“mesmo que se tratasse de uma ideia insana, seria a
realização de um trabalho original e corajoso.”
Herzog continua a sua narrativa, e nos dá mais uma descrição
naturalista : “Nosso macaco escapou da gaiola e rouba coisas da mesa posta
quando ainda não há ninguém. Levou quase todos os garfos consigo. Hoje pela
manhã ele roubou a mamadeira de leite da filhinha da Glória, e ela viu como ele
esvaziou a mamadeira, mamando no bico, escondido num arbusto.”
E logo vêm problemas, quando se reduz o número de figurantes
do filme pela metade, e Herzog lamenta não ter nem mesmo um assistente, e
Herzog diz : “dezesseis pessoas devem formar o núcleo da equipe. Se o mesmo
filme fosse produzido em Hollywood, ele não seria possível com menos de 250
pessoas.”
Em meio a uma ameaça de greve geral, o Narinho II está parado
em Pucallpa, Herzog espera a chegada de cinco mexicanos e, do Brasil, a equipe
de som mais o ator José Lewgoy, e para piorar para Herzog, havia pessoas
querendo abandonar Iquitos antes da greve, acontecem atritos com os
figurinistas, cujos figurinos estavam dispersos pelas instalações, as queixas
ameaçavam o início de uma confusão.
Depois, o clima fica mais tranquilo, e começam as filmagens,
até para Herzog evitar estagnação e novas confusões. No Rio Camisea, um casal
de jovens pega uma canoa, inadvertidamente, e vão para o rio, um deles se afoga
e morre, Herzog fica arrasado. A busca pelo morto é sem sucesso. E Herzog ainda
enfrenta problemas com o navio para o filme.
Herzog então nos descreve, no decorrer dos acontecimentos :
“Robards está cada vez mais depressivo; Adorf, cada vez mais insuportável, com
ataques de estrelismo; não consegue suportar o fato de às vezes os figurantes
índios serem mais importantes que ele, o ator. Mas ele é apenas um covarde,
manhoso, burro, burro como uma porta, como diz Mauch. Jerry Hall chegou ontem,
de avião, a Camisea.”
E Herzog segue : “Quanto à cena sobre a plataforma belvedere,
Adorf, que quase morre de covardia, declarou-a perigosa, insegura e supérflua,
antes mesmo de tê-la visto, e começou a falar em fazer tudo a um metro do chão,
usando, por sua vez, R. como porta-voz. Mas é preciso reconhecer a geografia no
filme : dois rios que quase se encontram e apenas uma montanha entre eles, por
cima da qual o navio precisa ser equilibrado. Sem a compreensão desse fato, o
sentido da história se perde.”
Herzog segue em seu relato : “Espera sobre um banco de areia;
costuma ser estável, mas está tão intumescido pela água, que afundamos muito
nele. O navio, com mais de cem índios, ainda não está na posição. Na floresta
do outro lado do rio, trabalhadores estão cortando uma série de grandes árvores
com serras elétricas, para que elas, assim esperamos, caiam em uma fileira,
como peças de um dominó.
Estou me comunicando com eles por um walkie-talkie, quando ouço, de repente, mensagens de rádio dos
Estados Unidos, de Kansas City. Uma mulher conversava com o marido que era
caminhoneiro e estava fora, e a conversa dos dois soava artificial e estranha,
sobretudo pela mulher, que falava como se estivesse em um comercial de TV; mas
era uma conversa particular, escutada das profundezas da floresta.”
Herzog continua enfrentando problemas, a situação era bem
complexa, e segue seu relato : “As notícias que chegaram hoje até mim são
claras : R. não vai voltar para a floresta, em hipótese alguma. Pareceres
médicos, escaramuça jurídica para marcar posição contra possíveis exigências de
indenização. Contato com Lucki no Brasil, com W. em Camisea. W. quer de
qualquer forma que eu busque um parecer jurídico nos Estados Unidos para
obrigar R. a cumprir seu contrato; acontece que eu não preciso de parecer
jurídico para saber qual é a situação. Agora, sozinho, caminhei pela casa, por
todos os cômodos abandonados.”
Herzog começa a passar por questões, devido ao acúmulo de
problemas, e segue : “Quando Gustavo me levou, voando baixo pelos buracos, até
a pista de pouso, tive a ideia, enquanto chacoalhava no banco do carro : por
que eu mesmo não representava o Fitzcarraldo? Eu teria coragem de fazê-lo, já
que a minha empreitada e a do personagem haviam se tornado idêntica.”
Herzog então começa a refletir sobre várias direções em que
se poderia ir com aquela situação toda, e segue : “Com Mick, imaginei se ele
faria o Fitzcarraldo, mas ele não tem coragem, ainda que tivéssemos de abordar
o personagem de maneira completamente diferente. Além disso, tem a sua stop-date em razão da turnê mundial com
os Stones.
Por M., Adorf soube de nossos planos e quis se insinuar, mas
não tem cacife para isso, e acabou me levando a uma discussão estúpida sobre
atuação, dizendo que ele teria sido um Kaspar Hausen muito melhor do que um
leigo inexperiente como Bruno S.. Sem nenhuma cerimônia, eu lhe disse que
discordava, que tinha outra opinião, e ressaltei também que ele não era
cogitado para o papel principal. Agora ele está profundamente ofendido. Que
esteja.”
Herzog então cogita Kinski, e segue seu relato : “Estou com
38 anos, já passei por tudo. O trabalho me deu tudo e me tomou tudo. Não me
deixo perturbar – por quem, pelo quê? O único que ainda poderia encarnar
Fitzcarraldo seria o Kinski : ele com certeza também seria melhor do que eu;
houve uma discussão com ele na primeira fase do projeto, mas sempre esteve
claro que ele seria a última pessoa capaz de suportar um trabalho assim”.
Herzog se vê diante de possíveis soluções para seus
imprevistos, e o nome de Kinski surge em sua mente, seu Fitzcarraldo deveria se
materializar logo, seu trabalho enfrentava as intempéries do local, juntando
isto a um trabalho que já era complexo por si só, uma filmagem, e seus esforços
são admiráveis, mesmo que se tratasse de uma ideia insana, seria a realização
de um trabalho original e corajoso.
(continua)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/a-busca-de-herzog-o-fitzcarraldo-e-seus-desafios
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