PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 14 de outubro de 2018

GREGÓRIO DE MATOS GUERRA : UM POETA DE SEU TEMPO


“poeta histórico e com lugar cativo na antologia poética brasileira”

O Barroco, já com Gregório de Matos Guerra, também se faz com as banalidades cotidianas, uma vez que temos aqui também a concepção de que a vida é vã, e tal versificação de temas banais pode ainda ser mais um meio de evasão do poeta Gregório das questões graves que também lhe provocam a pena como o pecado, o mundo efêmero, quando este se volta para a sua poesia religiosa, num voltar-se ao banal que também lhe faz descansar um pouco da realidade política e social que é tema de suas sátiras.
No estilo, Gregório é um poeta que mimetiza algumas fontes, tal é a influência de Gôngora, Quevedo, Camões e Antônio Fonseca Soares. Em uma lira bilíngue, como era do feitio da moda cortesã, Gregório também cometia versos em espanhol, afetando versões copiadas de Quevedo, como também paráfrases de textos camonianos, e seguindo ainda a tradição portuguesa de escárnio e maldizer, desancando tudo em volta com ironia e senso crítico.
Gregório era um poeta que produzia uma verdadeira crônica de costumes de seu tempo, portanto, era um poeta temático circunscrito ao seu tempo histórico, logo sua poesia é mais compreensível nesta contextualização adequada, pois tais temas já não são mais familiares para gerações posteriores, com nomes e referências que se perderam no tempo, sendo uma poesia que deve ser analisada num método de revisão histórica para poder tanto ser entendida como apreciada. Seus poemas são, sobretudo, uma crônica regional e seiscentista das mazelas e vícios coloniais.
Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno, chegou à posteridade como um poeta de seu tempo, um cronista intenso e preciso de seu tempo, daí a sua dimensão de poeta histórico e com lugar cativo na antologia poética brasileira.

POEMAS :

QUEIXA-SE O POETA EM QUE O MUNDO VAY ERRADO. E QUERENDO EMENDÂLO O TEM POR EMPREZA DIFFICULTOSA. : O poema segue um rumo de queda, mas flerta com uma certa loucura, que lhe será mais cara e salvadora, por sua vez, do que uma sisudez que faria o poema frio, no que temos : “Carregado de mim ando no mundo,/E o grande peso embarga-me as passadas,/Que como ando por vias desusadas,/Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.” (...) “Não é fácil viver entre os insanos,/Erra, quem presumir, que sabe tudo,” (...) “O prudente varão há de ser mudo,/Que é melhor neste mundo o mar de enganos/Ser louco cos demais, que ser sisudo.”. Aqui julgar já saber de tudo seria a destruição da perplexidade poética, esta que se alimenta de espanto, e nada mais certo que a insanidade poética para armar a loucura de arte.

NUMA ILUSTRE ACADEMIA./MOTE : O poema condena a morte tirana, e responde que esta é a ausência, o poeta logo vivifica seu estro, e nos diz, diante do problema que é suscitado no poema, que tal determinação é abrasar-se no que se ama, já citando academia ilustre presidida por um mítico Apolo, no que vem : “Perguntou-se a um discreto,/qual era a morte tirana:/respondeu, que estar ausente/daquilo, que mais se ama./Numa ilustre academia,/que com ciências infusas/fizeram as nove Musas,/onde Apolo presidia :/leu o Secretário Admeto,/um problema mui seleto” (...) “Qual era a morte tirana.” (...) “Respondeu, que estar ausente./Deixou a resposta absorto/a aquele douto congresso,/porque é já provérbio expresso,/que ausente é o mesmo que morto :/eu me persuado, e exorto,/que quem se abrasa, e inflama/de amor na contínua chama,/inda que sinta abrasar-se,/e menos mal, que ausentar-se/Daquilo que mais se ama.”. A ausência aqui é estar morto, e isto o poema recusa, e afirma o amor como um consumir-se mais certo do que a negligência fria que aqui se condena.

AO CONDE DE ERICEYRA D.LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM. : Aqui temos um poema emblemático da pena gregoriana, no que se dá como um poema leve e satírico, e também criativo, uma brincadeira precisa e inteligente, no que vem : “Um soneto começo em vosso gabo;/Contemos esta regra por primeira,/Já lá vão duas, e esta é a terceira,/Já este quartetinho está no cabo./Na quinta torce agora a porca o rabo :/A sexta vá também desta maneira,/Na sétima entro já com grã canseira,/E saio dos quartetos muito brabo.” (...) “Nesta vida um soneto já ditei,/Se desta agora escapo, nunca mais;/Louvado seja Deus, que o acabei.”. A coda consuma genialmente um poema que também se abre luminoso, a troça é bem lúdica, e nos dá uma alegria comum à poesia bem posta.

DESCREVE O QUE LHE ACONTECEO EM S.GONÇALLO DO RIO VERMELHO COM AVISTA DE HUMA DAMA FORMOSA, E BEM ADORNADA. : O poema nos dá uma visão passageira do poeta de uma mulher formosa em meio a uma missa, a qual ele diz não mais retornar, no que vem : “Fui à missa a São Gonçalo,/e nunca fora à tal missa,/que uma custa dous tostões,/e esta há de custar-me a vida.” (...) “quando pela igreja entrou/o sol numa serpentina./Uma mulher, uma flor,” (...) “vi uma moça divina” (...) “Desde então fui seu cativo,” (...) “Acabou-se a missa logo,/e foi a primeira missa,/que por breve me enfadou,/pois toda a vida a ouvira./Foi-se para sua casa,/e eu a segui a uma vista,/passou o rio, e cobrou-se,/cheguei ao rio, e perdi-a.” (...) “Não tornei a São Gonçalo,/nem tornarei em meus dias,/que entre beleza, e adorno/todo o home ali periga.”. O perigo que oferece a beleza pode ser um martírio quando não há garantias, e o poeta bem o sabe, e então não voltará mais ao lugar de sua contemplação inútil.

SERVIU LUÍS A ISABEL/MOTE : Aqui o poema joga com os tempos verbais do amor que é e do que seria, e faz um grande apanhado do que vale ou não vale no amor, no que temos : “Amar Luís a Maria,/amaria não é amar/logo como pode estar/num tempo amar, e amaria./Serviu Luís a Isabel/por prêmio de um favor só/mais tempo do que Jacó/serviu à bela Raquel :/e porque Isabel infiel/o enganou de dia em dia,/em pena de aleivosia/em Maria o empreguei,/e então lhe certifiquei/Amar Luís a Maria.” (...) “vi eu a Moça de jeito,/que me pus pela quietar/nesta forma a conjugar/“Amar Luís, e amaria/não está em filosofia”,/Logo como pode estar?” (...) “firme enfim ao fundamento/da minha sofisteria/diz, que a boa astronomia/tem uns pontos tão sutis,/que pode estar em Luís/Num tempo amar, e amaria.”. Aqui o amor para ser justificado, não se faz de filosofia, mas de uma sofisteria fundada em astronomia, no que o tempo verbal se torna indistinto.

A MESMA MARIANNA PEDINDO LHE FIZESSE HUNS VERSOS, ENCONTRANDO-A NO MAR INDO PARA FORA. : O poema nos cita maldades semelhantes em comportamentos estafermos qual um Labão quando Jacó pleiteia Raquel, aqui uma tia chata, no que temos : “Os versos, que me pedis,/podendo-os mandar formar,/que vós por me não mandar,/não mandareis dois ceitis :/como sem assunto os fiz,/pois vós a vosso contento,/não destes o pensamento,/os rasgues, por ser melhor/assunto do meu amor,/que o vosso contentamento./Por sete anos de Pastor/serviu Jacó a Raquel,/eu servi a uma cruel,/mais de sete anos de amor :” (...) “se me não engana um Pai,/veio a enganar-me uma Tia./Esta tão assegurada/me propôs a refestela,/que cuidei, que tinha nela/a tutia preparada :/enganou-me de malvada” (...) “esta ingratidão cruel/foi o meu triste alimento/oito anos,” (...) “Se hei de dizer-vos verdade,/e me haveis de crer a mim,/até o meu bergantim/ficou morto de saudade :”. O poeta então sucumbe, pesaroso e arrasado, no que temos : “levei do perigo a palma,/e ao porto o bergantim,/e saindo dele enfim/soube já na terra lhana,/que éreis vós a Mariana/disfarçada em serafim./Então fiquei mais absorto,/mais sentido, e pesaroso/mais amante, e mais saudoso,/enfim então fiquei morto :/nestes versos me conforto,/pois neles se queixa Amor :/e inda que o vosso favor/é coisa, que nunca espero,/digo ao menos, que vos quero,/e alivio a minha dor.”. O poema é aqui um tipo de consolo triste, sem sinal de vida, morto e saudoso, o poema é um canto exangue e em vão.

POEMAS :

QUEIXA-SE O POETA EM QUE O MUNDO VAY ERRADO. E QUERENDO EMENDÂLO O TEM POR EMPREZA DIFFICULTOSA.

Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ornadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir, que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo o mar de enganos
Ser louco cos demais, que ser sisudo.

NUMA ILUSTRE ACADEMIA.

MOTE

Perguntou-se a um discreto,
qual era a morte tirana:
respondeu, que estar ausente
daquilo, que mais se ama.

Numa ilustre academia,
que com ciências infusas
fizeram as nove Musas,
onde Apolo presidia :
leu o Secretário Admeto,
um problema mui seleto
propôs, para argumentar-se,
e havendo de perguntar-se,
Perguntou-se a um discreto.

Ele, que estava distante,
e não ouvia a proposta,
não deu por então resposta
de Surdo, e não de ignorante :
mas vendo no seu semblante
a academia Sob`rana,
que tinha a desculpa lhana,
lhe advertiram com agrado,
que lhe haviam perguntado :
Qual era a morte tirana.

Ele entonces como um raio
prontamente, e sem detença
tomando vênia, e licença
fez consigo um breve ensaio :
o mais horrível desmaio
que um peito amoroso sente,
é a falta do bem presente :
ficou-lhe a resposta lhana;
e a qual é a morte tirana,
Respondeu, que estar ausente.

Deixou a resposta absorto
a aquele douto congresso,
porque é já provérbio expresso,
que ausente é o mesmo que morto :
eu me persuado, e exorto,
que quem se abrasa, e inflama
de amor na contínua chama,
inda que sinta abrasar-se,
e menos mal, que ausentar-se
Daquilo que mais se ama.

AO CONDE DE ERICEYRA D.LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM.

Um soneto começo em vosso gabo;
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.

Na quinta torce agora a porca o rabo :
A sexta vá também desta maneira,
Na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi?
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.

Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.

DESCREVE O QUE LHE ACONTECEO EM S.GONÇALLO DO RIO VERMELHO COM AVISTA DE HUMA DAMA FORMOSA, E BEM ADORNADA.

Fui à missa a São Gonçalo,
e nunca fora à tal missa,
que uma custa dous tostões,
e esta há de custar-me a vida.
Estava eu fora esperando,
que o Clérigo se revista,
quando pela igreja entrou
o sol numa serpentina.
Uma mulher, uma flor,
um Anjo, uma Paraninfa,
sol disfarçado em mulher,
e flor em Anjo mentida.
Fui ver a metamorfósis,
vi uma moça divina
ocasionada da cara,
quando arriscada de vista.
Onde tal risco se corre,
ou onde tanto se arrisca,
que menos se há de perder,
que a liberdade, e a vida.
Desde então fui seu cativo,
seu morto daquele dia,
e dentre ambos quis Amor,
que só o cativo lhe sirva.
Serve o cativo talvez,
mortos não têm serventia,
e se tiver de matar-me
vanglória, o terei por dita.
Por entre a nuvem do manto,
que a luz própria então vencia,
às claras estive vendo
aquela estrela divina :
Aquele sol soberano,
que pela elítica via
de seu rosto anda fazendo
um solstício a cada vista.
Acabou-se a missa logo,
e foi a primeira missa,
que por breve me enfadou,
pois toda a vida a ouvira.
Foi-se para sua casa,
e eu a segui a uma vista,
passou o rio, e cobrou-se,
cheguei ao rio, e perdi-a.
Vi-a no monte, e lhe fiz
co chapéu as despedidas,
e lhe inculquei meu amor
por meio da cortesia.
Não tornei a São Gonçalo,
nem tornarei em meus dias,
que entre beleza, e adorno
todo o home ali periga.

SERVIU LUÍS A ISABEL

MOTE

Amar Luís a Maria,
amaria não é amar
logo como pode estar
num tempo amar, e amaria.

Serviu Luís a Isabel
por prêmio de um favor só
mais tempo do que Jacó
serviu à bela Raquel :
e porque Isabel infiel
o enganou de dia em dia,
em pena de aleivosia
em Maria o empreguei,
e então lhe certifiquei
Amar Luís a Maria.

Deixei-a tão persuadida,
quanto ela é presuntuosa,
que o presumir de formosa
persuade o ser querida :
porém como é entendida,
e em toda a arte de amar
sabe mui bem conjugar,
disse, tomando-me a mão,
que em boa conjugação
Amaria não é amar.

Que amaria é imperfeito,
e perfeito o ter amado,
e a um presente cuidado
não serve o plus-quão-perfeito :
vi eu a Moça de jeito,
que me pus pela quietar
nesta forma a conjugar
“Amar Luís, e amaria
não está em filosofia”,
Logo como pode estar?

Este aparente argumento,
e sutil proposição
não só tirou a questão,
mas deu-lhe contentamento :
firme enfim ao fundamento
da minha sofisteria
diz, que a boa astronomia
tem uns pontos tão sutis,
que pode estar em Luís
Num tempo amar, e amaria.

A MESMA MARIANNA PEDINDO LHE FIZESSE HUNS VERSOS, ENCONTRANDO-A NO MAR INDO PARA FORA.

Os versos, que me pedis,
podendo-os mandar formar,
que vós por me não mandar,
não mandareis dois ceitis :
como sem assunto os fiz,
pois vós a vosso contento,
não destes o pensamento,
os rasgues, por ser melhor
assunto do meu amor,
que o vosso contentamento.

Por sete anos de Pastor
serviu Jacó a Raquel,
eu servi a uma cruel,
mais de sete anos de amor :
a Jacó lhe foi traidor
Labão : cuja aleivosia
por Raquel lhe entregou Lia,
e a mim não pior me vai,
se me não engana um Pai,
veio a enganar-me uma Tia.

Esta tão assegurada
me propôs a refestela,
que cuidei, que tinha nela
a tutia preparada :
enganou-me de malvada
tanto pior, que Labão,
que Lia a Jacó lhe dão,
bem que com sorte trocada,
e a mim nem Lia nem nada
me deram, dão, nem darão.

Oito anos há, que fiel,
estou servindo a um amor,
que Labão não foi pior,
porque vos sois a Raquel :
esta ingratidão cruel
foi o meu triste alimento
oito anos, e fora um cento,
porque quem chega a querer
para ajudar-se a viver
faz do Malquerer sustento.

Ontem vos topei no mar
em uma barca tão breve,
quem nem por ligeira, e leve
os pôde a vista alcançar :
pus-me logo a duvidar,
vendo-vos ir sobre a popa,
se seríeis vós Europa
sobre a vaca fabulosa,
mas vós íreis mais formosa,
do que Europa, e toda Europa.

Se hei de dizer-vos verdade,
e me haveis de crer a mim,
até o meu bergantim
ficou morto de saudade :
ficou de tal qualidade
a barquinha entorpecida,
que nem do vento impelida,
nem do remo forcejada
se moveu, antes pasmada,
que a vi por vós perdida.

Com trabalho em tanta calma,
(que o trabalho havia eu tido,
por não haver conhecido;
o que tinha dentro n`alma)
levei do perigo a palma,
e ao porto o bergantim,
e saindo dele enfim
soube já na terra lhana,
que éreis vós a Mariana
disfarçada em serafim.

Então fiquei mais absorto,
mais sentido, e pesaroso
mais amante, e mais saudoso,
enfim então fiquei morto :
nestes versos me conforto,
pois neles se queixa Amor :
e inda que o vosso favor
é coisa, que nunca espero,
digo ao menos, que vos quero,
e alivio a minha dor.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/gregorio-de-matos-guerra-um-poeta-de-seu-tempo          


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