PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O SOL VIOLENTO

Um golpe e tudo o que se vê na dança de Salomé é a cabeça de João Batista, na pia batismal o impostor canta nas nuvens sua vida de nefelibata. Ardor, o horror na chuva que cai como tempestade, nada mais que o rito que foge na escada e pelo vão, a rua está imunda, o caos se instala nos becos, as garrafas de vinho estão espalhadas pela taberna, Márcio está embriagado, o Luís corre na pindaíba, está sem um puto, pede emprestado sem pagar, cai a noite, a tempestade, a mulher Salomé oferece o corpo por cem copeques. Uma roupa fajuta é que veste o menino Roque, toda a sua astúcia está em rimar o puteiro com dinheiro. Nada mais há nesta noite, o cais está manso e dormente, lá o pescador Alves está encastelado, com trinta dentões para vender na próxima aurora.

Pano rápido : a peça montada estava atrasada, o diretor sonhava em estreia rápida, mas o produtor desistiu. Nada sobra deste sonho, o poeta pinta este esmalte enfadonho, que grita, qual um demente. Desta feita, o modo frígio empresta às escalas um ar sucinto, as garras da paixão lutam contra o frio. O poeta está violento como o mar, e vil como um raio. A mulher Salomé corta a cabeça de um velho esbanjador, lhe dá o nome próprio, escroque. Um corrupto a menos, grita Márcio, e toma um gole fervoroso de cerveja alemã. Roque dá de ombros, teria uma comissão de Salomé, a santa da noite.

Os castelos das fábulas são como eram nos contos infantis, os algodões, os acolchoados, todo um conforto perdido, o choro soprando e o riso no campo, tudo se perdeu na noite suja, Roque é vil como um ser criado sem destino. A peça está cancelada, a taberna está cheia. Vai-te o músico, o sino toca a corneta, o tombo do navio, o sal que surge na esmeralda, espuma e beira de praia, um vento suave, qual zéfiro.

Estoura uma corda do violão, vinte quilômetros para chegar ao pouso, uma violência imortal, um dia fatal, uma seta no coração, os mortos da chuva, puro ataque de tiro, uma plateia chocada, um soco na cara.

Roque volta e rouba o velho adormecido, Salomé lhe dá mais uns trocados. Foda-se, diz o vil menino. Fábulas são contadas aos magotes, um puro furor de poesia encanta tomadas de set bêbado. Creia, hipócrita, que o sol não está aqui na noite, que a lua empalidece no meio da madrugada. Vento venta que nem um sopro, pois a ventania é um hausto, ao peito cheio de sonho, que infla como um balão que irrompe e cresce.

Vai-te pintor, à roda de sua tortura, trotar com o cavalo xucro de seu pincel, e uma goiva prateada para fazer um boneco mambembe. O poeta está todo cheio de marfim, um mármore pedra e salinas, toda uma fervura, seu gesso estalado, sua briga esbofeteada.

É vã a noite de lua, toda esta miséria vã, vilania e noitada, a crise social enlutada, a luta renhida e o fracasso que vai à taberna, junta-se toda uma gama de idiotas, a noite é uma febre surgida na vinha, seu elenco é medonho. O poeta se suicida, é um mártir, se regela, se fulmina, tem o peito brotado, estourado, como uma floração, tem a memória enevoada, e seu fumo se espalha no saloon.

Creia, hipócrita, que a fúria do rei mata o fraco, sua fúria de rei que mata o fracasso, tem na noite seu canto imortal, creia, idiota, que o navio chega ao porto como se sabe, o mar violento nunca nos mata, aos que nadam ao norte, de seu sul o frio e o gelo já traçados, ao que passa solene para sua praia de sal, e se banha qual peixe. O cadáver que boia na sopa, creia, hipócrita, idiota, é do pasmado que se derreteu em seu fogo exangue.

O poeta está sempre atento, e o tiro de sua bala atravessa o caminho em seu estampido, sua espoleta voa na cara do que dorme, e seu sol está sempre vivo, o ataque é sempre frontal, certeiro, atira para matar, e a vida imortal nunca cessa, o mar se abre, seu sangue se mistura à areia e ao mar, flutua seu navio que ruma, todo este sol violento, inclemente, ele bem o quis.

Poema em prosa – 26/08/2021

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

 

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