“No poema de Mallarmé as miragens gráficas do naufrágio e da
constelação se insinuam tênue, naturalmente”
Pode-se considerar, de acordo com Augusto de Campos, Un Coup
de Dés (Um Lance de Dados) de Mallarmé como “o limiar da nova poesia”. E ainda
segue a descrição precisa de Augusto de Campos sobre o acontecimento que foi
este poema: “Mallarmé é o inventor de um processo de organização poética cuja
significação para a arte da palavra se nos afigura comparável, esteticamente, ao
valor musical da série, descoberta por Schoenberg, purificada por Webern, e
através da filtração deste, legada aos jovens compositores eletrônicos, a
presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen. Esse processo se
poderia exprimir pela palavra estrutura”.
Ainda podemos dizer que tal inovação corre junto aos
desempenhos e conquistas formais de Ezra Pound e James Joyce, e ainda o radical
cummings, concluindo Augusto de Campos, com esta: “as subdivisões prismáticas
da Ideia de Mallarmé, o método ideogrâmico de Pound, a simultaneidade joyciana
e a mímica verbal de cummings convergem para um novo conceito de composição –
uma ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de forma – uma
ORGANOFORMA – onde noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo,
tendem a desaparecer diante da ideia poético-gestaltiana, poético-musical,
poético-ideogrâmica de ESTRUTURA”.
Mallarmé então é um dos primeiros poetas da História a fazer
uma denúncia até então incompreensível, de que havia algo a demolir, e por uma
razão radical: era o tempo novo da crise do verso e da linguagem. A esta
consciência nova é que Mallarmé dá voz, usando em imagem o que o verso
silogístico só poderia realizar de maneira prolixa, rompendo então com este
nexo lógico para algo circular em forma de mosaico. Então, não é mais possível,
a partir de Mallarmé, e sobretudo quando este faz O Lance de Dados, algum poeta
que queira o novo não passar por este caminho aberto, como uma cruzada para o
desconhecido, navegando para além do cabo da tormenta, nesta esperança renovada
que Mallarmé soprou para os que viessem depois dele.
E, falando da poesia de língua portuguesa, por exemplo, não
há como entender suas novas linhas de expressão de poesia moderna, sem lembrar
de Mallarmé, pois sem ele não há como acessar o sentido desta nova poesia. Como
diz Augusto de Campos: “Pense-se em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro
(especificamente o Fernando Pessoa dos sonetos de “Passos da Cruz” e o
Sá-Carneiro que, em defesa do cubismo, escreve ao primeiro: Entretanto, meu
caro, tão estranhos e incompreensíveis são muitos dos sonetos admiráveis de
Mallarmé. E nós compreendemo-los.) Pense-se em Pedro Kilkerry, em Drummond (o
Drummond de “Áporo”, “Claro Enigma” e “Isso é Aquilo”), no João Cabral de
“Anti-Ode” e “Psicologia da Composição””.
Em relação ao conflito do poeta com o mundo, Mário Faustino
pontua: “A um mundo infame, como ainda é o nosso” (...) “Rimbaud, que o
rejeitava, reagiu rejeitando também a própria poesia. Mallarmé, que o rejeita,
reage, refugiando-se na poesia. Em todo um século ninguém é mais poeta; ninguém
celebra e personifica mais que ele a dignidade, a nobreza, a divindade da
Poesia; ninguém faz tanto da poesia um instrumento, um meio e uma justificação
de existir” (...) “seus poemas são atos e são coisas”. E cabe mais uma
observação de Augusto de Campos: “As experiências tipográficas funcionais,
iniciadas por Mallarmé em Un Coup de Dés tiveram continuação muito menos
lúcida, alguns anos após, com o Futurismo italiano e Apollinaire, para só se
cristalizarem outra vez funcionalmente nas obras de Joyce, Pound e cummings.
A revolução tipográfica futurista, por sua vez, não foi
marcada, portanto, por uma realização funcional da estrutura mallarmaica, pois
era fruto de uma época de vanguardas, em que era comum rupturas retumbantes
caracterizadas em demasia pelo excesso e inebriação, como um ímpeto artístico
sem muita ciência ou direção. No entanto, coube a Marinetti e ao Movimento
Futurista a prioridade, dentre as outras vanguardas, na afirmação decidida por
uma nova tipografia. Pois já no seu “Manifesto técnico da poesia futurista
(1912)”, Marinetti já se afirmava contra as limitações do diagrama da página, o
que levava ele a vislumbrar a poesia contra tais fluxos e refluxos, poemas com
cores, com rompantes tais como: “cursivas para as séries de sensações análogas
e rápidas, negrito para as onomatopeias violentas”. Ou ainda: “Livre direção
das linhas (oblíquas, verticais etc.), substituição da pontuação pelos sinais
matemáticos e musicais etc.”
Pode-se perceber, contudo, que tais rompantes ainda careciam
de algo mais sólido, pois havia muito de ingenuidade em algumas das vanguardas
do século XX, ainda que fossem fundamentais para a ruptura com formas
tradicionais de arte, tendo então ainda como efeito o fato de que no futurismo
havia uma renovação poética que os próprios não realizariam inteiramente,
embora fosse uma proposta com maior alcance de suas intenções que, por exemplo,
movimentos como o dadaísmo e o surrealismo. Sendo uma realização muito mais
eficiente, embora ainda com limitações, os Calligrammes de Apollinaire, o qual
reconhecia seu débito com o futurismo, como o primeiro poeta a tentar uma
explicação para a nova ordem poética pelo ideograma, mas ainda ingênuo, forçando
representações figurativas, ideograma que ganhará foco e luz com Ezra Pound,
este sim um poeta de ciência, que daria cabo do problema, pois era um homem
mais culto, enérgico, amplamente dotado e informado, estabelecendo em
definitivo a noção do método ideogrâmico aplicado à poesia.
Pois Pound chega a esta particular forma, assim como
Mallarmé, partindo da noção de estrutura, e Pound a liga à música, mas tal
noção de estrutura tem ainda mais felicidade com Pound, pois este a realiza com
maior objetividade, e isto através do ideograma chinês. E tal junção da poesia
com o ideograma é aplicado inventivamente ao gigantesco empreendimento dos
Cantos. Nesse poema extraordinário, de fragmentos justapostos, Cantos a Cantos,
sem ordem silogística, o poema vem completo, como uma imensa configuração de um
fantástico ideograma da cosmovisão histórica poundiana. Um sentido de estrutura
semelhante ainda realiza o poeta cummings, com todo o cabedal ideogrâmico e
musical poundiano. Mas este usa mais da intuição, sem a consciência histórica
totalizante de Pound, levando, cummings, tal estrutura para o lado oposto, o do
ideograma e do contraponto à miniatura. Pois cummings prefere o “cromo lírico”
aos grandes eventos histórico-culturais de Pound. E acaba fazendo uma obra com
dimensões reduzidas, como um microscopista decompondo o léxico e chegando à
estrutura básica do ideograma e do contraponto. E cummings ainda padece de um
certo figurativismo, mas muito mais sutil do que o de Apollinaire, por exemplo.
Por sua vez, finalmente, depois deste passeio
histórico-poético, falando do poema Um Lance de Dados, de 1897, “Un Coup de
Dés” não é exatamente um poema de fragmentos, embora pareça, pois é um todo
coeso de estrutura circular. As relações, como o dado e seus lances, acontecem
num horizonte probabilístico, através de formas verbais condicionais e com
futuros hipotéticos, numa vértebra epistemológica que ainda contém ablativos
absolutos e gerúndios. O texto mallarmaico, portanto, evoca, suscita, incita,
numa conformação geral em que o fragmento em si aparece como sentido sutil,
forma fluida, de maneira mais topológica do que como uma imposição definida por
uma pictografia exterior, tal imposição que ocorre, por exemplo, na maioria dos
caligramas de Apollinaire.
Augusto de Campos deixa clara a diferença entre o pensamento
visual de Mallarmé e a ideia caligrâmica de Apollinaire: “É certo que se pode
indagar aqui do valor sugestivo de uma relação fisiognômica entre as palavras e
o objeto por elas representado, à qual o próprio Mallarmé não teria sido
indiferente. Mas ainda assim, cumpre fazer uma distinção qualitativa. No poema
de Mallarmé as miragens gráficas do naufrágio e da constelação se insinuam
tênue, naturalmente, com a mesma naturalidade e discrição com que apenas dois
traços podem configurar o ideograma chinês para a palavra homem (...) Já em
Apollinaire a estrutura é evidentemente imposta ao poema, exterior às palavras,
que tomam a forma do recipiente, mas não são alteradas por ele.”
Como teoria da composição, uma hermenêutica de Un Coup de Dés
(Um Lance de Dados) pode passar pelo sentido de que neste poema não há a
abolição do acaso, não há sua elisão, mas a sua incorporação como forma e
conteúdo, como o termo ativo do processo criativo. E encerra então Décio
Pignatari: “Renunciando à disputa do absoluto, ficamos no campo magnético do
relativo perene.” Tal é o roteiro, digamos, em que Mallarmé alcança um
racionalismo construtivo, sensível, não científico, no labor sobre os dados da
sensibilidade, um poema do acaso e da probabilidade de um simples lance de
dados.
UM LANCE DE DADOS
JAMAIS
Mesmo quando lançado em circunstâncias
Eternas
Do fundo de um naufrágio
Seja
Que
O Abismo
Branco
Estanco
Iroso
Sob uma inclinação
Plane desesperadamente
De asa
A sua
De
Antemão retombada do mal de alçar o voo
E cobrindo os escarcéus
Cortando cerce os saltos
No mais íntimo resuma
A sombra infusa no profundo por esta vela alternativa
Até adaptar
À envergadura
Sua hiante profundeza enquanto casco
De uma nau
Pensa de um ou de outro bordo
O MESTRE
Exsurto
Inferindo
Dessa conflagração
Que se
Como se ameaça
O único Número que não pode
Hesita
Cadáver pelo braço
Antes
De jogar
Maníaco encanecido
A partida
Em nome das ondas
Uma
Naufrágio esse
Fora de antigos cálculos
Onde a manobra com a idade olvidada
Outrora ele empunhara o leme
A seus pés
Do horizonte unânime
Prepara
Se agita e mescla
No punho que o estreitava
Um destino e os ventos
Ser um outro
Espírito
Para o arrojar
Na tempestade
Repregar-lhe a divisão e passar altivo
Apartado do segredo que guarda
Invade a cabeça
Escoa barba submissa
Direto do homem
Sem nau
Não importa
Onde vã
Ancestralmente em não abrir a mão
Crispada
Para além da inútil testa
Legado na desaparição
A alguém
Ambíguo
O ulterior demônio imemorial
Tendo
De regiões nenhumas
Induzido
O velho versus esta conjunção suprema com a probabilidade
Aquele
Sua sombra pueril
Afagada e polida e devota e lavada
Suavizada pela vaga e subtraída
Aos duros ossos perdidos entre as pranchas
Nato
De um embate
As águas pelo ancião tentando ou o ancião contra as águas
Uma chance ociosa
Núpcias
Cujo
Véu de ilusão ressurto ânsia instante
Como o fantasma de um gesto
Vacilará
Se abaterá
Insânia
(Poema de Stéphane Mallarmé, tradução de Haroldo de Campos)
(obs: pela dimensão do poema, aqui está somente as duas
primeiras partes do poema, e também não repliquei as diferentes formatações dos
versos e palavras, que muitas vezes aparecem em caixas diversas e dispersos no
papel, nos dois casos por razões de concisão, lembrando que sua leitura ideal,
isto é, o poema, se dá sobretudo como experiência visual)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/28146/17/stephane-mallarme-a-poesia-nova-de-vanguarda-parte-iii
Nenhum comentário:
Postar um comentário