''Não surpreende, portanto, que muitos sunitas iraquianos vejam
al-Baghdadi e o Estado Islâmico como uma Fênix Islamista, renascida das
cinzas da jihad de Abu Musab al-Zarqawi''
SURGIMENTO DO ESTADO ISLÂMICO E NOMENCLATURAS
A escalada do poder da organização armada que, em junho de 2014,
adotou o nome de Estado Islâmico foi rápida. Nos últimos anos, esse
grupo mudou de nome várias vezes. Originalmente parte da organização
al-Tawhid wal-Jihad, comandada por Abu Musab al-Zarqawi, tornou-se
depois o Estado Islâmico do Iraque (EII), grupo que acabou se fundindo
com a facção da Al-Qaeda no Iraque. Em 2010, quando Abu Bakr al-Baghdadi
se tornou seu líder, o grupo voltou a usar sua antiga denominação de
Estado Islâmico do Iraque. Em 2013, após uma fusão com um braço da
Frente Jabhat al-Nusra, um grupo jihadista sírio filiado à Al-Qaeda, a
organização mudou seu nome para Estado Islâmico do Iraque e do Levante
(al-Sham), mais conhecido pelo acrônimo EIIL (ISIL ou ISIS, nas siglas
em inglês). Por fim, pouco antes do anúncio da criação do Califado por
seus líderes, e EIIL tornou-se o Estado Islâmico. Na Síria, contudo,
desde o início e atualmente no Iraque também, o grupo é conhecido como
al-Dawlat, ou o Estado.
Os muçulmanos consideram o Estado Islâmico original, o primeiro Califado, cuja criação se deu no século VII pela ação do profeta Maomé e seus companheiros, uma sociedade perfeita governada por um mandato divino. E o nascimento do moderno Estado Islâmico apenas um dia antes da proclamação do Califado, significa o alcance de um importante novo estágio na criação de um Estado nacional, o processo de recriação das circunstâncias que, no século VII, levou à busca do estabelecimento da sociedade islâmica ideal.
E a transição do Al-Tawhid wal-Jihad para o status de Estado Islâmico no Iraque coincidiu com a decisão do grupo armado de al-Zarqawi de concentrar esforços no Iraque para restringir sua jihad a esse país, para alcançar, logo adiante, o objetivo último da organização: a restauração do Califado, na intenção deste grupo de ser bem-sucedido na reedição do Califado do século XXI. Pela primeira vez desde a Primeira Guerra Mundial, uma organização armada está redesenhando o mapa do Oriente Médio configurado no passado por franceses e britânicos, o Estado Islâmico está apagando as linhas de fronteira determinada pelo Acordo Sykes-Picot, estabelecido em 1916.
A EXPANSÃO DO ESTADO ISLÂMICO
Hoje, a bandeira preta e amarela do EI tremula sobre um território maior do que o Reino Unido ou do Texas, uma região que se estende das praias mediterrâneas da Síria até o coração do Iraque, a área administrada pelos sunitas. Desde o fim de junho de 2014, essa região é conhecida como o Califado Islâmico, denominação que deixara de existir com a dissolução do Império Otomano pelas mãos do general Ataturk, em 1924. Quanto ao Estado Islâmico, o que diferencia essa organização de todos os outros grupos armados que a precederam – incluindo os que militaram durante a Guerra Fria – e o que explica seus enormes sucessos são a sua modernidade e seu pragmatismo. Além disso, seus líderes demonstram uma compreensão sem paralelo das limitações enfrentadas pelas potências contemporâneas num mundo globalizado e multipolar.
Por exemplo, o EI entendeu, antes que a maior parte de seus oponentes conseguisse fazê-lo, que uma intervenção estrangeira conjunta do tipo que realizaram na Líbia e no Iraque não seria possível na Síria. Foi nesse cenário que os líderes do Estado Islâmico conseguiram explorar em benefício próprio o conflito na Síria, uma versão contemporânea da guerra por procuração mantida por muitos patrocinadores de conflitos e grupos armados. Desejosos de uma mudança de regime na Síria, kuaitianos, catarianos e sauditas têm se mostrado dispostos a financiar uma série de organizações armadas, das quais o EI é apenas uma. No entanto, em vez de travar a guerra por procuração bancada por seus financiadores, o Estado Islâmico tem usado o dinheiro fornecido por eles para estabelecer seus próprios bastiões territoriais em regiões financeiramente estratégicas, como nos ricos campos de petróleo do Leste da Síria.
A ESTRATÉGIA DO ESTADO ISLÂMICO
Por baixo do verniz religioso e das estratégias terroristas, jaz, porém, uma máquina político-militar totalmente empenhada na criação de um Estado nacional com políticas sociais e de gestão que garantem uma coesão relativa da população. Para muitos, o principal objetivo do Estado Islâmico é ser para os sunitas o que Israel é para os judeus: um Estado instalado em seu antigo território, restaurando nos tempos modernos um poderoso Estado teocrático que os protege onde quer que eles estejam. O que leva, por conseguinte, a uma eficiente mensagem à juventude muçulmana desprovida de direitos, que sobrevive no vácuo político criado por fatores conturbadores e dissolventes, tais como a corrupção generalizada, a desigualdade socioeconômica e a injustiça reinantes nos modernos Estados islâmicos, tais como a ditadura cruel de Bashar al-Assad, a recusa do governo de Nuri al-Maliki de integrar os sunitas na contextura da vida política iraquiana e acabar com a perseguição imposta a eles pela máquina de opressão política de Bagdá.,Mensagem que também seduz os que vivem no exterior, a deserdada juventude muçulmana na Europa e na América.
Graças a uma ampla e profissional utilização de redes sociais, o Estado Islâmico criou também mitos falsos para fazer proselitismo, recrutamento e levantamento de recursos financeiros pelo mundo islâmico, tendo ainda uma máquina de propaganda usada para fabricar o mito de al-Baghdadi e do novo Califado. O Islã sustenta-se, ademais, no mistério da volta do Profeta. Assim, ao mesmo tempo que o EI aterroriza os ocidentais com trucidações de uma barbaridade chocante, o grupo leva seus aliados e financiadores muçulmanos a acreditar que o profeta voltou à Terra nas vestes carnais de al-Baghdadi. Usando o aguilhão da violência e os códigos legais da xariá, juntamente com a vergasta propagandística das mídias sociais e uma série de programas sociais populares destinados a melhorar as condições de vida da população sunita aprisionada no Califado, o EI revela o profundo pragmatismo de que é senhor.
A RESTAURAÇÃO DO CALIFADO
Nos últimos três anos, o Estado Islâmico obteve sucessos sem precedentes. Com meios brutais e fria sagacidade, ele pode alcançar o historicamente inalcançável: a reconstrução do Califado. No período posterior à Segunda Guerra Mundial, nenhum grupo armado conseguiu apoderar-se de um território tão grande. No auge de sua militância, a OLP, de longe a maior organização armada do Oriente Médio, controlava apenas uma fração das terras que o Estado Islâmico governa hoje. De modo geral, essa façanha é vista como consequência do conflito na Síria, considerada a incubadora de uma nova espécie de terrorismo.
Sem dúvida, em meio às dores de parto de uma guerra civil pós-Primavera Árabe e com as entranhas infestadas de insurgentes islâmicos, os acontecimentos na Síria proporcionam oportunas bases explicativas para a exclusão da ideia da existência de um elo comum ligando o Estado Islâmico aos atentados do 11 de Setembro e à invasão americana do Iraque em 2003. O Ocidente e o mundo se aferram à ideia de que a realidade terrível no Iraque e na Síria atuais não tem precedente histórico, que não somos responsáveis pelos correntes acontecimentos no Oriente Médio. Assim, em contraste com as determinadas e resistentes forças da Al-Qaeda no Afeganistão ou o exército suicida de al-Zarqawi no Iraque, o Estado Islâmico é retratado como uma nova espécie: uma organização capaz de gerar enormes recursos financeiros, atuando como uma multinacional de violências, comandando um exército vasto e moderno e bancando soldados perfeitamente treinados.
Portanto, ao contrário do Talibã ou da Al-Qaeda, o Estado Islâmico administra vastos recursos financeiros, gerados em parte pela anexação de centros de produção, tais como campos de petróleo e usinas elétricas espalhados pela Síria. A área em que o EI supera de fato organizações armadas do passado encontra-se na esfera das proezas militares, na manipulação das mídias, em programas sociais e, sobretudo, na construção de um Estado e formação de uma identidade nacional. Aliás, esses avanços provém da capacidade do Estado Islâmico de adaptar-se a um ambiente pós-Guerra Fria em rápida transformação.
Hoje, atuamos em um mundo multipolar de alianças instáveis, abundante em terrorismos bancados por algumas nações. Foi por isso que o Estado Islâmico conseguiu estabelecer seu Califado numa vasta região fervilhante de conflitos religiosos, financiados por várias nações patrocinadoras de guerras. Por conta dessa atitude ousada, ele vem enfrentando mais de um inimigo – os exércitos sírio e iraquiano, a Frente Islâmica, uma coalizão de grupos jihadistas, os rebeldes sírios e até milícias xiitas e as forças curdas Peshmerga, todos empenhados em lutas numa multiplicidade de frentes de combate.
PROCESSO HISTÓRICO
E Abu Musab al-Zarqawi, por sua vez, foi um dos mais brilhantes e enigmáticos estrategistas da jihad moderna, um homem que desafiou abertamente a liderança histórica da Al-Qaeda, e que, como veremos, reacendeu o antigo e sangrento conflito entre sunitas e xiitas para usá-lo como um fator tático fundamental para o renascimento do Califado. Já o conflito na Síria proporcionou uma oportunidade única, uma plataforma de lançamento, para os que haviam assimilado a mensagem de al-Zarqawi e que desejavam concretizar o sonho dele, entre os quais Abu Bakr al-Baghdadi, o novo Califa. E o salafismo é o credo adotado pelo Estado Islâmico.
Em 2000, em Candaar, Afeganistão, al-Zarqawi encontrou-se com Osama bin Laden pela primeira vez. Numa atitude ousada, o jovem jihadista recusou um convite do saudita para ingressar na Al-Qaeda. Al-Zarqawi não estava preparado para lutar contra os Estados Unidos, o inimigo de terras distantes. Ao contrário disso, ele queria empenhar-se na luta contra o inimigo próximo, o governo jordaniano, e fundar um Estado verdadeiramente islâmico na região. Aliás, a entrada de al-Zarqawi na arena de luta iraquiana foi marcada pelos primeiros ataques suicidas no país.
Em agosto de 2003, muitos ocidentais acreditavam que o conflito no Iraque era, de um lado, uma luta bilateral entre forças de coalizão e seus aliados e, de outro, entre a milícia xiita de Moqtada al-Sadr e os fiéis seguidores de Saddam. Pelo movimento jihadista internacional, porém, a mensagem foi bem compreendida e assimilada. Al-Zarqawi havia sinalizado que o conflito no Iraque tinha duas frentes: uma contra as forças de coalizão e outra contra os xiitas. E sua principal tática terrorista eram missões suicidas.
Do fim de agosto de 2003 até dezembro de 2004, quando Osama bin Laden reconheceu-o oficialmente como o chefe da Al-Qaeda no Iraque, os jordanianos lideravam um grupo de jihadistas conhecido como Tawhid al-Jihad, cujo nome foi mudado mais tarde para Estado Islâmico no Iraque (EII, ou ISI, na sigla em inglês). Bin Laden, contudo, desaprovava a estratégia do EII de provocar uma divisão entre as insurgências de sunitas e xiitas, já que não compartilhava do receio de que um movimento de resistência nacionalista unificado pudesse surgir na condição de vitoriosa frente secular no Iraque, marginalizando assim os jihadistas.
Na primavera de 2004, o receio de al-Zarqawi foi confirmado quando a revolta xiita liderada por Moqtada al-Sadr despertou a admiração de insurgentes sunitas, que afixaram pôsteres do imã em muros das edificações de bairros sunitas. Pelo visto, Bin Laden estava errado. Foi nessa ocasião que os sauditas decidiram incorporar o grupo de al-Zarqawi à Al-Qaeda, batizando-o com o nome de Al-Qaeda no Iraque, para que se unisse a ela em sua guerra religiosa. Como emir da Al-Qaeda no Iraque, al-Zarqawi conseguiu atrair um número de seguidores e recursos suficientes para enfrentar as forças americanas, enquanto prosseguia com uma série implacável de atentados a bomba suicidas contra xiitas que estava empurrando o Iraque para a beira do precipício de uma guerra civil. Sua morte, num ataque aéreo americano em 2006, impediu a eclosão de um conflito religioso no Iraque e incapacitou temporariamente sua organização.
De 2006 em diante, porém, surgiu uma disputa pelo poder para a conquista do controle da Al-Qaeda no Iraque. Ao mesmo tempo, com o advento de um movimento que ficou conhecido como o Despertar Sunita, anciãos convenceram a população a voltar as costas aos jihadistas, passando a considerá-los estrangeiros e inimigos. Isso, combinado com a operação de reforço da estratégia militar americana, resultou no enfraquecimento de todos os grupos jihadistas no Iraque. Somente em 2010, quando Abu Bakr al-Baghdadi se tornou o líder do que sobrara do braço da Al-Qaeda no Iraque, as coisas começariam a mudar.
AL-BAGHDADI
Liderado por al-Baghdadi, o grupo voltou a adotar o nome original de Estado Islâmico no Iraque e, embora houvesse continuado a atacar alvos americanos no país, começou a distanciar-se da Al-Qaeda. Al-Baghdadi estava ciente da impopularidade da marca Al-Qaeda entre sunitas iraquianos após o Despertar e buscou projetar na mente do povo uma imagem com traços mais familiares e nacionalistas. Ele sabia também que, para a população sunita, o governo xiita, chefiado pelo primeiro-ministro Maliki, era ainda mais impopular que a Al-Qaeda. Consequentemente, ele atacou alvos xiitas, atiçando assim o conflito religioso.
Mas logo ficou patente que essa estratégia não produziria os frutos desejados, porquanto o EII era pequeno e fraco demais para provocar mudanças. Assim, al-Baghdadi viu no conflito sírio uma oportunidade para remodelar o grupo e fortalecer sua organização. Em 2011, al-Baghdadi despachou um pequeno grupo de jihadistas para a Síria, e a guerra por procuração na Síria serviu não apenas para fornecer aos membros do EII treinamento militar, mas proporcionou também os recursos financeiros para a remodelação do grupo, transformando-o não apenas em mais uma das muitas organizações jihadistas armadas, mas num participante de importância fundamental no jogo dos conflitos regionais, com sua própria fortaleza territorial e máquina militar.
E ao contrário dos líderes da Al-Qaeda, que evitavam lançar-se em conquistas territoriais para concentrar-se no combate ao inimigo de terras distantes, ou seja, os Estados Unidos, al-Baghdadi comungava na crença de al-Zarqawi de que, sem uma grande e forte base territorial no Oriente Médio, sua luta estaria fadada ao fracasso. O sonho acalentado por ele era tão ambicioso quanto o que al-Zarqawi alimentara: recriar o Califado de Bagdá por meio de uma guerra de conquista contra os inimigos próximos – as elites oligárquicas e corruptas que governavam a Síria e o Iraque, os xiitas.
A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO ISLÂMICO
Depois de um avanço e um recuo por volta de 2007, em 2014 al-Baghdadi conseguiu reinstalar seu formidável exército, na conquista do chamado Cinturão de Bagdá, ficando mais perto do estabelecimento do Califado. Não surpreende, portanto, que muitos sunitas iraquianos vejam al-Baghdadi e o Estado Islâmico como uma Fênix Islamista, renascida das cinzas da jihad de Abu Musab al-Zarqawi. Como califa, al-Baghdadi consolidou alguns baluartes na Síria e atraiu para suas fileiras combatentes do exterior empreendendo uma hábil campanha de propaganda.
Em 2013, o EII orquestrou uma fusão estratégica com membros da Frente al-Nusra. Essa aliança deu origem a uma nova organização: o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (al-Sham). Isso provocou, todavia, a cisão de vários comandantes da al-Nusra – que rejeitaram a fusão – e desencadeou reações de encarniçada rivalidade no seio da insurgência na Síria. Apesar das semelhanças ideológicas entre a Frente al-Nusra e o EII, muitos observadores encararam a fusão com desconfiança. Pois, enquanto o antigo grupo vinha se empenhando em ações para derrubar o governo de Assad, o EII sempre se concentrara nos objetivos de conquista de seu próprio território.
A fusão do grupo de Baghdadi com a al-Nusra deixou os dirigentes da Al-Qaeda furiosos. Ayman al-Zawahiri decidiu intervir na questão: ele reprovou a fusão e ordenou que al-Baghdadi voltasse para o Iraque, declarando que os comandantes da al-Nusra eram os verdadeiros representantes da Al-Qaeda na Síria. Assim como em 2003 al-Zarqawi ignorara as críticas da Al-Qaeda, em 2013 a resposta de al-Baghdadi às ordens de Zawahiri foi desafiadora: “Se tenho que escolher entre o governo de Deus e o governo de al-Zawahiri, escolho o governo de Deus.” Essas palavras simples confirmavam o crescente enfraquecimento da Al-Qaeda, em comparação com a estrela em ascensão da liderança do Estado Islâmico.
Apesar de tanta brutalidade, o Estado Islâmico e al-Baghdadi propuseram um programa que satisfaz os anseios de sunitas perseguidos. Essa nova entidade é apenas um Estado-fantasma, um corpo com a infraestrutura socioeconômica de um Estado, mas desprovido da alma do reconhecimento político e da identidade nacional de uma verdadeira nação. A restauração do Califado é um sonho dos pregadores da revivescência islâmica desde pelo menos 1950, e Abu Bakr al-Baghdadi é o primeiro líder islâmico, desde o 31° Califa, Abdülmecid I (1823 -61), a reivindicar esse título e a buscar a materialização da nostalgia de um mundo perdido, uma sociedade associada com o período áureo do Islã, quando, sob a liderança dos primeiros quatro califas, sucessores do profeta, o Islã se expandiu territorialmente e prosperou culturalmente.
Por sua vez, ao contrário do Talibã, que repelia tudo que envolvia tecnologia, no Estado Islâmico a propaganda ideológica é uma atividade que envolve alta tecnologia, administrada por profissionais qualificados, incluindo alguns ocidentais com alto nível de instrução. A propaganda ideológica do Estado Islâmico tem se mostrado muito sedutora para potenciais jihadistas, principalmente no Ocidente. Uma possível resposta para esse fenômeno intrigante está no conflito sírio. Ao contrário da Líbia ou do Iraque, a presença do Estado Islâmico na Síria representa um dilema diplomático para o Ocidente. (onde entram relações com a China e a Rússia, ou ainda a conciliação com o Irã, um xadrez). E foi somente quando o EI entrou no Iraque que o Ocidente começou a se interessar pelo conflito sírio e pelo Estado Islâmico.
Na Síria, bem como no Iraque, a competência de al-Baghdadi e de seu grupo no empenho de fazer os sunitas acreditarem que eles podem ser bem-sucedidos nos cometimentos em que todos fracassaram é uma façanha notável, por seu caráter de modernidade. No passado, nenhum grupo jihadista chegou sequer a ter os meios e o aparato para governar um Estado real. Essas deficiências, que vimos no Afeganistão com o Califado do mulá Omar, decorrem da visão medieval de sociedade esposada e difundida pelos adeptos do salafismo radical.
Embora o sonho do movimento jihadista sempre fora o de recriar o Califado, isso não passava de uma ideia vaga, romântica, totalmente inexequível nos tempos modernos, visto que os profitentes do salafismo rejeitavam a construção de um Estado moderno. Em vez disso, os sequazes do salafismo radical cristalizaram o conceito de sociedade ideal na forma de sua manifestação na Arábia do século VII. Para eles, todas as conquistas e adventos subsequentes são supérfluos e perigosos, desde a infraestrutura do Estado hodierno aos recursos da tecnologia moderna, tal como evidenciado pelo banimento da fruição das amenidades da música, do rádio e da TV imposto pelo Talibã.
OS MITOS DA GUERRA
Considerando as circunstâncias, o que al-Baghdadi fez, criando os próprios enclaves do Estado Islâmico do Iraque na Síria e administrando essas comunidades como autoridade política, com todos os instrumentos do Estado moderno, é realmente excepcional. Por outro lado, a fabricação do mito de al-Zarqawi foi bem-sucedida porque, após os atentados do 11 de Setembro, houve a necessidade urgente de se arranjar mais de um culpado pelas atrocidades cometidas pela Al-Qaeda, e Saddam Hussein, um ditador muito odiado, se encaixava nesse perfil.
Enquanto isso, Bush e Blair eram bem-sucedidos nas mentiras que contavam ao mundo e aos seus próprios governantes, que achavam inconcebível a possibilidade de que estavam sendo enganados. Os formadores da opinião pública mundial ainda se aferram à crença absurda de que, nos modernos Estados nacionais, a batalha diária na política é travada entre o bem e o mal. Aqueles que não se tornaram vítimas dessa fantasia sabiam, porém, que não havia nenhuma ligação entre a Al-Qaeda e Saddam Hussein e que a invasão do Iraque acabaria desestabilizando a região inteira.
Hoje, essas mesmas pessoas estão denunciando a fabricação de outro mito absurdo, não no Ocidente, mas no mundo islâmico, o do Califado e de seu líder, al-Baghdadi, estão testemunhando, ademais, por meio das mídias sociais, a paulatina concretização de outra tragédia anunciada. Após décadas de guerra e destruição pelas mãos da elite local, apoiada pelas potências ocidentais, os árabes sunitas e os muçulmanos querem muito acreditar que, finalmente, das cinzas de um mundo extinto há muito tempo, renasceu uma fênix magnífica. Ou seja, um Estado e um líder que lhes dará a longamente esperada libertação do presente infernal.
AL-QAEDA E ESTADO ISLÂMICO
Entre os feitos da Al-Qaeda, nada chegou perto sequer da criação de um Califado, e tampouco a organização envolveu-se diretamente nesse tipo de empreitada. Até porque seus líderes estavam ocupados demais com maquinações contra os Estados Unidos. “A Al-Qaeda é uma organização e nós somos um Estado”, explicou um combatente do estado Islâmico. Essa declaração resume as diferentes funções que os dois grupos armados desempenham aos olhos de muitos muçulmanos e o diferente tipo de ameaça que cada um deles representa para o mundo.
De acordo com essa definição de papéis, os atentados do 11 de Setembro foram um murro na cara dos ocidentais, ao passo que o estabelecimento do Califado foi um nocaute aplicado em seus principais aliados do Oriente Médio. Retrospectivamente considerado, o absurdo dos ataques contra o inimigo distante é óbvio. Mas Osama bin Laden tinha os recursos para maquinar os atentados do 11 de Setembro numa época em que outros jihadistas mal tinham dinheiro para a própria subsistência. Hoje, as coisas são diferentes. Enquanto o Estado Islâmico administra o Califado no solo histórico do Islã, o núcleo histórico da Al-Qaeda foi destruído, Bin Laden está morto e a organização que ele fundou foi reduzida a símbolo de mera panaceia jihadista genérica.
(obs: o texto é um resumo adaptado do livro “A Fênix Islamista – o Estado Islâmico e a reconfiguração do Oriente Médio, da autora Loretta Napoleoni)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor|
Blog: http://poesiaeconhecimento. blogspot.com
Os muçulmanos consideram o Estado Islâmico original, o primeiro Califado, cuja criação se deu no século VII pela ação do profeta Maomé e seus companheiros, uma sociedade perfeita governada por um mandato divino. E o nascimento do moderno Estado Islâmico apenas um dia antes da proclamação do Califado, significa o alcance de um importante novo estágio na criação de um Estado nacional, o processo de recriação das circunstâncias que, no século VII, levou à busca do estabelecimento da sociedade islâmica ideal.
E a transição do Al-Tawhid wal-Jihad para o status de Estado Islâmico no Iraque coincidiu com a decisão do grupo armado de al-Zarqawi de concentrar esforços no Iraque para restringir sua jihad a esse país, para alcançar, logo adiante, o objetivo último da organização: a restauração do Califado, na intenção deste grupo de ser bem-sucedido na reedição do Califado do século XXI. Pela primeira vez desde a Primeira Guerra Mundial, uma organização armada está redesenhando o mapa do Oriente Médio configurado no passado por franceses e britânicos, o Estado Islâmico está apagando as linhas de fronteira determinada pelo Acordo Sykes-Picot, estabelecido em 1916.
A EXPANSÃO DO ESTADO ISLÂMICO
Hoje, a bandeira preta e amarela do EI tremula sobre um território maior do que o Reino Unido ou do Texas, uma região que se estende das praias mediterrâneas da Síria até o coração do Iraque, a área administrada pelos sunitas. Desde o fim de junho de 2014, essa região é conhecida como o Califado Islâmico, denominação que deixara de existir com a dissolução do Império Otomano pelas mãos do general Ataturk, em 1924. Quanto ao Estado Islâmico, o que diferencia essa organização de todos os outros grupos armados que a precederam – incluindo os que militaram durante a Guerra Fria – e o que explica seus enormes sucessos são a sua modernidade e seu pragmatismo. Além disso, seus líderes demonstram uma compreensão sem paralelo das limitações enfrentadas pelas potências contemporâneas num mundo globalizado e multipolar.
Por exemplo, o EI entendeu, antes que a maior parte de seus oponentes conseguisse fazê-lo, que uma intervenção estrangeira conjunta do tipo que realizaram na Líbia e no Iraque não seria possível na Síria. Foi nesse cenário que os líderes do Estado Islâmico conseguiram explorar em benefício próprio o conflito na Síria, uma versão contemporânea da guerra por procuração mantida por muitos patrocinadores de conflitos e grupos armados. Desejosos de uma mudança de regime na Síria, kuaitianos, catarianos e sauditas têm se mostrado dispostos a financiar uma série de organizações armadas, das quais o EI é apenas uma. No entanto, em vez de travar a guerra por procuração bancada por seus financiadores, o Estado Islâmico tem usado o dinheiro fornecido por eles para estabelecer seus próprios bastiões territoriais em regiões financeiramente estratégicas, como nos ricos campos de petróleo do Leste da Síria.
A ESTRATÉGIA DO ESTADO ISLÂMICO
Por baixo do verniz religioso e das estratégias terroristas, jaz, porém, uma máquina político-militar totalmente empenhada na criação de um Estado nacional com políticas sociais e de gestão que garantem uma coesão relativa da população. Para muitos, o principal objetivo do Estado Islâmico é ser para os sunitas o que Israel é para os judeus: um Estado instalado em seu antigo território, restaurando nos tempos modernos um poderoso Estado teocrático que os protege onde quer que eles estejam. O que leva, por conseguinte, a uma eficiente mensagem à juventude muçulmana desprovida de direitos, que sobrevive no vácuo político criado por fatores conturbadores e dissolventes, tais como a corrupção generalizada, a desigualdade socioeconômica e a injustiça reinantes nos modernos Estados islâmicos, tais como a ditadura cruel de Bashar al-Assad, a recusa do governo de Nuri al-Maliki de integrar os sunitas na contextura da vida política iraquiana e acabar com a perseguição imposta a eles pela máquina de opressão política de Bagdá.,Mensagem que também seduz os que vivem no exterior, a deserdada juventude muçulmana na Europa e na América.
Graças a uma ampla e profissional utilização de redes sociais, o Estado Islâmico criou também mitos falsos para fazer proselitismo, recrutamento e levantamento de recursos financeiros pelo mundo islâmico, tendo ainda uma máquina de propaganda usada para fabricar o mito de al-Baghdadi e do novo Califado. O Islã sustenta-se, ademais, no mistério da volta do Profeta. Assim, ao mesmo tempo que o EI aterroriza os ocidentais com trucidações de uma barbaridade chocante, o grupo leva seus aliados e financiadores muçulmanos a acreditar que o profeta voltou à Terra nas vestes carnais de al-Baghdadi. Usando o aguilhão da violência e os códigos legais da xariá, juntamente com a vergasta propagandística das mídias sociais e uma série de programas sociais populares destinados a melhorar as condições de vida da população sunita aprisionada no Califado, o EI revela o profundo pragmatismo de que é senhor.
A RESTAURAÇÃO DO CALIFADO
Nos últimos três anos, o Estado Islâmico obteve sucessos sem precedentes. Com meios brutais e fria sagacidade, ele pode alcançar o historicamente inalcançável: a reconstrução do Califado. No período posterior à Segunda Guerra Mundial, nenhum grupo armado conseguiu apoderar-se de um território tão grande. No auge de sua militância, a OLP, de longe a maior organização armada do Oriente Médio, controlava apenas uma fração das terras que o Estado Islâmico governa hoje. De modo geral, essa façanha é vista como consequência do conflito na Síria, considerada a incubadora de uma nova espécie de terrorismo.
Sem dúvida, em meio às dores de parto de uma guerra civil pós-Primavera Árabe e com as entranhas infestadas de insurgentes islâmicos, os acontecimentos na Síria proporcionam oportunas bases explicativas para a exclusão da ideia da existência de um elo comum ligando o Estado Islâmico aos atentados do 11 de Setembro e à invasão americana do Iraque em 2003. O Ocidente e o mundo se aferram à ideia de que a realidade terrível no Iraque e na Síria atuais não tem precedente histórico, que não somos responsáveis pelos correntes acontecimentos no Oriente Médio. Assim, em contraste com as determinadas e resistentes forças da Al-Qaeda no Afeganistão ou o exército suicida de al-Zarqawi no Iraque, o Estado Islâmico é retratado como uma nova espécie: uma organização capaz de gerar enormes recursos financeiros, atuando como uma multinacional de violências, comandando um exército vasto e moderno e bancando soldados perfeitamente treinados.
Portanto, ao contrário do Talibã ou da Al-Qaeda, o Estado Islâmico administra vastos recursos financeiros, gerados em parte pela anexação de centros de produção, tais como campos de petróleo e usinas elétricas espalhados pela Síria. A área em que o EI supera de fato organizações armadas do passado encontra-se na esfera das proezas militares, na manipulação das mídias, em programas sociais e, sobretudo, na construção de um Estado e formação de uma identidade nacional. Aliás, esses avanços provém da capacidade do Estado Islâmico de adaptar-se a um ambiente pós-Guerra Fria em rápida transformação.
Hoje, atuamos em um mundo multipolar de alianças instáveis, abundante em terrorismos bancados por algumas nações. Foi por isso que o Estado Islâmico conseguiu estabelecer seu Califado numa vasta região fervilhante de conflitos religiosos, financiados por várias nações patrocinadoras de guerras. Por conta dessa atitude ousada, ele vem enfrentando mais de um inimigo – os exércitos sírio e iraquiano, a Frente Islâmica, uma coalizão de grupos jihadistas, os rebeldes sírios e até milícias xiitas e as forças curdas Peshmerga, todos empenhados em lutas numa multiplicidade de frentes de combate.
PROCESSO HISTÓRICO
E Abu Musab al-Zarqawi, por sua vez, foi um dos mais brilhantes e enigmáticos estrategistas da jihad moderna, um homem que desafiou abertamente a liderança histórica da Al-Qaeda, e que, como veremos, reacendeu o antigo e sangrento conflito entre sunitas e xiitas para usá-lo como um fator tático fundamental para o renascimento do Califado. Já o conflito na Síria proporcionou uma oportunidade única, uma plataforma de lançamento, para os que haviam assimilado a mensagem de al-Zarqawi e que desejavam concretizar o sonho dele, entre os quais Abu Bakr al-Baghdadi, o novo Califa. E o salafismo é o credo adotado pelo Estado Islâmico.
Em 2000, em Candaar, Afeganistão, al-Zarqawi encontrou-se com Osama bin Laden pela primeira vez. Numa atitude ousada, o jovem jihadista recusou um convite do saudita para ingressar na Al-Qaeda. Al-Zarqawi não estava preparado para lutar contra os Estados Unidos, o inimigo de terras distantes. Ao contrário disso, ele queria empenhar-se na luta contra o inimigo próximo, o governo jordaniano, e fundar um Estado verdadeiramente islâmico na região. Aliás, a entrada de al-Zarqawi na arena de luta iraquiana foi marcada pelos primeiros ataques suicidas no país.
Em agosto de 2003, muitos ocidentais acreditavam que o conflito no Iraque era, de um lado, uma luta bilateral entre forças de coalizão e seus aliados e, de outro, entre a milícia xiita de Moqtada al-Sadr e os fiéis seguidores de Saddam. Pelo movimento jihadista internacional, porém, a mensagem foi bem compreendida e assimilada. Al-Zarqawi havia sinalizado que o conflito no Iraque tinha duas frentes: uma contra as forças de coalizão e outra contra os xiitas. E sua principal tática terrorista eram missões suicidas.
Do fim de agosto de 2003 até dezembro de 2004, quando Osama bin Laden reconheceu-o oficialmente como o chefe da Al-Qaeda no Iraque, os jordanianos lideravam um grupo de jihadistas conhecido como Tawhid al-Jihad, cujo nome foi mudado mais tarde para Estado Islâmico no Iraque (EII, ou ISI, na sigla em inglês). Bin Laden, contudo, desaprovava a estratégia do EII de provocar uma divisão entre as insurgências de sunitas e xiitas, já que não compartilhava do receio de que um movimento de resistência nacionalista unificado pudesse surgir na condição de vitoriosa frente secular no Iraque, marginalizando assim os jihadistas.
Na primavera de 2004, o receio de al-Zarqawi foi confirmado quando a revolta xiita liderada por Moqtada al-Sadr despertou a admiração de insurgentes sunitas, que afixaram pôsteres do imã em muros das edificações de bairros sunitas. Pelo visto, Bin Laden estava errado. Foi nessa ocasião que os sauditas decidiram incorporar o grupo de al-Zarqawi à Al-Qaeda, batizando-o com o nome de Al-Qaeda no Iraque, para que se unisse a ela em sua guerra religiosa. Como emir da Al-Qaeda no Iraque, al-Zarqawi conseguiu atrair um número de seguidores e recursos suficientes para enfrentar as forças americanas, enquanto prosseguia com uma série implacável de atentados a bomba suicidas contra xiitas que estava empurrando o Iraque para a beira do precipício de uma guerra civil. Sua morte, num ataque aéreo americano em 2006, impediu a eclosão de um conflito religioso no Iraque e incapacitou temporariamente sua organização.
De 2006 em diante, porém, surgiu uma disputa pelo poder para a conquista do controle da Al-Qaeda no Iraque. Ao mesmo tempo, com o advento de um movimento que ficou conhecido como o Despertar Sunita, anciãos convenceram a população a voltar as costas aos jihadistas, passando a considerá-los estrangeiros e inimigos. Isso, combinado com a operação de reforço da estratégia militar americana, resultou no enfraquecimento de todos os grupos jihadistas no Iraque. Somente em 2010, quando Abu Bakr al-Baghdadi se tornou o líder do que sobrara do braço da Al-Qaeda no Iraque, as coisas começariam a mudar.
AL-BAGHDADI
Liderado por al-Baghdadi, o grupo voltou a adotar o nome original de Estado Islâmico no Iraque e, embora houvesse continuado a atacar alvos americanos no país, começou a distanciar-se da Al-Qaeda. Al-Baghdadi estava ciente da impopularidade da marca Al-Qaeda entre sunitas iraquianos após o Despertar e buscou projetar na mente do povo uma imagem com traços mais familiares e nacionalistas. Ele sabia também que, para a população sunita, o governo xiita, chefiado pelo primeiro-ministro Maliki, era ainda mais impopular que a Al-Qaeda. Consequentemente, ele atacou alvos xiitas, atiçando assim o conflito religioso.
Mas logo ficou patente que essa estratégia não produziria os frutos desejados, porquanto o EII era pequeno e fraco demais para provocar mudanças. Assim, al-Baghdadi viu no conflito sírio uma oportunidade para remodelar o grupo e fortalecer sua organização. Em 2011, al-Baghdadi despachou um pequeno grupo de jihadistas para a Síria, e a guerra por procuração na Síria serviu não apenas para fornecer aos membros do EII treinamento militar, mas proporcionou também os recursos financeiros para a remodelação do grupo, transformando-o não apenas em mais uma das muitas organizações jihadistas armadas, mas num participante de importância fundamental no jogo dos conflitos regionais, com sua própria fortaleza territorial e máquina militar.
E ao contrário dos líderes da Al-Qaeda, que evitavam lançar-se em conquistas territoriais para concentrar-se no combate ao inimigo de terras distantes, ou seja, os Estados Unidos, al-Baghdadi comungava na crença de al-Zarqawi de que, sem uma grande e forte base territorial no Oriente Médio, sua luta estaria fadada ao fracasso. O sonho acalentado por ele era tão ambicioso quanto o que al-Zarqawi alimentara: recriar o Califado de Bagdá por meio de uma guerra de conquista contra os inimigos próximos – as elites oligárquicas e corruptas que governavam a Síria e o Iraque, os xiitas.
A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO ISLÂMICO
Depois de um avanço e um recuo por volta de 2007, em 2014 al-Baghdadi conseguiu reinstalar seu formidável exército, na conquista do chamado Cinturão de Bagdá, ficando mais perto do estabelecimento do Califado. Não surpreende, portanto, que muitos sunitas iraquianos vejam al-Baghdadi e o Estado Islâmico como uma Fênix Islamista, renascida das cinzas da jihad de Abu Musab al-Zarqawi. Como califa, al-Baghdadi consolidou alguns baluartes na Síria e atraiu para suas fileiras combatentes do exterior empreendendo uma hábil campanha de propaganda.
Em 2013, o EII orquestrou uma fusão estratégica com membros da Frente al-Nusra. Essa aliança deu origem a uma nova organização: o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (al-Sham). Isso provocou, todavia, a cisão de vários comandantes da al-Nusra – que rejeitaram a fusão – e desencadeou reações de encarniçada rivalidade no seio da insurgência na Síria. Apesar das semelhanças ideológicas entre a Frente al-Nusra e o EII, muitos observadores encararam a fusão com desconfiança. Pois, enquanto o antigo grupo vinha se empenhando em ações para derrubar o governo de Assad, o EII sempre se concentrara nos objetivos de conquista de seu próprio território.
A fusão do grupo de Baghdadi com a al-Nusra deixou os dirigentes da Al-Qaeda furiosos. Ayman al-Zawahiri decidiu intervir na questão: ele reprovou a fusão e ordenou que al-Baghdadi voltasse para o Iraque, declarando que os comandantes da al-Nusra eram os verdadeiros representantes da Al-Qaeda na Síria. Assim como em 2003 al-Zarqawi ignorara as críticas da Al-Qaeda, em 2013 a resposta de al-Baghdadi às ordens de Zawahiri foi desafiadora: “Se tenho que escolher entre o governo de Deus e o governo de al-Zawahiri, escolho o governo de Deus.” Essas palavras simples confirmavam o crescente enfraquecimento da Al-Qaeda, em comparação com a estrela em ascensão da liderança do Estado Islâmico.
Apesar de tanta brutalidade, o Estado Islâmico e al-Baghdadi propuseram um programa que satisfaz os anseios de sunitas perseguidos. Essa nova entidade é apenas um Estado-fantasma, um corpo com a infraestrutura socioeconômica de um Estado, mas desprovido da alma do reconhecimento político e da identidade nacional de uma verdadeira nação. A restauração do Califado é um sonho dos pregadores da revivescência islâmica desde pelo menos 1950, e Abu Bakr al-Baghdadi é o primeiro líder islâmico, desde o 31° Califa, Abdülmecid I (1823 -61), a reivindicar esse título e a buscar a materialização da nostalgia de um mundo perdido, uma sociedade associada com o período áureo do Islã, quando, sob a liderança dos primeiros quatro califas, sucessores do profeta, o Islã se expandiu territorialmente e prosperou culturalmente.
Por sua vez, ao contrário do Talibã, que repelia tudo que envolvia tecnologia, no Estado Islâmico a propaganda ideológica é uma atividade que envolve alta tecnologia, administrada por profissionais qualificados, incluindo alguns ocidentais com alto nível de instrução. A propaganda ideológica do Estado Islâmico tem se mostrado muito sedutora para potenciais jihadistas, principalmente no Ocidente. Uma possível resposta para esse fenômeno intrigante está no conflito sírio. Ao contrário da Líbia ou do Iraque, a presença do Estado Islâmico na Síria representa um dilema diplomático para o Ocidente. (onde entram relações com a China e a Rússia, ou ainda a conciliação com o Irã, um xadrez). E foi somente quando o EI entrou no Iraque que o Ocidente começou a se interessar pelo conflito sírio e pelo Estado Islâmico.
Na Síria, bem como no Iraque, a competência de al-Baghdadi e de seu grupo no empenho de fazer os sunitas acreditarem que eles podem ser bem-sucedidos nos cometimentos em que todos fracassaram é uma façanha notável, por seu caráter de modernidade. No passado, nenhum grupo jihadista chegou sequer a ter os meios e o aparato para governar um Estado real. Essas deficiências, que vimos no Afeganistão com o Califado do mulá Omar, decorrem da visão medieval de sociedade esposada e difundida pelos adeptos do salafismo radical.
Embora o sonho do movimento jihadista sempre fora o de recriar o Califado, isso não passava de uma ideia vaga, romântica, totalmente inexequível nos tempos modernos, visto que os profitentes do salafismo rejeitavam a construção de um Estado moderno. Em vez disso, os sequazes do salafismo radical cristalizaram o conceito de sociedade ideal na forma de sua manifestação na Arábia do século VII. Para eles, todas as conquistas e adventos subsequentes são supérfluos e perigosos, desde a infraestrutura do Estado hodierno aos recursos da tecnologia moderna, tal como evidenciado pelo banimento da fruição das amenidades da música, do rádio e da TV imposto pelo Talibã.
OS MITOS DA GUERRA
Considerando as circunstâncias, o que al-Baghdadi fez, criando os próprios enclaves do Estado Islâmico do Iraque na Síria e administrando essas comunidades como autoridade política, com todos os instrumentos do Estado moderno, é realmente excepcional. Por outro lado, a fabricação do mito de al-Zarqawi foi bem-sucedida porque, após os atentados do 11 de Setembro, houve a necessidade urgente de se arranjar mais de um culpado pelas atrocidades cometidas pela Al-Qaeda, e Saddam Hussein, um ditador muito odiado, se encaixava nesse perfil.
Enquanto isso, Bush e Blair eram bem-sucedidos nas mentiras que contavam ao mundo e aos seus próprios governantes, que achavam inconcebível a possibilidade de que estavam sendo enganados. Os formadores da opinião pública mundial ainda se aferram à crença absurda de que, nos modernos Estados nacionais, a batalha diária na política é travada entre o bem e o mal. Aqueles que não se tornaram vítimas dessa fantasia sabiam, porém, que não havia nenhuma ligação entre a Al-Qaeda e Saddam Hussein e que a invasão do Iraque acabaria desestabilizando a região inteira.
Hoje, essas mesmas pessoas estão denunciando a fabricação de outro mito absurdo, não no Ocidente, mas no mundo islâmico, o do Califado e de seu líder, al-Baghdadi, estão testemunhando, ademais, por meio das mídias sociais, a paulatina concretização de outra tragédia anunciada. Após décadas de guerra e destruição pelas mãos da elite local, apoiada pelas potências ocidentais, os árabes sunitas e os muçulmanos querem muito acreditar que, finalmente, das cinzas de um mundo extinto há muito tempo, renasceu uma fênix magnífica. Ou seja, um Estado e um líder que lhes dará a longamente esperada libertação do presente infernal.
AL-QAEDA E ESTADO ISLÂMICO
Entre os feitos da Al-Qaeda, nada chegou perto sequer da criação de um Califado, e tampouco a organização envolveu-se diretamente nesse tipo de empreitada. Até porque seus líderes estavam ocupados demais com maquinações contra os Estados Unidos. “A Al-Qaeda é uma organização e nós somos um Estado”, explicou um combatente do estado Islâmico. Essa declaração resume as diferentes funções que os dois grupos armados desempenham aos olhos de muitos muçulmanos e o diferente tipo de ameaça que cada um deles representa para o mundo.
De acordo com essa definição de papéis, os atentados do 11 de Setembro foram um murro na cara dos ocidentais, ao passo que o estabelecimento do Califado foi um nocaute aplicado em seus principais aliados do Oriente Médio. Retrospectivamente considerado, o absurdo dos ataques contra o inimigo distante é óbvio. Mas Osama bin Laden tinha os recursos para maquinar os atentados do 11 de Setembro numa época em que outros jihadistas mal tinham dinheiro para a própria subsistência. Hoje, as coisas são diferentes. Enquanto o Estado Islâmico administra o Califado no solo histórico do Islã, o núcleo histórico da Al-Qaeda foi destruído, Bin Laden está morto e a organização que ele fundou foi reduzida a símbolo de mera panaceia jihadista genérica.
(obs: o texto é um resumo adaptado do livro “A Fênix Islamista – o Estado Islâmico e a reconfiguração do Oriente Médio, da autora Loretta Napoleoni)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor|
Blog: http://poesiaeconhecimento.
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