo como uma voz nova na poesia,
e também trazendo ecos da tradição poética, e sua dicção plural, juntando o
português de Portugal, do Brasil, algo de inglês, permeando os poemas, e uma
biografia, a colocou como a imagem de um nomadismo biográfico e literário, sua
pluralidade em vida se reflete na sua poesia também plural.
E matérias de jornal criaram o chamado clichê-Matilde, que eu
já pontuei aqui também, tais como “poeta nômade”, “Portuguesa mescla sotaque de
Rio e Lisboa em ‘Jóquei’, sua estreia literária, e em vídeo-poemas que
conquistaram fãs na internet”. Meses antes da publicação de Jóquei, o poema “Fur”
foi publicado na extinta página “Risco”, mantida pelo poeta Carlito Azevedo.
O poema que inicia o livro traz a indicação, como uma
epígrafe, “com cara de Whitman”, o que indica as pontes evidentes da obra de
Matilde com a tradição poética. “Fur” faz eco à poesia de Whitman não
necessariamente por uma mimética de influência direta, mas na parte funcional
da prática do verso livre e por uma caudalosa enumeração.
Matilde faz referência, em seus poemas, ao universo fundador
de seus poemas, que vem, para além de poetas citados, de canções, da música, e
passa também por diálogos cotidianos, filmes, etc. Em Portugal, em matéria do
jornal português Público, sobre o Jóquei, o jornalista João Bonifácio pontua: “O
universo que funda os poemas vem tanto da vida como de leituras, filmes,
canções.”
E Matilde reforça o papel das canções em seus poemas, da
importância delas. Canções como Purple Rain do Prince ou Don't Think Twice It's
Alright de Bob Dylan, que são influências na sua escrita. E aí também podem
surgir Simon & Garfunkel, Mercedes Sosa ou Ataulfo Alves.
Por sua vez, temos também a mescla musical da linguagem
coloquial, com linguagem e vocábulos do cotidiano, e um uso variável dos
pronomes tu e você, como temos no poema “Roma amor”. Neste poema podemos ler a
presença constante de um interlocutor, como se todo o livro fosse dirigido a este
tu ou a este você, com estes dois pronomes se revezando nesta presença
constante deste interlocutor no livro Jóquei, um tu ou você onipresente nestes
poemas do livro.
POEMAS :
ANÚNCIO : O poema se abre na experiência de
figuras próximas da poeta, numa narração de poema em prosa que descreve fatos e
metáforas, as asas brancas em destaque, no que temos : “Falemos do boi à
espreita no vértice da mesa da cozinha, nem tudo o que mexe é cupim, falemos de
transa no discurso de Gabriel e ainda de como foram brilhantes suas enormes asas
brancas. Respeitemos o fato de algumas penas dessas asas terem caído naquela
hora e de estarem ainda planando se espalhando pelo mundo, fazendo ad eternum o
percurso ininterrupto entre Jaipur e Nashville.” O percurso também se abre, e
há acidentes, e novas descrições surpreendentes, no que vem : “Falemos da
invenção arborizada de Cage e da forma estúpida como Joaquim dirigia na cidade
para encontrar sua mulher, falemos do estado de desgaste da caixa de marcha do
automóvel de Joaquim, dos estofos queimados pelo sol e pelas mãos de Joaquim,
falemos do cabelo queimado da mulher de Joaquim.”. O poema em prosa, de
consistência circular, dá uma volta em si mesmo, fechando em sua narrativa com
uma coda que condensa os trechos anteriores e os retomam em chave de síntese,
no que temos : “Falemos do boi à espreita na cara de Pedro, João e Joaquim e
falemos da confissão que o padre não ouve porque está concentradíssimo na
circularidade estranha do botão de sua batina.”.
A PRIMEIRA HORA EM QUE
O FILHO DO SOL BRINCOU COM CHUMBINHOS : Mais um poema em prosa de Matilde com riqueza metafórica e
uma amplitude temática, a fluidez aqui se instaura logo na partida, no que
temos : “Meu querido, as árvores falam. Os tigres correm olimpíadas em pistas
muito mais incríveis do que aquelas feitas de cimento laranja. Usain Bolt vezes
cem, o sorriso de Usain Bolt vezes mil. A matemática não é difícil se você
comparar tudo ao aparecimento de um cardume.”. De um poema sobre velocidade,
agora Matilde se volta para as canções, no que temos : “Certas canções despertam em nós a vontade de
uma história que já aconteceu mas que não vai acontecer mais. Algumas histórias
têm a duração exata de uma música rock, outras se dividem em cantos.”. Agora a
mística do terceiro olho, mas em chave poética, livre, sem misticismo
propriamente dito, um ar leve e bem humorado toma o plano, no que vem : “O alvo
de um humano está no terceiro olho e um dia alguém vai explicar para você como
o afagar e onde ele fica. Nunca aponte ao terceiro olho, com aquilo é só
cuidados. Algumas vezes vão te empurrar e você vai empurrar de volta,
provavelmente vai até querer pegar uma pedra para jogar no peito de quem te
feriu. Isso não está certo, mas é humano.”. E o poema aponta ao riso e à
consciência do mundo, Matilde abre uma chave de entendimento, da mira à coda
inspiradora que remonta a vida na simplicidade de um bichinho e o convite terno
à brincadeira : “Faça por polir seu riso, principalmente ao entardecer. Afine
diariamente a pontaria e reze para que nunca seja necessário o disparo.” (...)
“Sim, daqui a muitos anos você vai conseguir acertar direitinho nessa lata de
coca-cola que a gente suspendeu no sobreiro. Só acho que não vai querer. Também
vai saber por que razão é melhor segurar uma arma descalço – é que é na terra
que está a consciência do mundo, e é preciso escutar o seu ruído para agir em
verdade. Saiba também, querido, que muitas vezes a sombra de um desenho é bem
mais bonita do que o desenho que está à vista. É preciso estar atento, e
descobrir o bichinho que se mexe debaixo da folhagem. Não o mate : se cubra de
flores e entre para brincar com ele.”.
DEGRAUS SUBMERSOS : As notícias chegam ao distante
interlocutor, no que temos : “The roses are lovely. Fazes falta, meu chapa. No
vaso anda tudo crescendo de uma forma muito desenfreada, não sei como dizer-te
que os caules trepam as folhas, que a terra cai sobre as flores e que a
frutaria toda ameaça inundar a sala. Anda tudo muito bonito.”. As descrições de
Matilde são comoventes, o relato a este interlocutor exilado, distante, segue :
“Eu por enquanto fico lendo o jornal. Já sabes, é tremendo este vício de cair
de cara na coisa e também de deixar sempre um taco de golfe encostado na mesa.
Para o que der, para o que vier. Ainda durmo de camisa branca, ainda corto as
laranjas de manhã, de vez em quando ainda abro a porta do quarto, subo até o
terraço e canto. Ainda sou um cantorzinho de merda, mas já imito muito bem umas
quatro ou cinco espécies de bichos.”. O poema em prosa então canta em inglês, e
este interlocutor ganha um afago da poeta, o poema segue leve à sua coda, e
suave se encerra num humor sutil : “Gee wee, we`re getting older. A lua
americana não achou o caminho do céu e os índices de alcoolemia no quartel dos
bombeiros vão crescendo a passos bestiais. Oh well. Se um dia achares um penny,
ligaí.”.
WE`VE CHANGED, HONEY
BOO : O poema tem um
ar aventureiro, e a narrativa que se instaura aqui é bem interessante, no que
temos : “Como estava previsto nos registros, agora você é muito mais dada à
astrologia e eu ao estudo dos cafés servidos nas beiras de estrada. A polícia
não nos procura mais.”. E segue o poema, com as agruras narradas poeticamente
por Matilde : “Quase nos prendiam por tráfico de influências, mas agora as
urbanizações andam muito sossegadas. Daniel, entretanto, está morto. Walter
emudeceu no caminho da composição e os jornais usam datas estranhas em seus
cabeçalhos.”. As mudanças se firmaram, e Matilde dá a notícia : “Mudou tudo,
honey, e a distância entre nós não foi certamente a causa para toda a explosão.”.
O poema se estende em narrativa curiosa, Matilde lembra ao interlocutor algumas
coisas, o poema tem um ar bem interessante, diferente, Matilde nos conta uma
estória, e nos leva numa fluidez prazerosa, no que temos : “Antes do horóscopo
e dos mapas você prestava alguma atenção ao despertar do soldado. Acho que
tinha qualquer coisa a ver com luz ou com melancolia, tinha certamente tudo a
ver com crença.”. A mudança, eis o tema do poema : “Cada motel serve um café
diferente, raios. Distingo os ares da China do vento do Cazaquistão num minuto.
We`ve changed, honey boo, mas os climogramas permanecem.”.
MILAGRES QUE NÃO SÃO
CONTRÁRIOS À NATUREZA : O poema em prosa aqui tem um leitmotiv curioso com a figura do padre,
santo e filósofo Santo Agostinho, no que temos : “Hoje é que é dia de Santo Agostinho.
Agostinho só, aquele, bispo e doutor da Igreja, nascido uns quinhentos anos
depois do Cristo. Hoje alguém escreveu qualquer coisa sobre corações de pedra e
sobre a promessa que circunda a rendição. Rendição quer dizer a desistência do
coração de pedra, acho.”. O coração de pedra também tem certo papel
preponderante no poema, ao lado da figura do santo padre, no que temos : “Hoje
é que é dia de Agostinho, e naquela curta temporada que passamos na África
(devíamos ter uns 19 anos, não sei bem) eu repetia a frase do santo todas as
tardes. Até o infinito solar. Nessa época o coração de pedra não passava de uma
escultura abandonada no sertão, um pedaço de terra seca amassada que alguém
deixara entre o capim, o desenho inglório das formigas muchã.”. A figura
curiosa de um formigueiro grande, uma montanha de argila, no que segue : “A
construção de doze metros feita por aqueles bichinhos mínimos só encontrava
rival nos cagalhões dos elefantes, imagine a ironia. Torres de doze metros!
Campanários argilosos, corações naturais de terra seca que eram como a
representação de nosso corpo futuro. Agostinho sempre segredando o amor pelos
furinhos da construção, Agostinho aparecendo nos cabelos do Rei, Agostinho nos
estalinhos da língua makua, Nsina na Titi, Na Mwana, Na Munepa, Wotcela, Ámen.”.
O poema em prosa é a experiência de Matilde com Santo Agostinho, mas em sua
história na África, a nômade poeta com sua cosmovisão produzida biograficamente
como uma viajante, uma cosmopolita, no que temos : “Essa foi minha história com
A. em África. Mais tarde apareceu nos corredores da biblioteca, sobressaindo
manso da estante 27. Derrubou comigo a moto vermelha, na noite em que quase
morri de ciúme e de rancor. Também foi Agostinho quem me pagou o bilhete de
metrô quando voltei à cidade onde tomei todas as cervejas com o diabo.”. A
memória despertada pela música, a experiência de vida de Matilde, aqui como um
personagem masculino, em vivíssima descrição aqui : “A primeira suíte de Bach
fez as vezes da voz do santo, e já agora de todos os ruídos do mundo : desde o
crepitar da fogueira que cozia o pão na caverna em Trás-os-Montes até ao
barulhinho da lixa que roçava as unhas daquela moça na favela. O violoncelo
arrasou com tudo, e esse era meu novo amuleto. Depois veio a canção da Gal, a
concha do Leblon, o lenço vermelho, o pedaço de granito, a baleia de marfim,
etc. Todo refúgio material acha uma forma de se renovar.”. O jogo do poema com
a memória agora invade o plano afetivo, o poema abre uma história, e um campo
vasto de sensações, no que temos : “Entraram mais uns quantos Natais no
tabuleiro do meu jogo de glória sideral. E quarenta silêncios. Até que subitamente,
num dia qualquer de Natal, minha ex-noiva me ligou para dizer que no papelinho
anual me tinha calhado o nome de um santo. Foi a homenagem mais bonita que
alguém alguma vez fez a um amor já morto – é que em todos os Natais que
passamos juntos, eu ganhava um santo e um chocolate. Tudo embrulhado nas flores
pardas da paixão. Trazer isso à baila fora de tempo, achei um gesto corajoso e
principalmente muito justo. Não comi o chocolate porque toda a gente sabe que o
chocolate tem uma digestão terrível, mas confesso que guardei o papelinho. Só o
papelinho e não a inscrição – eu nunca esqueci tanto tempo o nome de alguém,
principalmente de um santo.”. E, ao fim, a figura de Santo Agostinho, um
letimotiv para um poema memorial, evoca novamente o tema lateral, o coração de
pedra, numa coda intensa e genial : “Mas hoje, sem aviso nenhum, o verão me
acordou com duas frases : “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com
amor.” Hoje, rapaz, hoje não é dia de Sebastião, nem de Tomé, nem de Jorge nem
das rodas gigantes. Hoje que é dia de Santo Agostinho em minha janela inaugural
apareceu a torre muchã de doze metros. E do cocuruto do palácio de terra um
soldado gritava Senhor Arranca-me O Coração De Pedra.”.
POEMAS :
ANÚNCIO
Falemos do boi à espreita no vértice da mesa da cozinha, nem
tudo o que mexe é cupim, falemos de transa no discurso de Gabriel e ainda de
como foram brilhantes suas enormes asa brancas. Respeitemos o fato de algumas
penas dessas asas terem caído naquela hora e de estarem ainda planando se espalhando
pelo mundo, fazendo ad eternum o percurso ininterrupto entre Jaipur e
Nashville. Falemos do recado talhado a vermelho na bancada da cozinha, falemos
do afogamento de Pedro no dia de todos os santos quando nevou demais. Falemos
da invenção arborizada de Cage e da forma estúpida como Joaquim dirigia na
cidade para encontrar sua mulher, falemos do estado de desgaste da caixa de
marcha do automóvel de Joaquim, dos estofos queimados pelo sol e pelas mãos de
Joaquim, falemos do cabelo queimado da mulher de Joaquim. Falemos também do
movimento físico dessa mulher não amando ninguém para além de seu reflexo no
espelho. Falemos do piso escorregadio do Corso Independenza em dias de outono
mais ou menos, falemos dos níveis de contaminação provenientes de um hino
tocado no banheiro do restaurante, falemos da gota que em compasso cai do
frasco de soro para dentro de uma veia previamente furada. Falemos do boi à
espreita na cara de Pedro, João e Joaquim e falemos da confissão que o padre
não ouve porque está concentradíssimo na circularidade estranha do botão de sua
batina.
A PRIMEIRA HORA EM QUE
O FILHO DO SOL BRINCOU COM CHUMBINHOS
para Francisco, aos nove anos
Não é que eu queira que você saiba manejar armas mas quero
sim que se prepare para afinar sua pontaria.
Meu querido, as árvores falam. Os tigres correm olimpíadas em
pistas muito mais incríveis do que aquelas feitas de cimento laranja. Usain
Bolt vezes cem, o sorriso de Usain Bolt vezes mil. A matemática não é difícil
se você comparar tudo ao aparecimento de um cardume. Alguns frutos nascem no
chão, outros caem dos ramos. É preciso estar atento. Certas canções despertam
em nós a vontade de uma história que já aconteceu mas que não vai acontecer
mais. Algumas histórias têm a duração exata de uma música rock, outras se
dividem em cantos. No intervalo dá para comprar pipocas. Poucas pessoas
contaram as riscas de uma zebra, mas todos os que o fizeram regressaram
diferentes. O alvo de um humano está no terceiro olho e um dia alguém vai
explicar para você como o afagar e onde ele fica. Nunca aponte ao terceiro
olho, com aquilo é só cuidados. Algumas vezes vão te empurrar e você vai
empurrar de volta, provavelmente vai até querer pegar uma pedra para jogar no
peito de quem te feriu. Isso não está certo, mas é humano. Quase tudo o que é
humano é justo, não deixe que ninguém te diga o contrário – só não vale enfiar
o dedo no tal olho porque isso é igual a matar. A morte é o contrário de
justiça. Os peixes respiram debaixo de água e se você mergulhar entre as rochas
e se concentrar muito também vai conseguir. Ah é : os peixes brilham mais que
as chamas, e alguns deles vão morar dentro de seus pulmões. Segure-se. Faça por
polir seu riso, principalmente ao entardecer. Afine diariamente a pontaria e
reze para que nunca seja necessário o disparo. Não existe proteção melhor do
que a consciência de que podemos decidir atirar ao lado. Sim, daqui a muitos
anos você vai conseguir acertar direitinho nessa lata de coca-cola que a gente
suspendeu no sobreiro. Só acho que não vai querer. Também vai saber por que
razão é melhor segurar uma arma descalço – é que é na terra que está a
consciência do mundo, e é preciso escutar o seu ruído para agir em verdade.
Saiba também, querido, que muitas vezes a sombra de um desenho é bem mais bonita
do que o desenho que está à vista. É preciso estar atento, e descobrir o
bichinho que se mexe debaixo da folhagem. Não o mate : se cubra de flores e
entre para brincar com ele.
DEGRAUS SUBMERSOS
The roses are lovely. Fazes falta, meu chapa. No vaso anda
tudo crescendo de uma forma muito desenfreada, não sei como dizer-te que os
caules trepam as folhas, que a terra cai sobre as flores e que a frutaria toda
ameaça inundar a sala. Anda tudo muito bonito. Chastle não apareceu para o
café, não esta manhã, mas é sabido que mais dia ou menos dia o tipo chega. Eu
por enquanto fico lendo o jornal. Já sabes, é tremendo este vício de cair de
cara na coisa e também de deixar sempre um taco de golfe encostado na mesa.
Para o que der, para o que vier. Ainda durmo de camisa branca, ainda corto as
laranjas de manhã, de vez em quando ainda abro a porta do quarto, subo até o
terraço e canto. Ainda sou um cantorzinho de merda, mas já imito muito bem umas
quatro ou cinco espécies de bichos. Sei os nomes dos pássaros que circundam meu
bairro e meu bairro tem variado menos que o habitual. Dadá veio aí no outro dia
e trazia os lábios pintados de vermelho, achei engraçado e também achei a coisa
mais linda daquela tarde no mundo. Diz que vai para a Índia. Todas as mulheres
vão. Gee wee, we`re getting older. A lua americana não achou o caminho do céu e
os índices de alcoolemia no quartel dos bombeiros vão crescendo a passos
bestiais. Oh well. Se um dia achares um penny, ligaí.
WE`VE CHANGED, HONEY
BOO
Como estava previsto nos registros, agora você é muito mais
dada à astrologia e eu ao estudo dos cafés servidos nas beiras de estrada. A
polícia não nos procura mais. O tribunal dos seiscentos dias resolveu que a
misturada que fizemos com os nomes dos pássaros já não é uma questão para a
segurança interna. Mensagens encriptadas na bula dos medicamentos, aromas
desleais enfiados à socapa nos pacotinhos de sorvete, assobios nos ouvidos do
sinaleiro – tudo parou. Quase nos prendiam por tráfico de influências, mas
agora as urbanizações andam muito sossegadas. Daniel, entretanto, está morto.
Walter emudeceu no caminho da composição e os jornais usam datas estranhas em
seus cabeçalhos. Junto àquelas figuras de aviões e homens fardados aparece o
nome do décimo sexto mês. Mudou tudo, honey, e a distância entre nós não foi
certamente a causa para toda a explosão. Existem mais de 39 marcas diferentes
de café, isso sem contar as misturas solúveis. As professoras de Westbridge
preferem-no forte. Os astronautas fora de missão bebem cafezinho claro, não vá
acontecer uma emergência qualquer – quem entende de gravidade está muito
consciente da ligação entre leveza e sono. Antes do horóscopo e dos mapas você
prestava alguma atenção ao despertar do soldado. Acho que tinha qualquer coisa
a ver com luz ou com melancolia, tinha certamente tudo a ver com crença. Quero
dizer, tu trabalhavas na tipografia e eu ainda guardo a revista onde plantaste
o retrato do barcalhão fazendo a vênia à alvorada. Falávamos muito de príncipes
nessa época, e os príncipes pertencem às manhãs. Cada motel serve um café
diferente, raios. Distingo os ares da China do vento do Cazaquistão num minuto.
We`ve changed, honey boo, mas os climogramas permanecem.
MILAGRES QUE NÃO SÃO
CONTRÁRIOS À NATUREZA
Hoje é que é dia de Santo Agostinho. Agostinho só, aquele,
bispo e doutor da Igreja, nascido uns quinhentos anos depois do Cristo. Hoje
alguém escreveu qualquer coisa sobre corações de pedra e sobre a promessa que
circunda a rendição. Rendição quer dizer a desistência do coração de pedra,
acho. Quando éramos pequenos a bondade parecia o gesto mais natural de todos,
fácil, o movimento perene – agora quase tudo supõe uma rendição.
Hoje é que é dia de Agostinho, e naquela curta temporada que
passamos na África (devíamos ter uns 19 anos, não sei bem) eu repetia a frase
do santo todas as tardes. Até o infinito solar. Nessa época o coração de pedra
não passava de uma escultura abandonada no sertão, um pedaço de terra seca
amassada que alguém deixara entre o capim, o desenho inglório das formigas
muchã. Inglório, rapaz, e nem por isso menos fascinante. A construção de doze
metros feita por aqueles bichinhos mínimos só encontrava rival nos cagalhões
dos elefantes, imagine a ironia. Torres de doze metros! Campanários argilosos,
corações naturais de terra seca que eram como a representação de nosso corpo
futuro. Agostinho sempre segredando o amor pelos furinhos da construção,
Agostinho aparecendo nos cabelos do Rei, Agostinho nos estalinhos da língua
makua, Nsina na Titi, Na Mwana, Na Munepa, Wotcela, Ámen. Agostinho ao volante
da caminhonete pelas crateras da estrada picada, e muitas vezes Agostinho de
bicicleta à saída dos estrados do capim. Essa foi minha história com A. em
África. Mais tarde apareceu nos corredores da biblioteca, sobressaindo manso da
estante 27. Derrubou comigo a moto vermelha, na noite em que quase morri de
ciúme e de rancor. Também foi Agostinho quem me pagou o bilhete de metrô quando
voltei à cidade onde tomei todas as cervejas com o diabo. Passeei pelos becos
do bairro de Josefov, fui dar nas campas cobertas de neve, e nem por isso
reparei nos filhos de Jerusalém que me cruzavam nas ruas. Aí meu coração já era
bloco, e as construções da muchã uma história do passado. Comprei minha
primeira pintura num bar lá perto do cemitério (era o desenho de uma roda
gigante num parque de diversões) e à saída, olhando o termômetro de rua, decidi
que a partir dali todos os amuletos seriam renováveis. É assim que um rapazinho
se apaixona pela arte. Resignado ao processo contínuo da mentira que nos
acompanha o caminho todo. Agostinho não disse nada. A primeira suíte de Bach
fez as vezes da voz do santo, e já agora de todos os ruídos do mundo : desde o
crepitar da fogueira que cozia o pão na caverna em Trás-os-Montes até ao barulhinho
da lixa que roçava as unhas daquela moça na favela. O violoncelo arrasou com
tudo, e esse era meu novo amuleto. Depois veio a canção da Gal, a concha do
Leblon, o lenço vermelho, o pedaço de granito, a baleia de marfim, etc. Todo
refúgio material acha uma forma de se renovar.
Passou muito tempo, embora eu não saiba muito bem contar o
tempo. Entraram sete verões ou mais, entrou o carnaval, certos aniversários
aninhados na barriga de um zepelim, entraram as celebrações novas e dentro
delas um par de Hanukkahs. Entraram mais uns quantos Natais no tabuleiro do meu
jogo de glória sideral. E quarenta silêncios. Até que subitamente, num dia
qualquer de Natal, minha ex-noiva me ligou para dizer que no papelinho anual me
tinha calhado o nome de um santo. Foi a homenagem mais bonita que alguém alguma
vez fez a um amor já morto – é que em todos os Natais que passamos juntos, eu
ganhava um santo e um chocolate. Tudo embrulhado nas flores pardas da paixão.
Trazer isso à baila fora de tempo, achei um gesto corajoso e principalmente
muito justo. Não comi o chocolate porque toda a gente sabe que o chocolate tem
uma digestão terrível, mas confesso que guardei o papelinho. Só o papelinho e
não a inscrição – eu nunca esqueci tanto tempo o nome de alguém, principalmente
de um santo. Nunca calei tanto tempo as palavras naturais. Mas hoje, sem aviso
nenhum, o verão me acordou com duas frases : “Ama e faz o que quiseres. Se
calares, calarás com amor.” Hoje, rapaz, hoje não é dia de Sebastião, nem de
Tomé, nem de Jorge nem das rodas gigantes. Hoje que é dia de Santo Agostinho em
minha janela inaugural apareceu a torre muchã de doze metros. E do cocuruto do
palácio de terra um soldado gritava Senhor Arranca-me O Coração De Pedra.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/matilde-campilho-e-suas-influencias-em-joquei
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