“O que eu descrevo é o que chamo de febre”
Estou aqui para descrever um fenômeno da política
contemporânea, uma verdadeira operação que edificou um mito, tão oco quanto
seus admiradores. Venho por meio desta, numa espécie de carta aos navegantes,
para que não se afoguem neste caminho que se quer ousado, mas na verdade é
autoritário, vive-se do dizer duro para evocar um “falou e disse” que no fim se
alimenta do mais grosseiro ódio.
Fundo atávico de nossas perversões, de nossas violências mais
primais, de armar a alma para então, voilá, armar toda a sociedade, num mundo
distópico hobbesiano da guerra de todos contra todos, aqui polarização, com
dois canastrões desastrosos, um fantoche de um líder carismático, outro se
tornando o novo líder carismático de extrema direita, com fantoches úteis via
redes sociais. O que eu descrevo é o que chamo de febre, e contagiosa.
O mito que tomou esta proporção era um microcosmo pouco tempo
atrás, e depois das jornadas de junho de 2013, que começou com alvíssaras de
movimento libertário, de mobilização social e política nunca vista, na verdade
chocava, sorrateiramente, o ovo da serpente, com reações de direita em seu
bojo, e este projeto de deputado, ex-capitão, cheio de bravata e apologia à
tortura, foi saindo de seu casulo.
Nunca se viu nada de concreto em anos de sua atuação
parlamentar, mas daí o capitão histriônico deu para frequentar programas
populares, como um personagem exótico e inofensivo, muitos viam como uma piada,
(o que hoje fazem com um tal cabo que pensa que é profeta, todo cuidado é pouco),
e este capitão agora tenta envergar a faixa presidencial, e com chances bem
concretas, num crescendo que eu chamo novamente de febre, e contagiosa.
Pois bem, o que parecia no início um chiste, uma mofa, uma
troça, um pastiche, ganha ares agora de tragédia, de distopia, em meio a um
país dividido, rachado, com todas as alternativas de equilíbrio e ponderação
fazendo água. Temos diante de nós o cenário desastroso de uma escolha fatal, um
louco, um demente, que é levado como novo guia infame, que fala infâmias, tem
uma coleção delas, e a cada vez que se manifesta pelo pior, ganha mais
admiradores.
Estamos diante de uma febre religiosa tão ridícula como o
lulopetismo, a outra face desta eleição carismática, de reunião de fiéis de
igreja, de carolas rezando a carta de seu salvador, de seu novo Dom Sebastião.
Nada mais atávico e medonho. Temos estes caminhos tortuosos de uma nação que
precisa ser tutelada, e teremos, portanto, a eleição de um pai, de um tutor, e
isto quer dizer autoridade.
Quer dizer, portanto, que muitos desejam esta liderança
autoritária, um retrocesso que pode custar caro, um regresso à estaca zero de
todo o esforço de redemocratização e edificação de nossa Constituição, o pior
momento desde este retorno da democracia em nosso país. Um momento em que a ponderação
virou um papo cabeça para iniciados, em que se ignora solenemente a discussão
civilizada de pontos de vista. Vivemos um tempo de intolerância em um país
intolerante, a rede social só reverbera o que já existia, só precisava de voz.
A baba escorre da boca do monstro, o ovo da serpente foi
chocado e já eclodiu, o que resta é o trabalho de formigas para recriar este
enfrentamento político que caiu no abismo de escolhas radicais, uma renovação
que se tornará uma batalha, e que será difícil, poderá levar uma ou duas
gerações, tudo pode ruir no meio do caminho, este caminho de um país
carnavalesco mas que no seu cotidiano é um país conservador, preconceituoso,
homofóbico, misógino e machista, e o ex-capitão é o espelho perfeito desta
parte de nossa sociedade.
O novo mito é o eleito, o predestinado, este que é a serpente
que saiu do ovo do reacionarismo e que subverteu as expectativas racionais da
política formal, algo que se espalha no mundo, com os EUA que sucumbiram à
Trump, um Duterte maluco nas Filipinas, Orban na Hungria, e toda uma gama de
reacionários que buscam sempre, portanto, este líder carismático, este que
sempre fica cambiando entre um populismo de esquerda, que também possui seus
tiques autoritários, vide a ideia estapafúrdia de Haddad pela constituinte, e o
populismo conservador da extrema direita, que é uma cadela brechtiana no cio,
que adora porrada no mais fraco e decisões unilaterais para problemas
multifacetados, voluntarismo simplório para conjunturas complexas.
O fato mais evidente no momento político brasileiro,
portanto, é que todo o discurso de centro, centro-direita e centro-esquerda virou
coisa de fracote frente à conjuntura sócio-econômica, a população partiu para o
tudo ou nada, e seus sinônimos “tudo ou nada” são “extremismo” e
“voluntarismo”, ficamos reféns de um pensamento mágico em que um pode
solucionar a violência através de mais violência, e outro lado que faz uma
política de gasto público que rompe com o pacto fiscal sem ao menos fazer a
devida auditoria da dívida pública, esta que vem repleta de operações
compromissadas nunca investigadas a fundo, e o resultado vem como dívida
pública, um problema mundial, já com alertas recentes do FMI.
Voltando à crise dos candidatos de centro, estes se
desidrataram, viraram fumaça, e a fogueira está acesa entre rejeição e apoio,
com o #elenão e com antipetismo, que virando a moeda são bolsonarismo e
lulismo, os líderes carismáticos dando a receita de votos, enquanto a retórica
de centro já está na fase do desespero ou da anemia, com um resultado em que a
pesquisa eleitoral conduz do meio para frente os votos úteis e os votos
válidos, o paradoxo entre o voto pela ideia e o voto pela circunstância, se é
correto votar por causa da pesquisa ou por causa do candidato em si. Pois
então, num cenário de polarização, verdade verdadeira, vota-se contra o inimigo
e num mito, “em uma ideia” (como disse Lula de si mesmo), o que muitas vezes
pode ser votar num mal menor ou no seu ícone, no seu mito, seja ele Lula ou
Bolsonaro.
Por fim, já temos o ovo da serpente chocado e forte, como um
tipo de movimento raivoso que pensa que atitude radical é panaceia para todos
os males, que com a maldade e o ódio poderemos construir uma sociedade de
“cidadãos de bem”. Pode cair ou ainda vingar a pretensa virtude do bem da
esquerda que tenta monopolizá-la de um lado (com Lula montando sua operação de
vingança política contra o impeachment de Dilma, com capachos alucinados como
Gleisi Hoffmann), ou estourar na cadeira presidencial este movimento autoritário
em que o grande mal, a violência, só se resolve com uma pretensa benfeitoria na
base do cacete.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://seculodiario.com.br/public/jornal/artigo/bolsonaronao
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