“meu duplo cãozinho raivoso, tá mudado, transmudado, com a
sorte da sobrevida”
A juventude sempre tem algo de subversivo. Desde os anos 1950
com "juventude transviada" e os beats, a evolução dos poetas malditos
do século XIX na figura mítica de Arthur Rimbaud.
O jovem "enfant terrible" veste uma aura, lhe
vestem também, e muitas vezes faz coisas sem pensar, e nem liga, com o
populacho sobrevalorizando e num ataque o delírio dos ideólogos o pintam até
como Lúcifer. Seu nome romantizado, e sua deliberada ação de vestir tal aura (e
sendo a própria aura), e os efeitos do sucesso de sua jornada, e sua sorte e
seu azar de ser o que é, e se sobreviver, virar, talvez, um estoico com pulso
firme, o duplo oculto no jovem irresponsável, talvez, decerto.
"Enfant Terrible", termo ligado à arte, e que
também quer dizer marca, escritura biográfica, a vida curta dos que morrem de
overdose, heróis da contracultura, os que passam como viçosos cometas, os
desviados, os loucos, os que vão na vida rápida, os que encaram a autobiografia
até os 27 anos como um "tour de force".
Sorte dos que estão vivos aos 30 anos. Quem passa dos 15 aos
20, e depois dos 21 aos 29 anos, e sobrevive, mesmo que ainda não haja nada
garantido daqui para frente, mesmo a morte ou a vida, poderá, mesmo ainda, ter
a sorte de testar sua nova persona (ou não-persona) estoica, ex-louco,
ex-mártir, que olha um reflexo difuso do ímpeto porra-louca, olha com ternura
seu duplo antigo, superado.
“Enfant terrible" que agora é um ser que se rarefaz num
espelho já sem uso, miragem, nostalgia, você não viveu em 1967, conforme-se, e
já não há saudade, é a libertação do fardo de ser marginal e herói, agora este
duplo dança, mas bem longe, é uma casca, lago do passado remoto, mas uma
memória cara, cheia de afeto, como uma carta náutica solta no mar, memória
terna de tempos vividos, sumo biográfico e que o poeta diz: "confesso que
sobrevivi! (até aqui)".
"Enfant Terrible" é contemporaneamente conhecido
como o "vida loka", este jovem de todas as classes, ídolo e ícone,
que sempre teve bom trânsito, sempre teve, também, gente enfadonha, verdadeiras
malas no seu caminho, este transitar faz parte da festa, flâneur esportivo, sem
nunca ter sido vaselina. "Enfant Terrible" é marca biográfica, o que
escreve a mensagem do impossível, o oiticiano "seja marginal, seja
herói".
É reflexo da vida já contada, em ritmo e poesia, contra as
almas sebosas, filho do crime, mais honesto que o cartaz da hipocrisia, que não
se humilha ou baixa a cabeça, que não mistura mais as coisas, não compra e
vende a festa idiota dos que usam seu nome, súcia vestida de "cordeiro do
amor", mas você sabe o que ele quer ... súcia bárbara, suicida, homicida,
que mente e omite, que engana e que se auto-engana.
O estoicismo dos meus mais de 30 anos, o método do verdadeiro
descer o malho quando necessário, é a cristalização positiva, fruto do próprio
trabalho, nunca de outros, de regras antigas, aprendidas na senda torta da rua,
malhado em ferro quente, os anos de infante terrível que passou, ainda bem que
passou, mas o código não muda, mudam as ações, até a velocidade, mas a mente é
a mesma, todo reto é imutável, o que muda é a dimensão da ação, a precisão das
palavras e da crítica, aonde muitos chorariam e esperneariam, a moral da
"vida loka" ganha pausa refinada, sabedoria.
Por mais absurdo que pareça, é o cimento do Homem e deve ser
tratado como tal, estoicismo reto é poder, "Enfant Terrible" produz
um código para toda a vida, fruto da intuição, na mutante estrada do
inesperado. Eis que a inocência está morta, mas o sangue, já batido e fervido,
corre quente em artéria e veia, dando facadas em qualquer sanha ou astúcia, com
a visão clara, e com o mesmo dom visionário da anunciação daquele pequeno
príncipe do mundo cão.
“Enfant terrible", meu duplo cãozinho raivoso, tá
mudado, transmudado, com a sorte da sobrevida, ainda, e que do código de matar
ou morrer, agora é pacato cidadão, estoico na fita da discrição, não gosto de
gente espalhafatosa, me erra, agora a antena está ligada, mais do que nunca, os
sentidos em dia, já fez check-up da cabeça, tá feita, agora tudo é como deve
ser, e quem ainda não entendeu, vai sofrer, e não é problema meu.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/37847/14/enfant-terrible
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