PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

ENRIQUE DUSSELL E A FILOSOFIA LATINO-AMERICANA (PARTE II)

A questão da organização
Situamo-nos, neste capítulo VI da Ética da libertação no nível prático de factibilidade estratégica, será então o uso da razão estratégica, subsumindo a ética material crítica e a moral formal crítica, junto com uma razão analítica (teórica) e uma razão instrumental (técnica), que dará o direcionamento preciso da práxis de libertação (ação crítica estratégico-prática), com a devida subsunção desta razão estratégica crítica na razão libertadora para que se realize o projeto libertador.
O primeiro passo da práxis de libertação se dá na organização das frentes de libertação, tal que é a articulação do intelectual com o sujeito histórico transformador, pois na ação transformadora é necessário um suporte teórico, ou seja, a práxis de libertação não se efetua sem uma teoria que lhe dê sustentação, é toda a questão da articulação entre teoria e práxis como a própria estratégia do projeto libertador.
Dussel cita Marx como um dos mais importantes intelectuais que realizaram esta conexão teoria-práxis, pois Marx, na sua teoria crítica da economia política, deu o suporte teórico que faltava para uma ação transformadora revolucionária. Marx forneceu uma ciência social crítica revolucionária que era, em um só tempo, o projeto de libertação comunista e a desconstrução teórica do economicismo standard da burguesia liberal (com arautos como Adam Smith e David Ricardo), principalmente com o seu conceito inovador de mais-valia, que serviu como a crítica fundamental da lógica do capital, era a explicação histórico-econômica das causas da negatividade material das vítimas (no caso, o proletariado).
Marx atuou tanto teoricamente como na práxis revolucionária, era cientista e estrategista, não ficou encastelado num academicismo livresco, pois entendeu que a transformação da realidade era muito mais importante que a sua mera interpretação, seu objetivo era a auto-emancipação do proletariado (classe social vítima do capitalismo industrial burguês). Foi a partir de Marx que se definiu melhor o papel de intervenção do intelectual na práxis de transformação histórica, sendo a revolução, na visão dusseliana, o paroxismo da práxis de libertação, pode ocorrer como tal, mas não é a revolução a única via possível de uma práxis libertadora, em Dussel tal práxis se dá mais de forma cotidiana, diariamente, a revolução seria uma situação-limite da práxis de libertação.
O mais importante em Marx, contudo, é que, em sua concepção, o proletariado é auto-responsável por sua libertação, ou seja, é a comunidade de vítimas do sistema que deve se auto-libertar ante o sistema, exigindo para tanto, clareza tática e precisão teórica para uma luta estratégico-libertadora que queira ser bem sucedida, ou seja, é o saber-fazer que exige planejamento prático com precisão científica, não há tática revolucionária sem uma ciência revolucionária.
Dussel cita também a intelectual e militante polonesa Rosa Luxemburg na sua exposição sobre a questão da organização das frentes de libertação na práxis de libertação, a qual, segundo Dussel, demonstrou a mesma coerência de Marx no tocante à articulação teoria-práxis, tão necessária para a organização dos movimentos sociais libertadores das vítimas.
Sua concepção revolucionária manteve a necessária subsunção da factibilidade crítica da práxis de libertação dos princípios ético-material crítico e moral-formal crítico, Rosa Luxemburg não desfez o vínculo necessário entre os princípios e a ação tática, pois os princípios impunham limites estritos à atividade prática, pois são os princípios que delimitam, no nível da organização estratégica, na concepção de Rosa Luxemburg, os fins a alcançar, os meios de luta, e os modos ou métodos de luta (os três níveis da razão estratégico-instrumental), e isto para toda ação revolucionária (ou transformadora) que quiser ter êxito, constituindo assim a razão estratégico-crítica, que é estritamente ética, unindo então teoria e práxis na libertação das vítimas, pois é somente com esta união de teoria e práxis, segundo Dussel, que a organização das frentes de libertação é possível e se torna factível.
Dussel também destaca a crítica de Rosa Luxemburg em relação ao vanguardismo, sobretudo o leninista, pois Lênin, na visão de Rosa Luxemburg, centralizou o poder de decisão do movimento libertador comunista na organização ortodoxa do partido comunista com um comitê central, o que se tornou o modelo ideal de organização no burocratismo stalinista, e que, para Dussel, foi o motivo do fracasso da revolução soviética. Tal organização centralizadora subestimou a capacidade de auto-organização das massas, pois o vanguardismo leninista consistia numa organização “de cima para baixo”, o que significava que a concepção teórico-formal do movimento libertador pertencia aos intelectuais vanguardistas (a vanguarda), que, deste modo, tinham nas massas oprimidas a matéria a ser organizada por eles, eram os intelectuais auto-conscientes que fixavam os fins e a própria organização das massas, massas que eram as “realizadoras” do que era determinado pela vanguarda. Quer dizer, tal modo de organização, para Rosa Luxemburg, era um erro, o que ficou provado historicamente com a queda da URSS. Era preciso que as massas se educassem para se auto-libertarem, sendo a participação do cientista, perito ou militante, apenas como suporte da ação popular, e não a ação popular como suporte da vanguarda intelectual, inversão que levou a uma extrema disciplina burocrático-partidária que atingiu seu ápice no stalinismo, o projeto de libertação comunista idealizado por Marx se tornando instrumento de cegueira ideológica e de subjugação das massas ao “projeto do partido”.
Emergência de novos sujeitos sócio-históricos
Dussel pergunta agora pelo sujeito da práxis de libertação, e afirma que todo sujeito ético da vida cotidiana já é um sujeito possível da práxis de libertação, seja ele vítima ou solidário com a vítima, sendo a comunidade de vítimas o meio operacional privilegiado desta ética da libertação.
Dussel, para definir o sujeito da práxis de libertação, faz primeiro uma crítica do sujeito moderno submetido ao “paradigma da consciência”, e expõe a sua superação na crítica heideggeriana, além de sua supressão na filosofia analítica (na sua vertente do positivismo lógico), e o seu reaparecimento de forma diferenciada em outras filosofias.
O sujeito moderno aparece pela primeira vez em Descartes. Era uma subjetividade cognoscente representada pelo ego cogito, sujeito anímico descorporalizado e reduzido a uma função estritamente cognitiva, era o começo do “paradigma da consciência”. Depois temos o “sujeito transcendental” kantiano, que reforça o dualismo moderno de separação da alma e do corpo. Kant reduz a sua reflexão a um formalismo que perde completamente o critério material do conteúdo ético dos atos humanos, formalismo auto-referente da subjetividade que será mais radical ainda no Eu absoluto de Fichte, subjetividade auto-consciente, autônoma, sem corporalidade viva como referência. Hegel, por sua vez, afirma o saber absoluto como a própria realidade negando o nível objetivo de uma subjetividade corporal, razão e realidade são idênticas em Hegel, identidade absoluta que perde o contato com a própria vida cotidiana.
Em Ser e tempo, Heidegger pressupõe o horizonte fundamental do Da-sein, que é o ser-aí já pressuposto na própria atividade cognoscente do sujeito, o ser-no-mundo. Tal concepção heideggeriana antecipa-se ontologicamente ao pressuposto cognitivo da relação sujeito-objeto moderna, é uma crítica ao sujeito moderno como ego cogito, pois antes da atividade cognoscente o sujeito já está sempre no mundo empírico, cotidiano e concreto, âmbito pré-cognitivo em que o sujeito deixa de ser ego cogito e se torna ser-no-mundo, é toda a filosofia da “compreensão” heideggeriana que supera a filosofia do ego cogito cartesiana, sujeito corporal concreto que se antecipa ontologicamente à subjetividade cognoscente ôntica.
A filosofia analítica, por sua vez, na sua vertente do positivismo lógico, situava-se metodicamente no nível abstrato de inteligibilidade, deixando de fora o sujeito, e considerando apenas as proposições em si mesmas, não importando o sujeito concreto da enunciação, o que limitava tal filosofia ao mero critério de inteligibilidade (se uma proposição tem sentido ou não), jamais podendo incluir nela um critério de verdade, pois perdeu o horizonte objetivo do sujeito concreto no reducionismo do linguistic turn. Contudo, tal filosofia permanece, ainda assim, dentro do “paradigma da consciência moderna” (pressupõe o sujeito consciente da enunciação, mesmo que deixado de fora na abstração metódica do critério de inteligibilidade de uma proposição) e, seguindo tal paradigma, é de orientação solipsista (não-intersubjetiva). Tal supressão do sujeito também ocorre na “teoria de sistemas” de Luhmann, em cujo sistema os indivíduos fazem parte do “entorno”, sem qualquer poder funcional dentro do sistema, o sistema luhmanniano é auto-referente, auto-regulado. Tal supressão do sujeito na filosofia analítica do positivismo lógico, na epistemologia popperiana e no sistema luhmanniano, se deve, sobretudo, à concepção de que a razão instrumental (meio-fim) e a analítica (sujeito-objeto teórico) são as únicas racionalidades que podem ter validade empírica e universal. Também neste caminho epistemológico sem sujeitos está a epistemologia teorética abstrata de Althusser, como reação ao sujeito proletário metafísico stalinista, reinterpretação marxista sem sujeito com influência do estruturalismo de Lévi-Strauss.
De outro lado, está a crítica foucaltiana contra a “soberania do sujeito”, uma visão epistemológico-histórica que terá no último Foucalt a afirmação do sujeito pulsional concreto na subjetivação dos lugares da enunciação pela ação disciplinar. E Dussel cita também o pensamento pós-moderno, que será uma crítica à “filosofia do sujeito” cartesiana, num ressurgimento da “pluralidade” fragmentária da Diferença na identidade.
Na pragmática, por sua vez, temos a recuperação do sujeito nos “atos-de-fala” da comunidade de comunicação, é quando a filosofia da linguagem supera a redução abstrata da filosofia analítica sem sujeito (na sua vertente do positivismo lógico, do primeiro Wittgenstein). O sujeito prático intersubjetivo supera o sujeito solipsista do “paradigma da consciência”, passamos ao nível da intersubjetividade dos “jogos de linguagem” do segundo Wittgenstein, sendo, para Dussel, a passagem fundamental determinante para a sua ética da libertação.
Por fim, antes de situar o sujeito da ética da libertação, Dussel cita ainda Lévinas e Freud. O primeiro indo aquém da ontologia heideggeriana na corporalidade do prazer e além dela na Alteridade pela responsabilidade pelo outro, e o segundo ampliando a subjetividade com a conceituação do inconsciente, negando um sujeito totalmente auto-consciente.
Dussel passa agora então ao sujeito humano concreto vivo como modo de realidade, sujeito que subsume todas as etapas demonstradas anteriormente pelos outros pensadores citados por Dussel, e que será o sujeito de sua ética da libertação, indo de encontro às reduções sistêmicas do cálculo meio-fim que tornam tal sujeito invisível, reintroduzindo o referencial ético-material de vida-morte, tendo em conta os sujeitos vivos que operam nos sistemas performativos como “partes funcionais”, revelando aí o sujeito negado que se materializa na vítima desses sistemas performativos, o Outro que o sistema, o oprimido ou excluído, vítima não-intencional que mostra a irracionalidade da lógica performativa sistêmica auto-referente e fetichizada, subjetividade vitimizada que aparece como interpelação pela vida que lhe é negada, interpelação que se não for respondida provoca a morte da vítima. Dussel fala aqui de um sujeito histórico, social, cultural, corpóreo. E afirma que o sujeito da práxis de libertação é a comunidade das vítimas e aqueles co-responsavelmente articulados a ela, abrindo o horizonte intersubjetivo do que afirma ser o “sujeito sócio-histórico”, negando qualquer subjetividade metafísica, e afirmando uma subjetividade intersubjetiva que é uma comunidade de vida e de comunicação que têm características e objetivos comuns, sendo a emergência desses novos sujeitos a passagem de uma subjetividade passiva para outra de maior auto-consciência, a consciência ético-crítica da vítima como vítima que efetua uma crítica auto-consciente do sistema que causa a vitimização, tornando-se o sujeito sócio-histórico, desta maneira, uma subjetividade libertadora.
A questão reforma-transformação
Dussel agora faz uma diferenciação entre a práxis funcional, de reforma, e crítico-libertadora. Afirma que a tarefa da ética é mostrar e normatizar a compatibilidade do sistema vigente com a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana de cada sujeito ético com direito à participação discursiva simétrica. Quando não ocorre tal compatibilidade, a intervenção ético-crítica se faz necessária. É neste contexto que Dussel compreende a relação entre reforma, revolução e transformação.
O reformista quer reformar o sistema vigente a partir de dentro, a ação reformista é aquela que cumpre com os critérios e princípios do sistema vigente, é uma crítica feita dentro dos parâmetros do sistema. Mas, contudo, o reformista não é o intelectual tradicional ou funcional do sistema vigente, ele adota na sua aparente crítica os critérios do sistema que pretende criticar, podemos ver isto no surgimento da social-democracia alemã, capitalista em seu horizonte fundamental, e socialista em suas formulações lingüísticas, o que Rosa Luxemburg critica como deturpação do pensamento de Marx numa interpretação funcional ao capital.
Entretanto, para a Ética da Libertação, discordando de Rosa Luxemburg, a ação ética contrária à práxis funcional ou reformista não é necessariamente a revolução, mas a transformação, o que está de acordo com a orientação cotidiana da vida fornecida por esta ética crítica de Dussel. “Transformar”, no processo estratégico e tático, é mudar uma norma, ato, instituição, microestrutura ou sistema completo de eticidade, sem ser necessariamente uma revolução, este “transformar” dusseliano diz mais respeito às mudanças cotidianas do que às mudanças radicais como as que ocorrem numa revolução, a revolução seria, como já dito anteriormente, o paroxismo da práxis de libertação, mas não sua característica usual.
O que está de acordo com a transformação dusseliana e com a sua práxis de libertação é o fato do sujeito sócio-histórico organizado situar suas estratégias, táticas e métodos dentro do quadro definido pelos princípios ético-críticos (níveis ético-material crítico, moral-formal crítico, e de factibilidade ético-crítica), tal é a libertação possível para Dussel, o que não faz de tal transformação ético-crítica não-revolucionária uma ação reformista, em absoluto, pois o reformista critica de acordo com os critérios vigentes do sistema, ao passo que o agente transformador age criativamente numa crítica desconstrutiva de tais critérios, sugerindo novos critérios e princípios. A ação ético-crítica ou libertadora tem sua referência na comunidade crítica das vítimas, combatendo o fetichismo do sistema performativo da razão instrumental materializado no sistema vigente (leia-se: capitalismo globalizado ou transnacional) do progresso quantitativo e transformando-o num progresso qualitativo que inclui todos os critérios e princípios ético-críticos expostos por Dussel em sua Ética da libertação, e que constituirá o processo histórico de libertação.
Coação legítima, violência e práxis de libertação
Dussel tenta distinguir a coação legítima da violência, ou melhor, quando a coação perde legitimidade e se torna violência, fazendo isto segundo as categorias analíticas de sua ética da libertação, de acordo com o direito de todo sistema institucional de contar com os meios jurídicos e instrumentais suficientes de coação pela ordem de tal sistema, obedecendo, claro, a convenção discursiva dos afetados em simetria (legitimação), que permita, por sua vez, reproduzir e desenvolver a vida de cada sujeito ético no âmbito sistêmico. A instituição vigente deve apoiar-se, enfim, numa coação legítima, o que significa em Dussel que tenha factibilidade ética, objetividade pública da instituição para além da mera aceitação subjetiva, a coação é legítima quando cumpre com as exigências dos princípios material, formal-discursivo e de factibilidade ética.
Dussel, de acordo com a sua posição sobre a coação legítima, discorda de Max Weber, para quem a dominação é constitutiva da legitimidade do sistema institucional, sendo para Dussel apenas o cumprimento de princípios éticos. Dussel não denomina como violência o uso da força pelo sistema institucional por meio de leis, tribunais, armas, organismos policiais e lugares de reclusão, o problema é quando as vítimas de um sistema formal vigente não podem viver ou foram excluídas com violência e discursivamente de tal sistema, quando a coação legal perde legitimidade, podendo se tornar simplesmente violência para a consciência ético-comunitária das vítimas, quando se reproduz somente o sistema em detrimento da vida humana, é quando as vítimas partem para a coação defensivo-ilegal que é, contudo, legítima eticamente para as vítimas, apesar de ilegal perante o sistema.
Dussel fala da arma que evoluiu para o século XX como algo capaz de ameaçar a vida sobre o planeta Terra, a fetichização do que era antes um meio para a vida humana, conseqüência da autonomização do sistema auto-referente militarista com a tecnificação das armas, poderio militar que desde a queda da URSS tem a hegemonia dos Estados Unidos, sendo este o quadro no qual se poderá, no século XXI, refletir sobre a libertação das vítimas no planeta Terra.
A doutrina da “não-violência” de Mahatma Gandhi, o método tático da guerra sem armas de fundamentação ético-religiosa é, para Dussel, uma tática política eficiente, mas só funcionaria num estado de direito, não nas ditaduras e nas situações revolucionárias. A tática dusseliana seria a de tornar evidente a contradição do sistema numa coação legal que aparece como violência, é o começo da deslegitimação da coação legal, de sua ruína moral, os movimentos sociais denunciam a dominação do sistema vigente sobre as vítimas e reivindicam direitos emergentes ainda não sancionados positivamente sob a forma de leis, legitimidade crítica da ação das vítimas perante a legalidade coativa do sistema que agora é violência contra as vítimas.
Para Max Weber, a legitimidade do sistema se funda na dominação, não podendo, para Dussel, ter validade ético-normativa, Habermas, por sua vez, apoiou a legitimidade na normatividade da ética discursiva, mas se trata em Dussel, de legitimar o sistema segundo os princípios de uma ética da libertação, já expostos nesta monografia. A crise de legitimidade, em Dussel, é articulada com uma crise na reprodução da vida (miséria das vítimas), sendo, para a Ética da Libertação, necessário saber o momento em que a legitimidade do sistema vigente se torna ilegítima.
Para Dussel a nova legitimidade deve ser libertadora e não dominadora, para além dos três tipos de dominação weberiana (carismática, burocrática ou tradicional), a comunidade de vida e comunicação crítica das vítimas levanta-se contra o sistema estabelecido com outros critérios de verdade, validade e factibilidade, críticos e intersubjetivos, outros princípios normativos, a legitimidade nova da práxis de libertação (legitimidade dos novos sujeitos sociais emergentes) diante da legalidade do sistema, que já não é legítimo para as vítimas. Temos então, atualmente, movimentos sociais que reivindicam a inclusão das vítimas no processo econômico da revolução liberal mundial, espaços dentro da globalização econômica que desenvolvam a vida, o que se torna urgente diante da concentração de renda mundial, em que os pobres morrem e não têm a sua dignidade reconhecida, e que tampouco participam discursivamente do que é decidido no cenário político, econômico e social mundial, onde também vemos o poderio militar dos Estados Unidos com o messianismo “democrático-guerreiro” de George W. Bush incapaz de combater o terrorismo e com prejuízos financeiros decorrentes da invasão do Iraque. Temos agora, diante da repressão legal ilegítima do sistema, pois se tornou violência, a legitimação das reivindicações das vítimas nos movimentos sociais, coação legítima que visa se tornar legal, práxis de libertação que busca o fim de um sistema dominador para o começo de um sistema libertador, em Dussel, a utopia possível de sua Ética da Libertação.
A ordem vigente, por sua vez, quando exerce o monopólio da coação de forma legítima e legal, o público não se submete a uma decisão subjetiva meramente individual, dominação que é o momento da “hegemonia”, como diz Gramsci, quando o sistema estabelecido goza de boa aceitação por parte dos dominados, e que, em Dussel, para se legitimar, deve cumprir os princípios éticos material, formal e de factibilidade já citados anteriormente, a legalidade agora é legítima.

No estado moderno europeu, temos, junto com o momento da “hegemonia” de Gramsci, o “estado governativo” baseado na soberania onipresente do rei absoluto, fundamento da legalidade, com a concepção política de centralização do poder, pretendendo uma certa homogeneização “nacional” de todos os membros, com o desaparecimento da esfera autônoma do privado e do mercado, nascendo assim o “totalitarismo” moderno. Ao contrário, no “estado de direito”, existem normas válidas intersubjetivamente a partir do consenso livremente aceito no princípio racional democrático, articulando mutuamente legalidade e legitimidade.
Para a Ética da Libertação de Dussel, a ordem legal (positiva), para ser legítima, deve cumprir com a inclusão material e discursiva das vítimas, pois a partir das vítimas podemos descobrir novos significados para a coação de direito, sua legalidade e legitimidade, sendo a crítica da contradição performativa do sistema os movimentos sociais das vítimas que se organizam perante a ordem vigente, colocando em crise a legitimidade do sistema, mesmo que as ações das vítimas contra o sistema sejam ainda ilegais, pois suas ações ganham legitimidade para si mesmas, e a violência do sistema instaura a crise em sua ordem legal vigente, ilegítima para as vítimas. A práxis de libertação é legítima em sua ação crítica diante do sistema, as ações ilegais de reivindicação dos direitos das vítimas no sistema performativo se estabelecem como uma práxis de libertação legítima para as vítimas.
Dussel tematiza agora a guerra como o extremo da ação tática em sua factibilidade ética (momento da razão instrumental), assim como o paroxismo da transformação estratégica era a revolução (momento da razão estratégica), sendo tanto as guerras como as revoluções determinantes para a fisionomia do século XX, como disse Hannah Arendt. Por fim, temos o colapso da revolução soviética de 1917, se realizando enfim a revolução liberal mundial. Se a coação-limite da transformação estratégica é a revolução, agora Dussel trata a guerra como o extremo da ação tática, sendo uma estrutura estratégica em que os exércitos se enfrentam por causas diversas, podendo ser uma guerra de dominação territorial ou uma guerra de defesa da soberania, sendo apenas a última legítima para o âmbito da factibilidade ético-crítica, de ações táticas que neguem a negação das vítimas.
Depois da revolução russa de 1905, Rosa Luxemburg levantou a questão da greve geral e nacional de massas, uma decisão tática da práxis de libertação que logo se tornará legal, inaugurando uma nova época para a evolução do movimento operário, a greve é uma ação tática social, uma ação sócio-sindical, dentro de uma estratégia política, um fenômeno histórico para Luxemburg, que diz: “necessidade histórica determinada pelas condições sociais”. Para Dussel, por sua vez, a greve deve estar no âmbito da ação eticamente possível, quer dizer, as ações da greve geral não são feitas apenas com a organização, mas deve estar a serviço de um verdadeiro movimento popular, que, em Dussel, serve como “tarefa educativa”, é a partir das ações das vítimas reivindicando direitos diante do sistema que surge a conscientização das massas (as vítimas do sistema performativo capitalista, no caso), a comunidade crítica das vítimas toma consciência ético-crítica da legitimidade de sua práxis de libertação.
A práxis de libertação como tática e estratégia, realização de uma factibilidade ético-crítica, está sempre entre o anarquismo antiinstitucionalista e o reformismo integracionista, devendo por isso ter bem claros os critérios e princípios que a regem, para realizar a utopia do possível, o projeto de libertação.
O critério ético de factibilidade e o “princípio-libertação”
A práxis de libertação, em Dussel, tem sempre como referência as vítimas do sistema vigente, ação possível de transformação segundo os critérios e princípios enunciados por Dussel na sua Ética da Libertação. O critério de transformação ético-crítico, por sua vez, é um critério de factibilidade em referência às possibilidades de libertação da vítima ante o sistema dominante que aparece como contradição pela existência desta vítima, e agora, de acordo com a factibilidade ético-crítica, a transformação necessária pode ser visualizada como possível ou impossível.
O critério crítico-factível de toda transformação se dá na confrontação entre um movimento social organizado das vítimas e um sistema formal dominante, estamos agora no âmbito de sua factibilidade empírica, as possibilidades empíricas, tecnológicas, econômicas, políticas etc., considerando a negatividade da vítima no sistema vigente, critério que consiste na avaliação da capacidade estratégico-instrumental da comunidade das vítimas de transformação diante do poder do sistema vigente, critério que vai além da mera factibilidade ética de poder ou não efetuar o decidido, agora temos a confrontação direta com o sistema vigente e não apenas a justiça ética de um movimento social libertador, mas, contudo, para Dussel, a factibilidade empírica do que foi acordado entre as vítimas cumpre com os princípios ético-material crítico e moral-formal crítico para ser uma avaliação de factibilidade ético-crítica.
Diante do poder histórico-concreto do sistema vigente, as vítimas (sujeitos sócio-históricos emergentes) têm pouco poder, mas a práxis de libertação pode explorar as fragilidades do sistema vigente em seu momento de crise, é quando as vítimas se organizam e se tornam críticas do sistema. Dussel, por sua vez, deixa claro a inevitável contradição de todo sistema por ser histórico, isto é, surgem e desaparecem de acordo com as transformações da sociedade, aqui se trata, sobretudo, da imperfeição de todo sistema histórico e de sua finitude. Cabe então, à ciência social crítica, nas palavras de Dussel, explicar a impossibilidade essencial do sistema dominante de se perpetuar in the long run, as causas da negação das vítimas, e estudar as possibilidades de superação da crise do sistema e de sua transformação, tudo isso dentro de um programa científico articulado com a intenção libertadora das vítimas, sendo que a comunidade das vítimas deve calcular instrumental e estrategicamente as possibilidades efetivas de transformação, tendo ajuda da ciência social crítica (suporte teórico), mas na ação (ou seja, como práxis de libertação), onde realmente se dá o processo de libertação.
É importante lembrar que a práxis de libertação deve encontrar as fissuras do sistema vigente, por onde poderá penetrar criticamente, deixando evidente sua contradição absurda. Por outro lado, as vítimas devem avaliar realisticamente (ou empiricamente) as possibilidades de ação, pois dificilmente podem fazer frente ao sistema dominador, podendo um movimento social aparecer e desaparecer visto a fraqueza inevitável das vítimas, mas, para Dussel, a auto-avaliação das vítimas de sua capacidade de ação, deve estar sob uma discursividade comunitária crítica das vítimas num sistema democrático simétrico, de onde temos um programa concreto de ação, sendo a comunidade das vítimas o sujeito sócio-histórico da ação.
O princípio-libertação, por sua vez, é o princípio deontológico, ou seja, enuncia o dever-ser que obriga eticamente a realização da transformação do sistema vigente libertando a vítima de seu domínio, é uma obrigação, por conseguinte, da razão libertadora (razão ético-crítica prático-material, discursiva consensual e estratégico-instrumental), que é cumprida pela comunidade das vítimas, por sua capacidade de transformação do sistema vigente, capacidade da razão estratégica e instrumental (factibilidade crítica da práxis), que considera as condições técnicas, econômicas, políticas, culturais etc., para a transformação. O princípio-libertação trata do dever de todo ser humano de intervir criativamente no progresso qualitativo da história, obrigação da desconstrução negativa de normas, ações, microestruturas, instituições ou sistemas completos de eticidade que produzem a negatividade da vítima e, por conseguinte, da construção positiva de novas normas, ações, microestruturas, instituições e sistemas completos de eticidade que incluam as vítimas. O princípio-libertação é, antes de tudo, a obrigação ética da vítima de se auto-libertar (obrigação da práxis de libertação). Faz-se agora, em Dussel, a passagem de fundamentação dialético-material de um juízo de fato para um juízo normativo, passagem do critério de factibilidade crítica (possibilidade real da libertação) ao princípio-libertação (dever de operar a práxis de libertação), princípio que subsume todos os outros princípios de Dussel, princípio que é uma obrigação universal, sendo mais comum à vítima de um sistema dominador.
A libertação da vítima que o princípio-libertação torna uma obrigação se dá através da desconstrução crítica da contradição sistêmica (negatividade material e discursiva das vítimas) e a construção de novas normas, ações, microestruturas, instituições e sistemas completos de eticidade, onde as vítimas possam viver e ter participação discursiva simétrica. A práxis de libertação, por fim, procura transformar o sistema a partir das vítimas para que estas vivam, e não porque sejam as instituições intrinsecamente perversas (como para o anarquismo) ou sistematicamente justificadas (como para o conservadorismo ou o reformismo).
A Ética da Libertação reconhece concreta e positivamente o sujeito ético vivente e comunitário, sobretudo quando este irrompe como as vítimas de um sistema auto-referente que as nega (material e formalmente), reconhecimento histórico e social da diversidade intersubjetiva de comunidades sócio-históricas, especialmente das vítimas, diversidade que inclui a universalidade da razão material e discursiva, diversidade de rostos que são articulados “transversalmente” em sua natureza alterativa, o que, em Dussel, se trata do momento analético do método dialético, que parte da possibilidade distinta da Alteridade, para encontrar a universalidade na profundidade da diversidade, pois, em Dussel, em cada vítima concreta está a vítima universal. A razão ético-material, discursivo-formal e estratégico-instrumental são articuladas pela razão “transversal” a todas as alteridades distintas, particulares, se chegando ao “êxito” pelo exercício da razão estratégico-instrumental ético-crítica em que o “bem” é realizado, operação factível real da práxis de libertação como atualidade transformativa final, realização do “devido” (projeto explícito de libertação), do novum, o bem ético por excelência.
Contudo, a norma boa não é ainda o bem, a ação boa realiza a norma boa, sendo tal ação a atualidade do bem, mas não o bem propriamente. As instituições, por sua vez, também não são o bem, nem o sistema de eticidade, o bem é, por fim, um momento do próprio sujeito humano, com validade intersubjetiva e monológica. O “bem” supremo seria a plena reprodução e desenvolvimento da vida humana das vítimas, se trata de uma idéia regulativa em Dussel que se realiza parcialmente em cada ato humano julgado como bom. Mas o bem realizável pelo processo de libertação não é um bem absoluto, mas um bem histórico, a sociedade perfeita é empiricamente impossível. O bem fruto da práxis de libertação, por sua vez, é o êxito de uma empresa difícil à qual se opõem as forças superiores das estruturas do sistema dominador como o bem vigente e tradicional, o novo bem das vítimas que é obra, para Dussel, das quatro virtudes cardeais levadas ao paroxismo: fortaleza, temperança, prudência e justiça.
A Ética da Libertação de Dussel é uma ética da responsabilidade a priori pelo outro, mas também da responsabilidade a posteriori dos efeitos não intencionais das estruturas dos sistemas que se manifestam às vítimas, ética da responsabilidade que vai além de uma mera boa vontade, é uma responsabilidade que se configura como obrigação, não sendo apenas sistêmica ou ontológica, mas também pré-ontológica e transontológica, porque o é a partir do Outro, a partir das vítimas.
Dussel fornece, em sua obra Ética da Libertação, os critérios e princípios para fazer ações (a priori) e poder julgá-las como “boas” ou “más” de acordo com as vítimas, se tais ações favorecem ou não a libertação das vítimas, na tarefa do progresso qualitativo humano, na reprodução da vida e da discursividade participativa dessas vítimas. A responsabilidade pelo outro se transforma na “própria racionalidade da razão”, torna-se necessário um processo de libertação das vítimas.
Por fim, a Ética da Libertação dusseliana tenta justificar filosoficamente a práxis de libertação das vítimas em nossa época da História, a da globalização, em que o fetichismo do capital exclui a maioria de seus benefícios, revelando a contradição performática do capitalismo mundial, se erguendo então um princípio universal completamente negado pelo sistema vigente que se globaliza: o dever da produção e reprodução da vida de cada sujeito humano. Dussel constrói a sua ética sobre juízos de fato e não de valor, e o fato a que ele se refere é a exclusão da maioria da humanidade do processo da modernidade e do capitalismo, é a partir deste fato que surge a obrigação ética das vítimas de se auto-libertarem.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/25746/17/enrique-dussel-e-a-filosofia-latino-americana-parte-ii

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