Um golpe e tudo o que se vê na dança de Salomé é a cabeça de João Batista, na pia batismal o impostor canta nas nuvens sua vida de nefelibata. Ardor, o horror na chuva que cai como tempestade, nada mais que o rito que foge na escada e pelo vão, a rua está imunda, o caos se instala nos becos, as garrafas de vinho estão espalhadas pela taberna, Márcio está embriagado, o Luís corre na pindaíba, está sem um puto, pede emprestado sem pagar, cai a noite, a tempestade, a mulher Salomé oferece o corpo por cem copeques. Uma roupa fajuta é que veste o menino Roque, toda a sua astúcia está em rimar o puteiro com dinheiro. Nada mais há nesta noite, o cais está manso e dormente, lá o pescador Alves está encastelado, com trinta dentões para vender na próxima aurora.
Pano rápido : a peça montada estava atrasada, o diretor
sonhava em estreia rápida, mas o produtor desistiu. Nada sobra deste sonho, o
poeta pinta este esmalte enfadonho, que grita, qual um demente. Desta feita, o
modo frígio empresta às escalas um ar sucinto, as garras da paixão lutam contra
o frio. O poeta está violento como o mar, e vil como um raio. A mulher Salomé
corta a cabeça de um velho esbanjador, lhe dá o nome próprio, escroque. Um corrupto
a menos, grita Márcio, e toma um gole fervoroso de cerveja alemã. Roque dá de
ombros, teria uma comissão de Salomé, a santa da noite.
Os castelos das fábulas são como eram nos contos infantis, os
algodões, os acolchoados, todo um conforto perdido, o choro soprando e o riso
no campo, tudo se perdeu na noite suja, Roque é vil como um ser criado sem destino.
A peça está cancelada, a taberna está cheia. Vai-te o músico, o sino toca a
corneta, o tombo do navio, o sal que surge na esmeralda, espuma e beira de
praia, um vento suave, qual zéfiro.
Estoura uma corda do violão, vinte quilômetros para chegar ao
pouso, uma violência imortal, um dia fatal, uma seta no coração, os mortos da
chuva, puro ataque de tiro, uma plateia chocada, um soco na cara.
Roque volta e rouba o velho adormecido, Salomé lhe dá mais
uns trocados. Foda-se, diz o vil menino. Fábulas são contadas aos magotes, um
puro furor de poesia encanta tomadas de set bêbado. Creia, hipócrita, que o sol
não está aqui na noite, que a lua empalidece no meio da madrugada. Vento venta
que nem um sopro, pois a ventania é um hausto, ao peito cheio de sonho, que
infla como um balão que irrompe e cresce.
Vai-te pintor, à roda de sua tortura, trotar com o cavalo xucro
de seu pincel, e uma goiva prateada para fazer um boneco mambembe. O poeta está
todo cheio de marfim, um mármore pedra e salinas, toda uma fervura, seu gesso estalado,
sua briga esbofeteada.
É vã a noite de lua, toda esta miséria vã, vilania e noitada,
a crise social enlutada, a luta renhida e o fracasso que vai à taberna,
junta-se toda uma gama de idiotas, a noite é uma febre surgida na vinha, seu
elenco é medonho. O poeta se suicida, é um mártir, se regela, se fulmina, tem o
peito brotado, estourado, como uma floração, tem a memória enevoada, e seu fumo
se espalha no saloon.
Creia, hipócrita, que a fúria do rei mata o fraco, sua fúria
de rei que mata o fracasso, tem na noite seu canto imortal, creia, idiota, que
o navio chega ao porto como se sabe, o mar violento nunca nos mata, aos que
nadam ao norte, de seu sul o frio e o gelo já traçados, ao que passa solene
para sua praia de sal, e se banha qual peixe. O cadáver que boia na sopa,
creia, hipócrita, idiota, é do pasmado que se derreteu em seu fogo exangue.
O poeta está sempre atento, e o tiro de sua bala atravessa o
caminho em seu estampido, sua espoleta voa na cara do que dorme, e seu sol está
sempre vivo, o ataque é sempre frontal, certeiro, atira para matar, e a vida
imortal nunca cessa, o mar se abre, seu sangue se mistura à areia e ao mar,
flutua seu navio que ruma, todo este sol violento, inclemente, ele bem o quis.
Poema em prosa – 26/08/2021
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário