PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

#BOLSONARONÃO


“O que eu descrevo é o que chamo de febre”

Estou aqui para descrever um fenômeno da política contemporânea, uma verdadeira operação que edificou um mito, tão oco quanto seus admiradores. Venho por meio desta, numa espécie de carta aos navegantes, para que não se afoguem neste caminho que se quer ousado, mas na verdade é autoritário, vive-se do dizer duro para evocar um “falou e disse” que no fim se alimenta do mais grosseiro ódio.
Fundo atávico de nossas perversões, de nossas violências mais primais, de armar a alma para então, voilá, armar toda a sociedade, num mundo distópico hobbesiano da guerra de todos contra todos, aqui polarização, com dois canastrões desastrosos, um fantoche de um líder carismático, outro se tornando o novo líder carismático de extrema direita, com fantoches úteis via redes sociais. O que eu descrevo é o que chamo de febre, e contagiosa.
O mito que tomou esta proporção era um microcosmo pouco tempo atrás, e depois das jornadas de junho de 2013, que começou com alvíssaras de movimento libertário, de mobilização social e política nunca vista, na verdade chocava, sorrateiramente, o ovo da serpente, com reações de direita em seu bojo, e este projeto de deputado, ex-capitão, cheio de bravata e apologia à tortura, foi saindo de seu casulo.
Nunca se viu nada de concreto em anos de sua atuação parlamentar, mas daí o capitão histriônico deu para frequentar programas populares, como um personagem exótico e inofensivo, muitos viam como uma piada, (o que hoje fazem com um tal cabo que pensa que é profeta, todo cuidado é pouco), e este capitão agora tenta envergar a faixa presidencial, e com chances bem concretas, num crescendo que eu chamo novamente de febre, e contagiosa.
Pois bem, o que parecia no início um chiste, uma mofa, uma troça, um pastiche, ganha ares agora de tragédia, de distopia, em meio a um país dividido, rachado, com todas as alternativas de equilíbrio e ponderação fazendo água. Temos diante de nós o cenário desastroso de uma escolha fatal, um louco, um demente, que é levado como novo guia infame, que fala infâmias, tem uma coleção delas, e a cada vez que se manifesta pelo pior, ganha mais admiradores.
Estamos diante de uma febre religiosa tão ridícula como o lulopetismo, a outra face desta eleição carismática, de reunião de fiéis de igreja, de carolas rezando a carta de seu salvador, de seu novo Dom Sebastião. Nada mais atávico e medonho. Temos estes caminhos tortuosos de uma nação que precisa ser tutelada, e teremos, portanto, a eleição de um pai, de um tutor, e isto quer dizer autoridade.
Quer dizer, portanto, que muitos desejam esta liderança autoritária, um retrocesso que pode custar caro, um regresso à estaca zero de todo o esforço de redemocratização e edificação de nossa Constituição, o pior momento desde este retorno da democracia em nosso país. Um momento em que a ponderação virou um papo cabeça para iniciados, em que se ignora solenemente a discussão civilizada de pontos de vista. Vivemos um tempo de intolerância em um país intolerante, a rede social só reverbera o que já existia, só precisava de voz.
A baba escorre da boca do monstro, o ovo da serpente foi chocado e já eclodiu, o que resta é o trabalho de formigas para recriar este enfrentamento político que caiu no abismo de escolhas radicais, uma renovação que se tornará uma batalha, e que será difícil, poderá levar uma ou duas gerações, tudo pode ruir no meio do caminho, este caminho de um país carnavalesco mas que no seu cotidiano é um país conservador, preconceituoso, homofóbico, misógino e machista, e o ex-capitão é o espelho perfeito desta parte de nossa sociedade.
O novo mito é o eleito, o predestinado, este que é a serpente que saiu do ovo do reacionarismo e que subverteu as expectativas racionais da política formal, algo que se espalha no mundo, com os EUA que sucumbiram à Trump, um Duterte maluco nas Filipinas, Orban na Hungria, e toda uma gama de reacionários que buscam sempre, portanto, este líder carismático, este que sempre fica cambiando entre um populismo de esquerda, que também possui seus tiques autoritários, vide a ideia estapafúrdia de Haddad pela constituinte, e o populismo conservador da extrema direita, que é uma cadela brechtiana no cio, que adora porrada no mais fraco e decisões unilaterais para problemas multifacetados, voluntarismo simplório para conjunturas complexas.
O fato mais evidente no momento político brasileiro, portanto, é que todo o discurso de centro, centro-direita e centro-esquerda virou coisa de fracote frente à conjuntura sócio-econômica, a população partiu para o tudo ou nada, e seus sinônimos “tudo ou nada” são “extremismo” e “voluntarismo”, ficamos reféns de um pensamento mágico em que um pode solucionar a violência através de mais violência, e outro lado que faz uma política de gasto público que rompe com o pacto fiscal sem ao menos fazer a devida auditoria da dívida pública, esta que vem repleta de operações compromissadas nunca investigadas a fundo, e o resultado vem como dívida pública, um problema mundial, já com alertas recentes do FMI.
Voltando à crise dos candidatos de centro, estes se desidrataram, viraram fumaça, e a fogueira está acesa entre rejeição e apoio, com o #elenão e com antipetismo, que virando a moeda são bolsonarismo e lulismo, os líderes carismáticos dando a receita de votos, enquanto a retórica de centro já está na fase do desespero ou da anemia, com um resultado em que a pesquisa eleitoral conduz do meio para frente os votos úteis e os votos válidos, o paradoxo entre o voto pela ideia e o voto pela circunstância, se é correto votar por causa da pesquisa ou por causa do candidato em si. Pois então, num cenário de polarização, verdade verdadeira, vota-se contra o inimigo e num mito, “em uma ideia” (como disse Lula de si mesmo), o que muitas vezes pode ser votar num mal menor ou no seu ícone, no seu mito, seja ele Lula ou Bolsonaro.
Por fim, já temos o ovo da serpente chocado e forte, como um tipo de movimento raivoso que pensa que atitude radical é panaceia para todos os males, que com a maldade e o ódio poderemos construir uma sociedade de “cidadãos de bem”. Pode cair ou ainda vingar a pretensa virtude do bem da esquerda que tenta monopolizá-la de um lado (com Lula montando sua operação de vingança política contra o impeachment de Dilma, com capachos alucinados como Gleisi Hoffmann), ou estourar na cadeira presidencial este movimento autoritário em que o grande mal, a violência, só se resolve com uma pretensa benfeitoria na base do cacete.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  https://seculodiario.com.br/public/jornal/artigo/bolsonaronao 



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