“esta é a mágica de Kafka, fazer de um mínimo um infinito
para a crítica e o leitor.”
FRANZ KAFKA E A
METAMORFOSE
Franz Kafka nasceu em Praga, no Império Austro-Húngaro, que
atualmente é a República Tcheca, em 3 de julho de 1883, e veio a falecer onde
hoje é a atual Áustria, em 3 de junho de 1924. Kafka escrevia na língua alemã, e
foi um autor de romances e contos, e que veio a se tornar um dos mais
influentes escritores do século XX, e isso com êxito grande em toda a crítica
literária. Grande parte da obra de Kafka, que envolve livros emblemáticos como A
Metamorfose, O Processo e O Castelo, é um trabalho literário que tem temas como
a alienação e o embrutecimento psicológico e físico, a burocracia, e isso tanto
como alegoria como algo bem concreto, e que podem ter como conteúdo conflitos
familiares, personagens com vidas terríveis, envolvidas em tramas
insuportáveis, e que vai da citada perdição burocrática da vida concreta até a
verdadeiras mutações de cunho místico.
A Metamorfose (Die Verwandlung em alemão) é uma novela de
Franz Kafka, que foi publicada pela primeira vez em 1915, e que vem a ser um
dos textos mais comentados, conhecidos e estudados da obra kafkiana, tendo sido
escrita, na verdade, em novembro de 1912, num espaço de 20 dias para a sua
conclusão.
GREGOR SAMSA
Gregor Samsa é o personagem principal desta estória, e que de
caixeiro-viajante, dedicado a pagar uma dívida financeira familiar com o seu
trabalho, se vê diante de sua metamorfose no que pode ser entendido como um
tipo de inseto. Gregor, quando começa toda a estória, tinha despertado pela
manhã após ter tido sonhos intranquilos. Sua divisão se dá entre o que era e o
que veio a se tornar, e isso numa linguagem alegórica, repleta de interpretações
que podem ir de psicologismos a uma transformação diabólica, como em algo
concreto, literal, como faz transparecer nesta narrativa insólita e original
que é o livro A Metamorfose.
A rotina de caixeiro-viajante de Gregor Samsa repetia a do
padrão do trabalho alienado, mas que tinha uma segurança típica de estar
garantindo o mínimo de uma vida regular, tanto para ele, como para a sua
família, que tinha, além dele, sua mãe e seu pai, e sua irmã mais nova, todos
no mesmo apartamento, e que tinham nele a fonte única de renda, uma vez que seu
pai já estava aposentado, e sua irmã tinha apenas 17 anos. Ele tinha esta
segurança, mas tal situação era frágil, e a narrativa deste conto kafkiano, se
possui algum sentido além do absurdo da própria metamorfose, tem este de ser a
exposição de que nenhuma segurança pode ser suficiente, a fragilidade de Gregor
já vinha de sua atuação como caixeiro-viajante, e se torna literal com a sua
mutação em um suposto inseto.
O SENTIDO ALEGÓRICO DO
CONTO
A alegoria de inseto tem também o viés concreto, literal, e
se se pode trabalhar assim na análise deste conto kafkiano, é bom termos
esclarecidos o que esta metamorfose tem de sentido alegórico e o que tem de
literal, uma vez que, a meu ver, este conto parece ter estas duas frentes de
interpretação, as duas sendo de mesma importância para entendermos a que inseto
nos referimos, e quem foi Gregor Samsa até esta mutação insólita, pois ele tem
uma carga biográfica que o pode ter levado do despertar de sonhos intranquilos
para uma nova vida desesperada de se ver, de uma hora para a outra, inutilizado
pela sua nova forma agora inumana.
O sentido alegórico tem nesta carga biográfica seu meio de
análise, pois se de caixeiro-viajante, Gregor se vê numa nova situação de
inutilidade, como um suposto inseto, com seus movimentos, mobilidade e
autonomia comprometidos, talvez em seu trabalho, que ele cumpria
responsavelmente, algo de sua liberdade já estivesse bem combalida, pois da
repetição desta rotina, ele tinha a segurança de sustentar a sua família, mas
sua liberdade como homem sempre se viu neste limite entre o dever cego de sua
atribuição, e a frustração de não ter para onde ir. Movimento e mobilidade que
viram, enfim, do avesso quando Gregor desperta de seus sonhos intranquilos
(sinal de que algo já não ia bem com ele), e está agora atado na cama numa nova
condição que não é mais a humana, pois se sua liberdade como homem já não se
via no seu trabalho automático de caixeiro-viajante, neste novo ser, então, ele
passa de um aprisionamento moral de seu trabalho para uma prisão muito maior,
que é a falta de autonomia física, tornado inseto.
De sua biografia aprisionada moralmente na responsabilidade
do trabalho mais que comum, sem grandes sonhos, a falta de liberdade ganha
contornos terríveis neste seu limite físico agora como um novo ser. E Gregor
passa a analisar esta sua nova condição inumana, tenta primeiro se movimentar,
mas o resultado é pífio. Como caixeiro-viajante, ironicamente, ele tinha que se
mover em demasia, mas tinha um tipo de prisão da responsabilidade de pagar uma
dívida familiar e garantir o mínimo em seu apartamento.
Gregor, então, de uma mobilidade de viajar a trabalho,
escondia nisso sua conformidade com algo rotineiro, que estava em bom lugar, e só
aparentemente, pois ao se ver como inseto, podemos ligar os pontos entre a sua
profissão de caixeiro-viajante, com a sua metamorfose em inseto, e este é o
sentido alegórico, as razões possivelmente ocultas de sua transformação, e a
fronteira que vai de sua imobilidade moral para uma nova paralisação física
como efeito colateral. E a relação que se faz é da ideia de impotência ao ver
seus próprios movimentos e liberdade de locomoção comprometidos séria e
gravemente.
A primeira percepção que se tem ao ler este conto de Kafka é
se ver diante de um Gregor Samsa em luta com a sua própria mobilidade, sua
liberdade, sua autonomia, e que tem na imagem de inseto um sentimento que ele
já tinha como caixeiro-viajante, pois ao se mover em seu trabalho, na verdade
Gregor tinha outros sonhos, e o que via, na verdade, eram apenas seus sonhos
intranquilos de um trabalhador alienado, fazendo de tudo para se manter em
conformidade com os costumes.
Mas, de um súbito, seu destino se revolta, e ele se vê
distante de sua condição humana, virando pelo avesso tudo o que crera como real
e estável, pois quando se torna um inseto, ele já não tinha toda esta segurança
que achava ser real e palpável, e tem nesta sua luta por liberdade, um fim
trágico, como inseto. Já não era mais um homem, já não tinha o pouco de
liberdade que lhe restava, e está numa nova prisão em que tem que estudar o seu
novo corpo na esperança vã de se recuperar em seus movimentos físicos.
Em seu quarto, Gregor inicia uma nova luta, e sua preocupação
passa pelo trabalho, de que horas chegaria até ele, sem bem perceber que estava
diante de um dilema bem mais grave, de que não tinha mais a condição humana, e
de que sua aparência mudara para uma nova forma repugnante, e que iria atingir
diretamente a sua própria família. A alegoria que se tem é o nexo entre a falta
de liberdade que ele tinha como trabalhador e a sua nova forma de inseto, e o
concreto é que isso estava de fato acontecendo, ele teria que se ver numa
realidade transformada, e estudar as suas alternativas, que dali em diante
seriam totalmente nulas, pois Gregor perdera o resto de liberdade que ele um
dia almejara.
O SENTIDO LITERAL
O sentido literal pode partir da análise desta nova condição
em si mesma, sem as razões de sua metamorfose em relação a sua biografia e seu
trabalho, mas tomando sua forma de inseto como algo definitivo, concreto. A
análise literal do conto agora já prescinde de pretensas interpretações entre o
Gregor humano e este ser repugnante que se tornara, se concentrando nos dilemas
próprios desta nova vida insólita que Gregor teria que, a partir deste dia, de
enfrentar. Ou seja, Gregor em sua vida inumana e, paradoxalmente, ainda humano
no terreno dos sentimentos.
Gregor está, por incrível que pareça, fisicamente numa forma
que não é humana, mas tem ainda o coração de um homem, mas o conto vira uma
trama em que isto não é compreendido pela família, que passa a lhe evitar, com
a irmã lhe dando de comer sutilmente, e tendo Gregor no inferno de seu quarto
como uma condenação para ele e também para a sua família, como numa espécie de
nêmesis que não aparece como tal no conto, que é bem factual, sem grandes
saltos especulativos, o que demanda prioridade, em certo momento, na interpretação
literal mais do que a alegórica, que é mais uma pretensão da crítica do que um
respeito ao que o texto diz sem necessariamente sugerir.
Pois Kafka pode fazer uma dupla frente em que o intérprete
pode fazer o autor sugerir quando o mesmo deixa em aberto e reduz isto a uma
descrição apenas do absurdo e da falta de sentido que tem um homem acordar
metamorfoseado. A banalidade, aqui, talvez seja a de Kafka não exatamente
sugerir, mas apenas descrever algo que pode erguer frentes forçadas de sugestão
ao intérprete do conto. E este é o
paradoxo. Kafka descreve o que aos sentidos da crítica pode suscitar algo
interminável, se nos afogarmos em sentidos alegóricos, por exemplo. Daí a
preferência de citar a alegoria apenas como introdução, e descrever junto com
Kafka, como ele descreve, algo literal para a estrutura deste conto, um homem
que virou um ser repugnante, sem razões de ser, mas que foi assim. Ou seja,
Kafka não dá razões, nem sugere, mas provoca um terremoto interpretativo com
sua descrição seca.
E este conto kafkiano se desenvolve em uma trama
perturbadoramente literal, não “se explica” nunca a metamorfose, isto é, razões
não são apresentadas, a descrição, como eu disse, é seca, e esta secura já vem
como um soco na clássica abertura do conto, quando Gregor Samsa “simplesmente”
desperta de sonhos intranquilos e está agora como um suposto inseto, enredado
numa bolha que é o seu quarto e sendo rechaçado pela sua família que, na
verdade, não sabe bem se aquela forma repugnante é mesmo Gregor.
Todo o conto é o conflito entre a luta de Gregor por
mobilidade, ainda com sentimentos humanos, embora nunca notados pelos que o
cercam, e a luta familiar entre uma realidade humana e um ser estranho que
agora habita o seu meio. E uma das coisas mais angustiantes deste conto é
justamente o fato de Gregor não ter mais a forma humana, mas conservar no seu
coração o conteúdo humano, o que também Kafka não explica. E uma boa narrativa
é sempre esta que suscita ao apenas descrever, uma das melhores técnicas de
contar uma boa estória, e Kafka realiza isto de forma magistral, pois é um dos
escritores que mais sugeriu apenas com descrições secas, e isto é adorável num
escritor.
A DESCRIÇÃO E A
SUGESTÃO
A secura de A Metamorfose, portanto, vem encharcada de livres
e pretensas interpretações. A magia de Kafka mora justamente neste seu talento
de levantar um mundo inteiro numa estória aparentemente simples, e no caso do
conto em questão, que pode ser sutilmente uma filosofia niilista da falta
absoluta de sentido para a vida, mas Kafka também não diz isto, apenas
descreve, e com sua descrição implacável, se diverte nos perturbando os
sentidos como se caçoasse de seus futuros críticos.
E o divertimento, na verdade, é para todos, sejam os
críticos, que se debruçam na sua descrição, seja para os leitores, que apreciam
sem mais um bom conto como A Metamorfose. E que Kafka faz ficar vivo e
cortante, pois da descrição seca, ele embute justamente este caldo profundo em
que se dá o dilema de um homem que virou inseto, e que pode passar por várias
questões, tal como eu disse, da mobilidade, da fronteira física, como da
relação entre o tédio de um caixeiro-viajante que entra em um tipo específico
de colapso, e que tem na descrição sui generis de um suposto inseto o que Kafka
disse e o que Kafka não disse, o que Kafka levantou de um mundo enorme com
pequenos sopros de ilusão. E esta é a mágica de Kafka, fazer de um mínimo um
infinito para a crítica e o leitor.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31553/17/a-metamorfose-de-franz-kafka
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