“Milei se projetou como um personagem histriônico e excêntrico”
Javier Milei foi eleito presidente da Argentina num movimento eleitoral que rompeu com a política recente e tradicional do país, o que inclui o peronismo, sua versão kirchnerista e a última versão liberal de governo realizada no governo Macri.
Milei apareceu no cenário político argentino eleito deputado, como um outsider, mais exatamente como um anarco-capitalista, o que pode ser entendido como mais uma liderança populista de extrema direita latino-americana, em versão ultraliberal. Foi eleito, por fim, como presidente, pelo partido A Liberdade Avança, vencendo o peronista Sergio Massa, ministro da Economia do governo anterior de Alberto Fernández.
O peronismo, que representa um amplo espectro da política argentina, vem dos anos 1940, e defende o estado de bem-estar social, incluindo bandeiras de justiça social e do trabalhismo. No século XXI tivemos a versão kirchnerista do peronismo nas figuras de Néstor e Cristina Kirchner, produzindo subgrupos como o La Cámpora, organização política juvenil de apoio ao kirchnerismo, e depois a Alberto Fernández, que governaram a Argentina de 2003 até 2015, numa reação à crise liberal do “corralito”.
Em 1989, embora seja de cepa peronista, o Partido Justicialista elegeu Carlos Menem, que acabou sendo um presidente liberal, vendendo as maiores estatais argentinas. Conseguiu reerguer a economia e se reelegeu em 1995. Problemas sociais, no entanto, foram a derrocada de Menem. Javier Milei, desta vez, encarna o ultraliberalismo, no que se chama de anarco-capitalismo, que tem origem em seu fundador teórico Murray Rothbard, um seguidor de Von Mises, que nos anos 1970 escreveu o livro “A ética da liberdade”, dando origem a este movimento que prega a liberdade do capital sem a intervenção do Estado, com a sua consequente extinção.
Javier Milei, ao se colocar como um anarco-capitalista, também se posiciona como antiperonista e anti kirchnerista, que propôs em sua campanha eleitoral a extinção do peso e a dolarização da economia argentina, mesmo com o país tendo parcas reservas da moeda norte-americana. Milei também se declara admirador de Domingo Cavallo, que guiou a economia no governo Menem e foi o idealizador do corralito sob o governo Fernando De la Rúa, numa tentativa de salvar os bancos argentinos através da intervenção do Estado.
A medida drástica do corralito adveio de uma queda contínua da economia argentina, chegando em 2001 com uma dívida externa de 144 bilhões de dólares, sofrendo sanções do FMI (Fundo Monetário Internacional), sob medo de calote argentino. O corralito foi o estabelecimento de um limite semanal de saques nos bancos argentinos, com aposentadorias sendo parceladas em até 12 vezes, gerando uma onda de saques comércios locais.
O resultado desta corrida de saques foi a convulsão social nas ruas, o chamado estallido social, num união da classe média agora falida, com os salários derretendo, e os piqueteiros, que fazem barricadas nas ruas. Em consequência da crise, Domingo Cavallo renuncia ao ministério da Economia em dezembro de 2001 e De la Rúa renuncia e foge de helicóptero da Casa Rosada, dias depois, dando lugar a 12 dias em que a Argentina teve cinco presidentes diferentes, até que Néstor Kirchner foi eleito presidente da Argentina nas eleições de 2002.
Com a crise argentina se alternando entre governos liberais e peronistas, a última versão foi o do neoliberal Mauricio Macri (em 2018, estive em Salta, e num muro estava pichado “Macri Basura”, cheguei a fotografar a pichação), que deu lugar a Alberto Fernández, peronista. Nenhum deles deu solução ao problema argentino, e a população elegeu Milei, num voto antissistema, disruptivo.
Depois de propor a chamada “Lei Ônibus”, texto-base de um superpacote de 664 artigos, Javier Milei se deparou com derrotas em questões como as envolvendo as privatizações das empresas estatais. Depois dessas derrotas, a “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, apelidada de “Lei Ônibus”, foi reduzida a um conjunto de 382 artigos. A chamada “Lei Ônibus” também sofreu protestos nas ruas, com uma grande greve geral que afetou toda a Argentina, com manifestantes que tomaram a Praça do Congresso argentino. As manifestações reuniram ativistas culturais, sindicatos e trabalhadores.
Por sua vez, o fim do imposto sindical, um dos pontos polêmicos do superpacote, que tinha sido suspenso pela Justiça Trabalhista da Argentina em 3 de janeiro, teve decisão confirmada pela Câmara Nacional de Apelações do Trabalho da Argentina em 30 de janeiro.
Quanto a DNU (Decreto de Necessidade e Urgência), este abarca medidas de reforma da organização do Estado argentino, sobretudo na economia, mas foi fortemente criticado pela oposição, levando à judicialização de alguns temas. Para tentar acabar com as disputas jurídicas, Milei propôs a tramitação do DNU no Congresso.
O DNU é diferente da Lei Ônibus, pois se trata de um decreto, ou seja, vale automaticamente depois de anunciado. Contudo, tópicos relacionados à justiça do trabalho, com propostas de desregularização, acabou sendo questionado judicialmente pela CGT (Confederação Geral do Trabalho), a principal central sindical da Argentina, que derrubou seis artigos do DNU.
Milei se projetou como um personagem histriônico e excêntrico, que recebe mensagens de seu falecido cachorro Conan, e que tem clones vivos. Um louco que parecia ouvir vozes durante a campanha, usando o símbolo de um Leão, agitadíssimo, fanfarrão, mais uma figura populista, destas que ganham eleições no grito, prometendo rupturas épicas e milagres titânicos. Parece que sua Lei Ônibus, contudo, de tão exagerada, poderia não curar o doente, mas envenená-lo de vez e matá-lo, o que foi limitado pelo Congresso, que se mostrou mais realista, e deteve a sanha reformista de Milei.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : O anarco-capitalismo de Milei - Século Diário (seculodiario.com.br)
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