"Fora do chamado "safe space", tudo passa a ser ofensivo e distorcido da realidade"
No Brasil, após os protestos de 2013, o PT perdeu o domínio que tinha sobre as pautas sociais e culturais da esquerda. Foi a partir das jornadas de junho de 2013 que surgiram movimentos e grupos autônomos, formados à revelia do PT, que até então adestrava os movimentos sociais e os sindicatos. Uma forma do PT tentar capturar novamente a agenda da esquerda como um todo, por sua vez, foi se inserindo na pauta identitária, que estava cada vez mais forte no Brasil e em parte do mundo.
Nos anos seguintes criou-se uma prática de lacração em que tudo que soasse correto no sentido de avanço nas defesas de minorias ou ainda movimentos como pela inocência de Dilma Rousseff e pelo Lula Livre se amalgamaram neste caldo cultural que agora era dominado pelo identitarismo. E este ímpeto justiceiro e da lacração deve muito à influência do movimento woke norte-americano.
No Brasil, por ter parte desta influência, aqui se herdou em alguns casos a tendência à intransigência e de ter uma propriedade absoluta da verdade que, por vezes, caracteriza o movimento woke, vide os cancelamentos feitos na base da histeria e da lacração. Ou seja, quando se chega ao extremo, o movimento woke interdita o diálogo, virando um monólogo da verdade inquestionável.
Fora do chamado “safe space” do movimento woke tudo passa a ser ofensivo, e isso dá vazão a maluquices de todo o tipo, de pseudo-intervenções na realidade que são, na verdade, pífias, inócuas, produto de uma vontade equivocada quando se trata de senso de realidade e do que é praticável empiricamente. Ou seja, podem aparecer perfis francamente delirantes do ponto de vista da capacidade de interpretar e entender as fronteiras reais do mundo da vida, e de como as coisas funcionam e se tornam funcionais.
Um exemplo acabado da faceta delirante do movimento woke é o revisionismo (que em psicologia pode ser chamado de onipotência) sobre obras como livros, filmes, peças de teatro, óperas, e a arte em geral, levando muitas vezes à tentativas de censura e de reescrever a História. Ou seja, temos que lidar com uma forma de interferência irrealista, desconjuntada, e que beira a idiotia.
A ideia de apropriação cultural também ganha lugar na pauta do movimento woke que, a princípio, deveria ser algo a ser debatido dentro de proporções razoáveis, só que, no contexto woke, mais uma vez a coisa descamba para o irrealismo, que tenta se revestir de um purismo imaginário, isto é, só existente para esta versão depauperada do movimento woke.
Sabemos que as diferentes culturas, historicamente, são intercambiáveis, e a ideia de apropriação cultural, se for levada ao pé da letra, como no caso do movimento woke, se tenta estabelecer algo que nunca existiu na História, isto é, a tese de culturas puras, imaculadas. Se for dar um exemplo do que chegou mais perto disso, talvez, foi o Japão Medieval, do Período Edo, que ficou isolado alguns séculos, até que houve a Revolução Meiji em 1868, e a consequente queda do Xogunato Tokugawa.
Por sua vez, pautas justas que vão de encontro ao racismo, machismo, homofobia, sexismo, misoginia etc, tomam uma proporção paranoica quando se trata de sua assunção pelo movimento woke, podendo ser até um desserviço para as reais necessidades das pautas minoritárias, e que não passam, por certo, pelas filigranas discutidas ad nauseam pelo movimento woke e seus pretensos tribunais virtuais de cancelamentos.
A paranoia, quando não se trata de episódio psicótico, mas de uma forma de encarar o que é supostamente ofensivo, por fim, distorce a percepção da realidade. O movimento woke tem uma dificuldade enorme de lidar com o mundo empírico dos fatos. A distorção do real é o efeito de seu desejo de uma verdade categórica, em que tudo fica subsumido à vontade mimada e autoritária de uma moral evanescente, metafísica, fantasmagórica em sua pureza, que é a moral irreal do movimento woke.
O tribunal do cancelamento seria, se for falar de História, um pastiche do que era a condenação ao ostracismo que era praticada em Atenas, e que se referia a alguém proscrito por motivos políticos, de ameaça à democracia. Aqui, no caso do movimento woke, a pena é inútil, muitas vezes, mas quando funciona, pode acabar com a vida de uma pessoa.
O pastiche se dá no sentido de uma histeria ou lacração que, a partir daí, não tem mais nenhuma comparação com o ostracismo ateniense. A diferença também está na fundamentação, que no caso do ostracismo ateniense era política, e no caso do cancelamento é inquisitorial, ligando-se ao que era a paranoia de um Torquemada e de um Savonarola, na Santa Inquisição, mais do que de uma motivação legítima de proteção a valores civilizatórios, como no caso do ostracismo ateniense.
Outra pauta em voga, relacionada ao lugar de fala, também ganha uma versão deslocada e exagerada do movimento woke. O protagonismo, a representatividade, acabam virando peças estanques, inamovíveis, mais uma vez, interditando o diálogo ou debate real. O lugar de fala, propriamente dito, descreve uma voz original, que tem a vivência do que diz, ou seja, além do conhecimento acadêmico ou livresco, a pessoa viveu e fala do que viveu, este sendo o sentido do lugar de fala, o que não abre o precedente de criar um interdito para outras vozes sobre o mesmo tema.
Um exemplo é sobre o antirracismo, que propõe ao próprio branco esta postura, ou seja, aqui o lugar de fala continua sendo respeitado, não existe contradição de termos que se excluem, a pauta antirracista é consciente tanto do lugar de fala como da necessidade de universalização do discurso para torná-lo mais robusto e combativo.
Não ter medo de falar, ser franco, direto, também é ampliar a voz debatida para que a sociedade civil como um todo fique a par do que se está combatendo. Temas controversos, com discordâncias e dúvidas, no espaço público, é uma necessidade contemporânea, para levar a uma transvaloração dos costumes e práticas sociais e culturais, e a uma reforma da percepção, criando um mundo melhor e mais justo, com mais inclusão e menos preconceitos.
O processo de idiotização por parte do movimento woke, contudo, distorceu um debate importante, um movimento imerso numa fábula de perfeição imaculada, de virtudes absolutas de um politicamente correto neurótico, paranoico, posando de descolado, e virando tema de mídia social lacradora, de influencers ou artistas deslumbrados, com novilíngua, tentativas de moldar o gosto do público, e outras baboseiras que empobrecem pautas importantes.
A pauta identitária, por exemplo, acaba virando o que condena, um identitarismo que condena o estereótipo de modo absoluto, o que é bem estereotipado. O combate ao rótulo, que é necessário, ganha uma versão exagerada no identitarismo e temos, mais uma vez, as distorções da realidade produzidas pela herança do movimento woke. E a estereotipia que tenta ser cool, descolada, vira a caricatura de novilíngua que perdeu o fio da meada do combate real aos inimigos da liberdade, que estão ocupando os espaços reais de poder, e não fazendo ginástica linguística como se fosse uma revolução.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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