PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

AUGUSTO DOS ANJOS – EU E OUTRAS POESIAS – PARTE IV

“A poesia de Augusto dos Anjos, então, possuidora desta riqueza vocabular naturalista, se utiliza, portanto, dos recursos de uma linguagem científica”

AUGUSTO DOS ANJOS : UM PRÉ-MODERNISTA

ESTILO E INFLUÊNCIAS ESTÉTICAS

O livro de poemas de Augusto dos Anjos “Eu e Outras Poesias” é formado por diversas frentes estilísticas que confluem num resultado poético original, poesia que aparece como a soma de tendências que vêm do final do século XIX e que vão até formas que aparecem no início do século XX.
Esta soma de influências na obra de Augusto dos Anjos podem ser elencadas desde o Parnasianismo, o decadentismo, o Simbolismo, e que, por fim, antecipa muitas das tendências modernas, mas com um caráter único na literatura brasileira, obra poética que até hoje representa um trabalho sui generis no cenário geral da poesia brasileira, com um vocabulário naturalista bem próprio.
A poesia de Augusto dos Anjos, então, possuidora desta riqueza vocabular naturalista, se utiliza, portanto, dos recursos de uma linguagem científica, e que também, a partir desta linguagem de origem técnica, tem temas tétricos e fúnebres, de formas abjetas que são colocadas na elegância da poesia como um sublime retirado do grotesco, num paradoxo que vai da forma bela da poesia usando um conteúdo a princípio nada poético, à primeira vista, e resultando nesta originalidade da obra augustiniana, que também tinha uma veia existencial, mas esta também trágica e lidando com a morte e o nada.
Na poesia de Augusto dos Anjos lidamos com uma forma métrica de rigor formal herdada do parnasianismo, com sonetos e poemas mais longos, no uso de quartetos, com versos isométricos e rimados, a maioria decassílabos, e uma sonoridade com a qual se vê a influência simbolista, nos ritmos, rimas e aliterações, simbolismo que por vezes também aparece nos temas, como são os da transcendência e da angústia existencial. Por fim, as antecipações modernas da poesia augustiniana aparecem na linguagem eventualmente coloquial, e que também ganha as vezes de denúncia social, e com uma operação, como dita, de uso do belo na forma com um sumo do grotesco e do hediondo, poesia que também ganha uma face universal com seus temas por vezes existenciais.

A POESIA DECADENTISTA DE AUGUSTO DOS ANJOS

Dentro do processo histórico, a poesia de Augusto dos Anjos pode ser bem situada entre as últimas produções parnasianas, ainda correndo em paralelo também os estertores do simbolismo, sendo o poeta estudado como um poeta de transição entre o Simbolismo e o nascente Modernismo, pois era um poeta que reunia uma forma poética que devia tributo aos parnasianos e simbolistas, mas que já trazia uma renovação no léxico que já superava os caminhos destas correntes literárias.
Augusto dos Anjos era uma mente cientificista, partidário que era do evolucionismo e do determinismo, herdando uma visão monista e materialista, trazia em sua poesia o rico e duro conflito entre o idealismo metafísico e o materialismo científico, com o tema da morte, que em seu sentido metafísico poderia romper com estes limites em que a decomposição dos corpos lhe deixava perplexo e impotente, e que faz então uma poesia que herda a influência, também, do decadentismo francês num registro poético que vem com a morbidez e o repugnante no tema final da extinção da espécie humana diante da morte, que é a carne perecível como imagem física e da morte como limite metafísico em que um nada búdico ganha corpo e fonte de reflexão de sua poesia, e isto num cenário decadente de decomposição física e finitude corporal que flerta com o grotesco.

POEMAS :

OUTRAS POESIAS

O MEU NIRVANA : O poema se move no nada do nirvana e lhe dá as formas sutis, no que temos : “No 
alheamento da obscura forma humana,/De que, pensando, me desencarcero,/Foi que eu, num grito de emoção, sincero,/Encontrei, afinal, o meu Nirvana.” (...) “Destruída a sensação que oriunda fora/Do tato – ínfima antena aferidora/Destas tegumentárias mãos plebeias –/Gozo o prazer, que os anos não carcomem,/De haver trocado a minha forma de homem/Pela imortalidade das Ideias!”. O nirvana aparece aqui como um estado de plenitude, e que tem a imagem poética da imortalidade das Ideias, o poeta tem uma ânsia de libertação, e acha um prazer eterno, ao fim do trajeto.

A DANÇA DA PSIQUÊ : O poema nos dá a forma dançante em que a psiquê se aventura : “A dança dos encéfalos acesos/Começa. A carne é fogo. A alma arde.”. A luta da alma e do instinto abre o poema com um esforço de forças antagônicas, e a alma do poeta dança aqui de mãos dadas com a liberdade espiritual, no que temos : “É então que a vaga dos instintos presos/- Mãe de esterilidades e cansaços –/Atira os pensamentos mais devassos/Contra os ossos cranianos indefesos./Subitamente a cerebral coreia/Para. O cosmos sintético da Ideia/Surge. Emoções extraordinárias sinto .../Arranco do meu crânio as nebulosas./E acho um feixe de forças prodigiosas/Sustentando dois monstros : a alma e o instinto!”. As forças prodigiosas surgem com o poema que crê fiel em seu intento de liberdade.

A FOME E O AMOR : O poema entre fome e amor é uma guerra instintiva entre contrários, ânsia voraz, fome da alma, a plenitude luta contra o ínfimo de uma finitude carnal angustiosa, no que temos : “Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,/Receando outras mandíbulas a esbanjem,/Os dentes antropófagos que rangem,/Antes da refeição sanguinolenta!/Amor! E a satiríase sedenta,/Rugindo, enquanto as almas se confrangem,/Todas as danações sexuais que abrangem/A apolínica besta famulenta!” (...) “Representam, no ardor dos seus assomos,/A alegoria do que outrora fomos/E a imagem bronca do que inda hoje sois!”. O poema luta contra a face bestial que é a imagem ainda persistente na qual o poema faz sua forma final.

HOMO INFIMUS : O poema aqui luta com o ínfimo diante das grandezas universais, no que a imagem mais crua do Homem está diante de um universo hostil e silencioso, criatura cega é o Homem, este que se vê diante de um alfa e ômega enigmáticos, indecifráveis : “Homem, carne sem luz, criatura cega,/Realidade geográfica infeliz,/O Universo calado te renega/E a tua própria boca te maldiz!/O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega/Amarguram-te. Hebdômadas hostis/Passam ... Teu coração se desagrega,/Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!” (...) “Deixa a tua alegria aos seres brutos,/Porque, na superfície do planeta,/Tu só tens um direito : - o de chorar!”. A dor do mundo impede a imagem poética do riso, o poema tem esta visão que chora no fim.

NUMA FORJA : O poema está com o poeta na forja, no que temos : “De inexplicáveis ânsias prisioneiro/Hoje entrei numa forja, ao meio-dia.”. O poema vem com um estro em esforço diante de uma metalurgia em que o ferro chia e ri, e a luta humana do poeta se forja em desesperança, num vazio de estática na qual o poeta se perde : “No horror da metalúrgica batalha/O ferro chiava e ria!/Ria, num sardonismo doloroso/De ingênita amargura,/Da qual, bruta, provinha/Como de um negro cáspio de água impura/A multissecular desesperança/De sua espécie abjeta/Condenada a uma estática mesquinha!”. O sofrimento cósmico dá as caras, e o poema retrata esta dor de conteúdo universal, no que temos : “Era um cosmos inteiro sofredor,/Cujo negror profundo/Astro nenhum exorna/Gritando na bigorna/Asperamente a sua própria dor!” (...) “Era a revelação/De tudo que ainda dorme/No metal bruto ou na geleia informe/Do parto primitivo da Criação!”. As coisas ínfimas, primitivas, eram a base desta viagem cósmica, a brutalidade metálica, rochosa, o sono mineral, estes aqui têm no poema a fonte primeira desta luta universal, cósmica, no que temos, por fim : “Punha em clarividência/Intramoleculares sóis acesos/Perpetuamente às mesmas formas presos,/Agarrados à inércia do Inorgânico/Escravos da Coesão!” (...) “A ouvir todo esse cosmos potencial,/Preso aos mineralógicos abismos/Angustiado e arquejante/A debater-se na estreiteza bronca/De um bloco de metal!” (...) “Ao clangor de tais carmes de martírio/Em cismas negras eu recaio imerso/Buscando no delírio/De uma imaginação convulsionada/Mais revolta talvez de que a onda atlântica,/Compreender a semântica/Dessa aleluia bárbara gritada/Às margens glacialíssimas do Nada/Pelas coisas mais brutas do Universo!”. A semântica mineral do universo bruto, o poema no primeiro esboço da evolução das coisas.

REVELAÇÃO : O poema búdico mergulha no infinito, no que temos : “Escafandrista de insondado oceano/Sou eu que, aliando Buda ao sibarita,/Penetro a essência plásmica infinita,”. O poema segue o caminho desta ausculta, e ouve o lugar em que se agita o pensamento humano, no que segue : “Sou eu que, auscultando o absconso arcano,” (...) “Ouço o universo ansioso que se agita/Dentro de cada pensamento humano!”. E o poeta entra no profundo da mente, e consegue alcançar uma esfera calma em que a alma sonha, o poema abre esta dimensão embrionária do cosmos oculto, no que segue : “Sou eu que, revolvendo o ego profundo/E a escuridão dos cérebros medonhos,/Restituo triunfalmente à esfera calma/Todos os cosmos que circulam na alma/Sob a forma embriológica de sonhos!” (...) “Ah! Sou eu que, transpondo a escarpa angusta/Dos limites orgânicos estreitos,/Dentro dos quais recalco em vão minha ânsia,/Sinto bater na putrescível crusta/Do tegumento que me cobre os peitos/Toda a imortalidade da Substância!”. O poeta quer ver a imortalidade, e na substância universal pode intuí-la, e a vê na calma de um ego aprofundado e embrionário.

VIAGEM DE UM VENCIDO : O poema vem com a noite profunda, o cérebro do poeta está imerso na sombra de sua finitude, no que segue : “Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio .../E, enquanto eu tropeçava sobre os paus,/A efígie apocalíptica do Caos/Dançava no meu cérebro sombrio!”. E o poema segue em sua viagem universal pela luta indômita dos sentidos finitos diante de seu caos original, o poeta espera ver algo essencial e esclarecedor, mas está novamente diante de seu limite em que só fica o pó e as formas efêmeras do humano somem no espaço, no que segue : “Aprazia-me assim, na escuridão,/Mergulhar minha exótica visão/Na intimidade noumenal dos seres./Eu procurava, com uma vela acesa,/O feto original, de onde decorrem/Todas essas moléculas que morrem/Nas transubstanciações da Natureza./Mas o que meus sentidos apreendiam/Dentro da treva lúgubre, era só/O ocaso sistemático de pó,/Em que as formas humanas se sumiam!”. O poema se dá então com as formas mais simples da natureza, no que temos : “Dentro de mim, como num chão profundo,/Choravam, com soluços quase humanos,/Convulsionando Céus, almas e oceanos,/As formas microscópicas do mundo!” (...) “Em contraposição à paz funérea,/Doía profundamente no meu crânio/Esse funcionamento simultâneo/De todos os conflitos da matéria!”. Os conflitos da matéria lutam com estas formas ínfimas da natureza, e a luta se dá sobretudo na alma do poeta que vê este sofrimento universal, no que temos : “Cumpria-se afinal dentro de mim/O próprio sofrimento da Substância!”. E o poeta ouve a própria voz da natureza, que lhe diz sobre esta substância universal que vem do menor para o maior, no que temos : “Mas das árvores, frias como lousas,/Fluía, horrenda e monótona, uma voz/Tão grande, tão profunda, tão feroz/Que parecia vir da alma das cousas :/“Se todos os fenômenos complexos,/Desde a consciência à antítese dos sexos,/Vêm de um dínamo fluídico de gás,/Se hoje, obscuro, amanhã píncaros galgas,/A humildade botânica das algas/De que grandeza não será capaz?!”. O despertar da natureza tem aqui uma chave evolutiva de que o poeta é partidário, mas que ganha tons místicos de uma grandeza universal incomensurável, no que segue : “Se a contração que hoje produz o choro/Não há de ser no século vindouro/Um simples movimento para rir?!/Que espécies outras, do Equador aos polos,/Na prisão milenária dos subsolos,/Rasgando avidamente o húmus malsão,/Não trabalham, com a febre mais bravia,/Para erguer, na ânsia cósmica, a Energia/À última etapa da objetivação?!” (...) “Porque em todas as coisas, afinal,/Crânio, ovário, montanha, árvore, iceberg,/Tragicamente, diante do Homem, se ergue/A esfinge do Mistério Universal!/Por isto, oh! filho dos terráqueos limos,/Nós, arvoredos desterrados, rimos/Das vãs diatribes com que aturdes o ar ...” (...) “Na avançada epiléptica dos medos/Cria ouvir, a escalar Céus e apogeus,/A voz cavernosíssima de Deus,/Reproduzida pelos arvoredos!/Agora, astro decrépito, em destroços,/Eu, desgraçadamente magro, a erguer-me,/Tinha necessidade de esconder-me/Longe da espécie humana, com os meus ossos!/Restava apenas na minha alma bruta/Onde frutificara outrora o Amor/Uma volicional fome interior/De renúncia budística absoluta!/Porque, naquela noite de ânsia e inferno,/Eu fora, alheio ao mundanário ruído,/A maior expressão do homem vencido/Diante da sombra do Mistério Eterno!”. O mistério universal ganha aqui uma forma de renúncia búdica em busca de um nada em que o absoluto da paz se ergue como um estranho ápice da criação, mas o poeta está então aqui em confronto com uma voz divina que, de forma violenta, está na volição deste poeta que sofre com fome interior insaciável, e que é aqui a imagem final do poeta vencido. 

POEMAS :

OUTRAS POESIAS

O MEU NIRVANA

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero,
Encontrei, afinal, o meu Nirvana.

Nessa manumissão schopenhaueriana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Ideia Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora

Do tato – ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebeias –

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Ideias!

A DANÇA DA PSIQUÊ

A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos!

É então que a vaga dos instintos presos
- Mãe de esterilidades e cansaços –
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Subitamente a cerebral coreia
Para. O cosmos sintético da Ideia
Surge. Emoções extraordinárias sinto ...

Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros : a alma e o instinto!

A FOME E O AMOR

Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbanjem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!

Amor! E a satiríase sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!

Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os dois

Representam, no ardor dos seus assomos,
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que inda hoje sois!

HOMO INFIMUS

Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!

O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam ... Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!

Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular,

Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito : - o de chorar!

NUMA FORJA

De inexplicáveis ânsias prisioneiro
Hoje entrei numa forja, ao meio-dia.
Trinta e seis graus à sombra. O éter possuía
A térmica violência de um braseiro.
Dentro, a cuspir escórias
De fúlgida limalha
Dardejando centelhas transitórias,
No horror da metalúrgica batalha
O ferro chiava e ria!
Ria, num sardonismo doloroso
De ingênita amargura,
Da qual, bruta, provinha
Como de um negro cáspio de água impura
A multissecular desesperança
De sua espécie abjeta
Condenada a uma estática mesquinha!

Ria com essa metálica tristeza
De ser na Natureza,
Onde a Matéria avança
E a Substância caminha
Aceleradamente para o gozo
Da integração completa,
Uma consciência eternamente obscura!

O ferro continuava a chiar e a rir.
E eu nervoso, irritado,
Quase com febre, a ouvir
Cada átomo de ferro
Contra a incude esmagado
Sofrer, berrar, tinir,
Compreendia por fim que aquele berro
À substância inorgânica arrancado
Era a dor do minério castigado
Na impossibilidade de reagir!

Era um cosmos inteiro sofredor,
Cujo negror profundo
Astro nenhum exorna
Gritando na bigorna
Asperamente a sua própria dor!
Era, erguido do pó,
Inopinadamente
Para que à vida quente
Da sinergia cósmica desperte,
A ansiedade de um mundo
Doente de ser inerte,
Cansado de estar só!

Era a revelação
De tudo que ainda dorme
No metal bruto ou na geleia informe
Do parto primitivo da Criação!
Era o ruído-clarão,
- O ígneo jato vulcânico
Que, atravessando a absconsa cripta enorme
De minha cavernosa subconsciência,
Punha em clarividência
Intramoleculares sóis acesos
Perpetuamente às mesmas formas presos,
Agarrados à inércia do Inorgânico
Escravos da Coesão!

Repuxavam-me a boca hórridos trismos
E eu sentia, afinal,
Essa angústia alarmante
Própria de alienação raciocinante,
Cheia de ânsias e medos
Com crispações nos dedos
Piores que os paroxismos
Da árvore que a atmosfera ultriz destronca.
A ouvir todo esse cosmos potencial,
Preso aos mineralógicos abismos
Angustiado e arquejante
A debater-se na estreiteza bronca
De um bloco de metal!

Como que a forja tétrica
Num estridor de estrago
Executava, em lúgubre crescendo
A antífona assimétrica
E o incompreensível wagnerismo aziago
De seu destino horrendo!

Ao clangor de tais carmes de martírio
Em cismas negras eu recaio imerso
Buscando no delírio
De uma imaginação convulsionada
Mais revolta talvez de que a onda atlântica,
Compreender a semântica
Dessa aleluia bárbara gritada
Às margens glacialíssimas do Nada
Pelas coisas mais brutas do Universo!

REVELAÇÃO

I
Escafandrista de insondado oceano
Sou eu que, aliando Buda ao sibarita,
Penetro a essência plásmica infinita,
- Mãe promíscua do amor e do ódio insano!

Sou eu que, auscultando o absconso arcano,
Por um poder acústica esquisita,
Ouço o universo ansioso que se agita
Dentro de cada pensamento humano!

No abstrato abismo equóreo, em que me inundo,
Sou eu que, revolvendo o ego profundo
E a escuridão dos cérebros medonhos,

Restituo triunfalmente à esfera calma
Todos os cosmos que circulam na alma
Sob a forma embriológica de sonhos!

I
Treva a fulguração; sânie e perfume;
Massa palpável e éter; desconforto
E ataraxia; feto vivo e aborto ...
- Tudo a unidade do meu ser resume!

Sou eu que, ateando da alma o ocíduo lume,
Apreendo, em cisma abismadora absorto,
A potencialidade do que é morto
E a eficácia prolífica do estrume!

Ah! Sou eu que, transpondo a escarpa angusta
Dos limites orgânicos estreitos,
Dentro dos quais recalco em vão minha ânsia,

Sinto bater na putrescível crusta
Do tegumento que me cobre os peitos
Toda a imortalidade da Substância!

VIAGEM DE UM VENCIDO

Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio ...
E, enquanto eu tropeçava sobre os paus,
A efígie apocalíptica do Caos
Dançava no meu cérebro sombrio!

O Céu estava horrivelmente preto
E as árvores magríssimas lembravam
Pontos de admiração que se admiravam
De ver passar ali meu esqueleto!

Sozinho, uivando hoffmânnicos dizeres,
Aprazia-me assim, na escuridão,
Mergulhar minha exótica visão
Na intimidade noumenal dos seres.

Eu procurava, com uma vela acesa,
O feto original, de onde decorrem
Todas essas moléculas que morrem
Nas transubstanciações da Natureza.

Mas o que meus sentidos apreendiam
Dentro da treva lúgubre, era só
O ocaso sistemático de pó,
Em que as formas humanas se sumiam!

Reboava, num ruidoso burburinho
Bruto, análogo ao peã de márcios brados,
A rebeldia dos meus pés danados
Nas pedras resignadas do caminho.

Sentia estar pisando com a planta ávida
Um povo de radículas e embriões
Prestes a rebentar, como vulcões,
Do ventre equatorial da terra grávida!

Dentro de mim, como num chão profundo,
Choravam, com soluços quase humanos,
Convulsionando Céus, almas e oceanos,
As formas microscópicas do mundo!

Era a larva agarrada a absconsas landes,
Era o abjeto vibrião rudimentar
Na impotência angustiosa de falar,
No desespero de não serem grandes!

Vinha-me à boca, assim, na ânsia dos párias,
Como o protesto de uma raça invicta,
O brado emocionante de vindicta
Das sensibilidades solitárias!

A longanimidade e o vilipêndio,
A abstinência e a luxúria, o bem e o mal
Ardiam no meu orco cerebral,
Numa crepitação própria de incêndio!

Em contraposição à paz funérea,
Doía profundamente no meu crânio
Esse funcionamento simultâneo
De todos os conflitos da matéria!

Eu, perdido no Cosmos, me tornara
A assembleia belígera malsã,
Onde Ormuzd guerreava com Arimã,
Na discórdia perpétua do sansara!

Já me fazia medo aquela viagem
A carregar pelas ladeiras tétricas,
Na óssea armação das vértebras simétricas
A angústia da biológica engrenagem!

No Céu, de onde se vê o Homem de rastros,
Brilhava, vingadora, a esclarecer
As manchas subjetivas do meu ser
A espionagem fatídica dos astros!

Sentinelas de espíritos e estradas,
Noite alta, com a sidérica lanterna,
Eles entravam todos na caverna
Das consciências humanas mais fechadas!

Ao castigo daquela rutilância,
Maior que o olhar que perseguiu Caim,
Cumpria-se afinal dentro de mim
O próprio sofrimento da Substância!

Como quem traz ao dorso muitas cargas
Eu sofria, ao colher simples gardênia,
A multiplicidade heterogênea
De sensações diversamente amargas.

Mas das árvores, frias como lousas,
Fluía, horrenda e monótona, uma voz
Tão grande, tão profunda, tão feroz
Que parecia vir da alma das cousas :

“Se todos os fenômenos complexos,
Desde a consciência à antítese dos sexos,
Vêm de um dínamo fluídico de gás,
Se hoje, obscuro, amanhã píncaros galgas,
A humildade botânica das algas
De que grandeza não será capaz?!

Quem sabe, enquanto Deus, Jeová ou Siva
Oculta à tua força cognitiva
Fenomenalidades que hão de vir,
Se a contração que hoje produz o choro
Não há de ser no século vindouro
Um simples movimento para rir?!

Que espécies outras, do Equador aos polos,
Na prisão milenária dos subsolos,
Rasgando avidamente o húmus malsão,
Não trabalham, com a febre mais bravia,
Para erguer, na ânsia cósmica, a Energia
À última etapa da objetivação?!

É inútil, pois, que, a espiar enigmas, entres
Na química genésica dos ventres,
Porque em todas as coisas, afinal,
Crânio, ovário, montanha, árvore, iceberg,
Tragicamente, diante do Homem, se ergue
A esfinge do Mistério Universal!

A própria força em que teu Ser se expande,
Para esconder-se nessa esfinge grande,
Deu-te (oh! mistério que se não traduz!)
Neste astro ruim de tênebras e abrolhos
A efeméride orgânica dos olhos
E o simulacro atordoador da Luz!

Por isto, oh! filho dos terráqueos limos,
Nós, arvoredos desterrados, rimos
Das vãs diatribes com que aturdes o ar ...
Rimos, isto é, choramos, porque, em suma,
Rir da desgraça que de ti ressuma
É quase a mesma coisa que chorar!”

Às vibrações daquele horrível carme
Meu dispêndio nervoso era tamanho
Que eu sentia no corpo um vácuo estranho
Como uma boca sôfrega a esvaziar-me!

Na avançada epiléptica dos medos
Cria ouvir, a escalar Céus e apogeus,
A voz cavernosíssima de Deus,
Reproduzida pelos arvoredos!

Agora, astro decrépito, em destroços,
Eu, desgraçadamente magro, a erguer-me,
Tinha necessidade de esconder-me
Longe da espécie humana, com os meus ossos!

Restava apenas na minha alma bruta
Onde frutificara outrora o Amor
Uma volicional fome interior
De renúncia budística absoluta!

Porque, naquela noite de ânsia e inferno,
Eu fora, alheio ao mundanário ruído,
A maior expressão do homem vencido
Diante da sombra do Mistério Eterno!

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36625/17/a-riqueza-vocabular-da-poesia-de-augusto-dos-anjos



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