"A discussão política, apesar de vivermos num Estado laico, deixou de ser de cunho ideológico, embora ainda tenha nos extremos da constelação partidária brasileira tais posicionamentos"
Sempre dizem que na política atual não há direita ou
esquerda. Bem, não há mais a visão clássica de que os “nomes dos bois”, ou
melhor, as caras são bem definidas, na política atual. Quando se fala no jogo
que se dá entre os poderes, sobretudo quando se fala do legislativo que
sobrevive das coligações, vinculando estas com as candidaturas majoritárias dos
cargos ao poder executivo, ainda temos alguns setores da política bem
definidos, apesar do conluio partidário atual. Na discussão política
contemporânea, falando de Brasil, não se trata mais de falar exatamente em
direita ou esquerda, mas em alas conservadoras ou progressistas, e isto, a
fortiori, nos extremos das posições ideológicas, por exemplo, quando comparamos
partidos como PCO, PSTU ou PSOL com velhos bastiões do “em defesa da família e
da vida” que podemos ver em partidos como o PP ou o DEM, ou ainda o partido da
Igreja Universal, o PRB, o PR e o PSC, que dispensa comentários.
A discussão política, apesar de vivermos num Estado laico,
deixou de ser de cunho ideológico, embora ainda tenha nos extremos da
constelação partidária brasileira tais posicionamentos, e vemos agora a
marcação de discussões em torno de direitos civis como dos homossexuais ou do
direito da mulher ao aborto que, por sua vez, colocam a política numa nova
modalidade de choques entre uma moral tradicional e conservadora e a chamada
esquerda libertária, afirmativa de direitos. Tal choque nos leva ao próprio
processo civilizatório, aonde os valores novos se tornam de imorais (na visão conservadora
e tradicional) para morais, e valores antigos da instituição familiar nos
moldes cristãos neopentecostais e/ou católicos, no juízo da interpretação
bíblica, colocam estes valores novos como inversões do mundo real.
Isto é, mais do que choque entre morais ou uma contenda
axiológica, temos um choque de cosmovisões, o que coloca as coisas em termos
bem mais graves, ou seja: temos na discussão política, que deixa de lado
aspectos ideológicos de conflitos entre visão liberal ou socialista (área de pleitos
de cosmovisão sistêmica e econômica, com viés politizado), a percepção de um
novo embate valorativo, que trata agora de cosmovisões mais radicais do que a
discussão sistêmica.
Trata-se agora, neste choque entre tradição e libertação, de
um novo modus operandi do pleito eleitoral nacional, a realidade valorativa
ganha contornos de radicalização, mas não de direita e esquerda (discussão
sistêmico-econômica), e sim de um choque entre conservadores e libertários, o
que nos leva ao questionamento entre uma tradição diacrônica, que revela velhos
lemas ou valorações standard, e os libertários, que são o grupo dos direitos
civis, em defesa do processo evolutivo, e o que diferencia o moral do imoral se
radicalizando nesta polarização: temos duas moralidades diametralmente opostas,
uma da tradição que não se coloca no debate, mas numa discussão anódina de
preservação, e o debate libertário, que se lança ao progressismo de suas
bandeiras, provocando o adversário que, no seu jogo, usa do juízo estabelecido
num embate de inversão, isto é, a moral libertária vai ao debate e a
preservação do discurso conservador se usa do viés valorativo tradicional,
colocando a falácia da inversão de valores como um anti-debate.
O processo civilizatório levanta a bandeira libertária, dos
direitos civis, enquanto a moral tradicional não vai ao debate, prefere os
slogans standards, escolhendo uma luta simbólica e não argumentativa, daí ser
colocado que a moral tradicional prefere a falácia ou sofisma do slogan do que
o aprofundamento dos debates sociais e culturais. Ou seja, a tradição e seus representantes se colocam
fora do discurso racional, ficando confinados no apelo emocional, ou pior, no
pseudo-argumento (slogan, defesa simbólica) pela autoridade sobrenatural da
religião, conhecido em Filosofia como argumentum ad verecundiam, denunciando aí
que não se trata, do lado conservador, de uma discussão política racional, de
sopesamento valorativo de um consenso ou dissenso equilibrado.
A ala tradicional e conservadora, na sua relação com os
libertários, se dá apenas na tática política da inversão, isto é, falando do
moral e do imoral, eles têm tudo definido, num ato a-histórico, cristalizado,
que não estabelece o debate, colocando a nova moralidade ou valoração civil e
libertária no canto de uma imoralidade a priori. Isto é, não se discute de
forma equânime. A desconstrução (não inversão) fica ao cargo dos libertários
nas suas lutas sociais e culturais, a favor do processo civilizatório real. A
valoração ganha nova perspectiva no aprofundamento tanto das discussões
políticas em si, como do debate valorativo, civilizatório, social, cultural,
abrindo a linguagem moral para sua ampliação, o que passa necessariamente pela
civilidade da discussão racional de liberdade, e não da emoção barata do
slogan, cunho mais próprio aos valores standards da tradição de família, do que
do debate importante dos direitos civis.
Portanto, quando e se a ala conservadora da política
(religião?) se colocar no debate racionalmente, num embate verbal e não simbólico,
teremos da parte libertária o arcabouço discursivo que já vem sendo construído
até de forma assembleísta. Pois quem se reúne em torno da discussão pública de
valores e de seus critérios de verdade ou mentira, deve ir ao debate munido do
argumento tempestivo da razão, e não do apelo emocional de slogans e símbolos.
A paixão deve deixar o campo discursivo deste embate valorativo, sendo
necessário que a repetição de juízos a priori sejam superados, e que o dissenso
ou consenso sejam feitos pela construção e desconstrução discursiva in loco, ou
seja, com o jogo de linguagem próprio de um debate político honesto, e
portanto, racional.
Portanto, se temos a busca do slogan para defender tanto um
lado como o outro, não se dá nem o dissenso, mas a falta do debate propositivo,
em que a pura inversão evita entrar no jogo, e os extremos da batalha se
refugiam simbolicamente em suas verdades. Claro que não haverá consenso entre
algo que se coloca necessariamente como entes em oposição. Mas, no espaço
público, as instituições têm de fazer uma escolha, e o critério de verdade terá
de passar por uma fundamentação discursiva sem apelos a priori de defesas
simbólicas. Isto é, da parte da ala libertária tem que partir o discurso
propositivo de novas valorações, mais do que a desconstrução do adversário
conservador que, este sim, se coloca num refúgio da inversão a priori, fugindo
de um debate dinâmico em que a luta de cada um é questionada e o saber
reflexivo se faz, e as práticas sociais, políticas e culturais se aperfeiçoam,
sendo então possível a construção do verdadeiro processo civilizatório, filho
dileto da História e não da moral a priori.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/37394/14/o-choque-moral-entre-progressismo-e-conservadorismo
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