“temos a relação explosiva entre Werner Herzog e Klaus Kinski
que, apesar destas dificuldades, tinha como resultado um bom trabalho”
Em meio a problemas com prazo, financeiro e de pessoal, já
tendo tido problemas com Mick Jagger que faria uma turnê antes do fim das
filmagens, Werner Herzog faz teste de vídeo com Paul e Huerequeque, e ele
percebe que terá muito trabalho com os dois, sobretudo Huerequeque que parecia
angustiado e travado. E Herzog decide, em relação a José Lewgoy, fundir dois
papéis, o de Borja e o de Don Aquilino em um só, pois percebe que já havia
coadjuvantes demais, e o personagem de Mick Jagger, Wilbur, é retirado de vez
do roteiro, sem substituto.
Em Camisea, Herzog nos descreve sua condição áspera :
“Acordei para um horror que até então não conhecia : eu me vi totalmente
desprovido de sentimentos, tudo havia desaparecido, era como se eu de repente
tivesse perdido algo que me fora confiado à noite para ser especialmente
cuidado na madrugada; encontrei-me de novo como alguém que assumiu a guarda de
toda uma multidão adormecida, mas que de súbito se descobre em seu momento mais
misterioso, cego, surdo e apagado. Tudo desaparecera. Sentia-me completamente
vazio, sem dor, sem alegria, sem anseio, sem amor, sem calor e amizade, sem
fúria, sem ódio. Nada; nada mais estava lá; eu, feito uma armadura sem
cavaleiro dentro. Demorou até que eu fosse pelo menos tomado por algo que se
assemelhasse a um susto.”
Em Camisea Herzog faz algumas filmagens, vinte campas já
haviam construído uma estrutura leve e provisória, em torno da árvore
gigantesca perto da antiga plataforma, oito deles foram filmados dando
machadadas nas enormes raízes que se erguiam até cinco metros, Herzog carregou
uma câmera e um tripé. Logo em seguida não foi possível derrubar a árvore
gigantesca, e ainda pendeu para o lado errado, prendendo a serra elétrica de El
Tigre, ficando com a correia enfiada na madeira. Após mais um dia e meio de
resistência, a árvore então caiu. A plataforma de trabalho estava em perigo e o
local foi evacuado.
Em Camisea Herzog descreve a prova de figurinos, e nos diz :
“Os cabelos de Paul foram cortados, e os de Kinski passaram por uma leve
coloração. Vários acessos de fúria de K., um deles porque alguém tocou em seu
cabelo. Nem meu cabeleireiro pode encostar no meu cabelo, gritou K. fora de si,
mas quando eu próprio lhe ajeito o chapéu e o os cabelos, ele acha meu toque
natural. Enquanto ele já gritava por causa de outra bobagem, névoas silenciosas
invadiram o vale e foram se devorando levemente em direção à parte mais
profunda da floresta.”
Herzog continua sua descrição : “Gustavo chegou ontem com o
helicóptero. Acordamos bem cedo para fazer testes de voo. Enquanto isso, os
atores foram elevados com as roldanas para as copas das árvores. Kinski se fez
de “vítima”, dizendo que tivera febre e vomitara a noite inteira – é algo que
ele finge para atrair a atenção de todos. De Pucallpa chegou a notícia
entrecortada e quase incompreensível de que o avião de Cabaña teria caído com o
piloto, o alto e magro, e dois, talvez até mais campas em Oventeni. Tinham
levado dois dos acidentados de avião para a UTI em Lima, passando por Satipo.
K., que se viu totalmente distanciado do foco das atenções,
começou a berrar feito um alucinado, reclamando que seu café estava apenas
morno, e não houve meio de acalmá-lo; isso seria de importância crucial, pois
com dificuldade escutávamos as notícias entrecortadas, como que vindo de longe,
no rádio de ondas curtas, para saber se era o caso de adotar quaisquer outras
medidas de salvamento. Depois de horas seguidas de fúria, comi meu último
pedaço de chocolate, que mantivera escondido na cabana, bem perto da cara de K.,
ele que, por qualquer motivo, botava os bofes para fora de tanto reclamar,
sempre a um palmo de distância da minha cabeça, até que, quando não podia mais,
aquietava-se de repente.”
E Herzog nos dá a descrição sinistra do pongo : “Para os
índios, o mundo acaba no pongo; nunca ninguém daqui avançou por suas
corredeiras rio acima, apesar de às vezes chegarem boiando troncos de balsas e
outros indícios de pessoas distantes, de um mundo do outro lado, desconhecido.
À margem de um banco de areia eu vi um morto inchado, o corpo parcialmente
enfiado na areia. Provavelmente era um soldado, pois o cadáver túrgido ainda
mantinha a calça camuflada. Estava de costas, a carne intumescida, a barriga
estufada. Usava o que restara de uma
camiseta verde-oliva e estava descalço. Ninguém se atrevia a tocá-lo. Um
mistério tenebroso o envolvia.”
Herzog segue sua descrição ; “Kinski e Paul vieram sem pensar
muito. Kinski me puxou de lado e, em um dos raros momentos em que conversamos
abertamente, ele me disse que, se eu afundasse, ele afundaria junto. Eu lhe
disse apenas que ele saiba como o navio tinha sido construído, com reforços de
aço por dentro e câmaras de ar separadas – eu não queria afundar e, portanto,
já havia tomado as providências técnicas para que isso não acontecesse.
Trocamos um furtivo aperto de mãos. Pude ainda pegar o toca-discos e
providenciei agulhas de costura com Gisela, pois a vitrola não tinha agulha. A
partida acabou atrasando bastante. Pelo piloto, que havia se comunicado via
rádio do acampamento dos índios com o Huallaga, fiquei sabendo que haviam
acabado de chegar do alto do Camisea graves feridos por flechas, e estavam
sendo operados em caráter de emergência.
Corri para o posto médico e vi um homem e uma mulher, ambos
atingidos por flechas gigantescas. Estavam pescando para o acampamento, apenas
três horas rio acima; tinham ido de lancha, passado a noite em um banco de
areia e sido flechados de madrugada por amehuacas, a curta distância. A mulher
foi atingida por três flechas e quase morreu de hemorragia. As flechas estavam
bem perto uma da outra. Uma flecha atravessara o abdome acima dos rins, outra
atingira o osso do quadril, e a mais perigosa estava enfiada na parte interna
do osso da pelve, quebrada no meio da barriga. Eu ajudei na operação durante algumas
horas, iluminando a barriga com uma forte lanterna, enquanto com a outra mão,
livre, tentava espantar com repelente as nuvens de mosquitos atraídos pelo
sangue. O homem tinha na garganta a ponta de uma flecha de mais de trinta
centímetros. A flecha de quase dois metros de comprimento, que ele quebrara,
segurava-a na mão; em estado de choque, não a entregava por nada. A ponta da
flecha, que mais parecia a ponta de uma lança, havia cindido um dos ombros ao
longo da clavícula, indo se enfiar no pescoço, perfurando-o e atingindo ainda o
outro ombro.
Ele parecia correr menos risco de vida, e por isso foi
operado depois da mulher. Aconteceu o seguinte : o homem, sua esposa e um
terceiro homem, mais jovem, todos os três machiguengas de Shivankoreni, que nos
fornecem mandioca, haviam subido o Camisea para caçar. Passaram a noite em um
banco de areia, e, no meio da madrugada, a mulher acordou, pois o marido, ao
seu lado, respirava estranhamente. Ela pensou que uma onça o tivesse pego pela
garganta; da fogueira, pegou um pedaço de madeira ainda em brasa e se levantou
num pulo. Nesse momento, foi alvejada por três flechas. O homem mais jovem
acordou; ele tinha uma espingarda e, percebendo a situação, deu dois tiros às
cegas, já que tudo isso se passava na mais negra escuridão e em silêncio
absoluto. Nenhum dos três viu os amehuacas agressores, que sumiram, deixando
pegadas na areia. Somente na manhã seguinte, por volta das onze horas,
justamente quando eu saía com Paul e Kinski, os feridos chegaram ao ponto onde
estávamos, no peke-peke manobrado
pelo terceiro homem, que não se ferira.”
E Herzog segue sua descrição, mais uma vez sobre os amehuacas
: “Hoje pela manhã, sob a névoa, trinta homens partiram em peke-pekes, armados, quase todos guerreiros campa, para o local do
ataque a fim de seguir as pegadas e, como se diz, prender os criminosos e
entregá-los às autoridades. Que o céu impeça isso de acontecer. Quase nada se
sabe sobre os amehuacas : vivem de forma seminômade no alto do Camisea, a cerca
de dez dias de distância, e aparentemente, como o nível do rio estava muito
baixo, seguiram rio abaixo supostamente em busca de ovos de tartaruga, pois
agora é a época. Todas as tentativas dos militares ou missionários de entrar em
contato com os amehuacas deram errado, porque estes nunca são vistos e sempre
atacam à noite. Tampouco puderam ser localizados de avião, pois não abrem
clareiras como as outras tribos, para fazer chakras
que cultivam por alguns anos e depois vão embora. Mas sua língua é
relativamente bem conhecida, tanto que há cerca de dez anos um menino amehuaca
muito doente chegou em uma pequena balsa e sobreviveu no hospital de Atalaya.”
E aqui mais uma descrição de Herzog sobre os acessos de fúria
de Klaus Kinksi : “Tive uma discussão violenta e absurda com Kinski por causa
de sua água mineral, com a qual ele agora quer se lavar. Fora isso, calmaria.
De repente, o berro de Kinski flamejou, atiçado de novo, mas não estava
associado a nada daqui nem a qualquer outra coisa. Ele gritava fora de si, que corja,
que canalhas eram pessoas como Sergio Leone e Corbucci, esses filhos da puta
ciclópicos. Demorou muito até K. voltar a si. Seu berro inflamou então mais uma
vez rapidamente, que porco impiedosamente sem talento, impiedosamente gordo era
Fellini. Eu dormi então no final da manhã.”
Nesta parte da série sobre as filmagens de Fitzcarraldo,
agora temos a relação explosiva entre Werner Herzog e Klaus Kinski que, apesar
destas dificuldades, tinha como resultado um bom trabalho, o que já tínhamos
visto em Aguirre, A Cólera dos Deuses e a nova versão de Nosferatu, esta
relação entre dois personagens do cinema mundial rendeu belos frutos, mesmo em
meio à violência toda na qual isto se tornava possível, abaixo vou colocar um
link de um destes acessos de fúria de Kinski, e a dinâmica que Herzog exercia
no meio disto, retrato de uma filmagem caótica que, para alguém extremamente
irascível como Kinski, foi algo também extremo.
Link recomendado : Klaus Kinski - Fitzcarraldo fight (with
English subtitles!) : https://www.youtube.com/watch?v=MPKODzv1PD4
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/herzorg-e-o-embate-com-kinski-a-furia-em-fitzcarraldo
Nenhum comentário:
Postar um comentário