A questão da organização
Situamo-nos, neste capítulo VI da Ética da libertação no nível prático
de factibilidade estratégica, será então o uso da razão estratégica,
subsumindo a ética material crítica e a moral formal crítica, junto com
uma razão analítica (teórica) e uma razão instrumental (técnica), que
dará o direcionamento preciso da práxis de libertação (ação crítica
estratégico-prática), com a devida subsunção desta razão estratégica
crítica na razão libertadora para que se realize o projeto libertador.
O primeiro passo da práxis de libertação se dá na organização das
frentes de libertação, tal que é a articulação do intelectual com o
sujeito histórico transformador, pois na ação transformadora é
necessário um suporte teórico, ou seja, a práxis de libertação não se
efetua sem uma teoria que lhe dê sustentação, é toda a questão da
articulação entre teoria e práxis como a própria estratégia do projeto
libertador.
Dussel cita Marx como um dos mais importantes intelectuais que
realizaram esta conexão teoria-práxis, pois Marx, na sua teoria crítica
da economia política, deu o suporte teórico que faltava para uma ação
transformadora revolucionária. Marx forneceu uma ciência social crítica
revolucionária que era, em um só tempo, o projeto de libertação
comunista e a desconstrução teórica do economicismo standard da
burguesia liberal (com arautos como Adam Smith e David Ricardo),
principalmente com o seu conceito inovador de mais-valia, que serviu
como a crítica fundamental da lógica do capital, era a explicação
histórico-econômica das causas da negatividade material das vítimas (no
caso, o proletariado).
Marx atuou tanto teoricamente como na práxis revolucionária, era
cientista e estrategista, não ficou encastelado num academicismo
livresco, pois entendeu que a transformação da realidade era muito mais
importante que a sua mera interpretação, seu objetivo era a
auto-emancipação do proletariado (classe social vítima do capitalismo
industrial burguês). Foi a partir de Marx que se definiu melhor o papel
de intervenção do intelectual na práxis de transformação histórica,
sendo a revolução, na visão dusseliana, o paroxismo da práxis de
libertação, pode ocorrer como tal, mas não é a revolução a única via
possível de uma práxis libertadora, em Dussel tal práxis se dá mais de
forma cotidiana, diariamente, a revolução seria uma situação-limite da
práxis de libertação.
O mais importante em Marx, contudo, é que, em sua concepção, o
proletariado é auto-responsável por sua libertação, ou seja, é a
comunidade de vítimas do sistema que deve se auto-libertar ante o
sistema, exigindo para tanto, clareza tática e precisão teórica para uma
luta estratégico-libertadora que queira ser bem sucedida, ou seja, é o
saber-fazer que exige planejamento prático com precisão científica, não
há tática revolucionária sem uma ciência revolucionária.
Dussel cita também a intelectual e militante polonesa Rosa Luxemburg na
sua exposição sobre a questão da organização das frentes de libertação
na práxis de libertação, a qual, segundo Dussel, demonstrou a mesma
coerência de Marx no tocante à articulação teoria-práxis, tão necessária
para a organização dos movimentos sociais libertadores das vítimas.
Sua concepção revolucionária manteve a necessária subsunção da
factibilidade crítica da práxis de libertação dos princípios
ético-material crítico e moral-formal crítico, Rosa Luxemburg não desfez
o vínculo necessário entre os princípios e a ação tática, pois os
princípios impunham limites estritos à atividade prática, pois são os
princípios que delimitam, no nível da organização estratégica, na
concepção de Rosa Luxemburg, os fins a alcançar, os meios de luta, e os
modos ou métodos de luta (os três níveis da razão
estratégico-instrumental), e isto para toda ação revolucionária (ou
transformadora) que quiser ter êxito, constituindo assim a razão
estratégico-crítica, que é estritamente ética, unindo então teoria e
práxis na libertação das vítimas, pois é somente com esta união de
teoria e práxis, segundo Dussel, que a organização das frentes de
libertação é possível e se torna factível.
Dussel também destaca a crítica de Rosa Luxemburg em relação ao
vanguardismo, sobretudo o leninista, pois Lênin, na visão de Rosa
Luxemburg, centralizou o poder de decisão do movimento libertador
comunista na organização ortodoxa do partido comunista com um comitê
central, o que se tornou o modelo ideal de organização no burocratismo
stalinista, e que, para Dussel, foi o motivo do fracasso da revolução
soviética. Tal organização centralizadora subestimou a capacidade de
auto-organização das massas, pois o vanguardismo leninista consistia
numa organização “de cima para baixo”, o que significava que a concepção
teórico-formal do movimento libertador pertencia aos intelectuais
vanguardistas (a vanguarda), que, deste modo, tinham nas massas
oprimidas a matéria a ser organizada por eles, eram os intelectuais
auto-conscientes que fixavam os fins e a própria organização das massas,
massas que eram as “realizadoras” do que era determinado pela
vanguarda. Quer dizer, tal modo de organização, para Rosa Luxemburg, era
um erro, o que ficou provado historicamente com a queda da URSS. Era
preciso que as massas se educassem para se auto-libertarem, sendo a
participação do cientista, perito ou militante, apenas como suporte da
ação popular, e não a ação popular como suporte da vanguarda
intelectual, inversão que levou a uma extrema disciplina
burocrático-partidária que atingiu seu ápice no stalinismo, o projeto de
libertação comunista idealizado por Marx se tornando instrumento de
cegueira ideológica e de subjugação das massas ao “projeto do partido”.
Emergência de novos sujeitos sócio-históricos
Dussel pergunta agora pelo sujeito da práxis de libertação, e afirma
que todo sujeito ético da vida cotidiana já é um sujeito possível da
práxis de libertação, seja ele vítima ou solidário com a vítima, sendo a
comunidade de vítimas o meio operacional privilegiado desta ética da
libertação.
Dussel, para definir o sujeito da práxis de libertação, faz primeiro
uma crítica do sujeito moderno submetido ao “paradigma da consciência”, e
expõe a sua superação na crítica heideggeriana, além de sua supressão
na filosofia analítica (na sua vertente do positivismo lógico), e o seu
reaparecimento de forma diferenciada em outras filosofias.
O sujeito moderno aparece pela primeira vez em Descartes. Era uma
subjetividade cognoscente representada pelo ego cogito, sujeito anímico
descorporalizado e reduzido a uma função estritamente cognitiva, era o
começo do “paradigma da consciência”. Depois temos o “sujeito
transcendental” kantiano, que reforça o dualismo moderno de separação da
alma e do corpo. Kant reduz a sua reflexão a um formalismo que perde
completamente o critério material do conteúdo ético dos atos humanos,
formalismo auto-referente da subjetividade que será mais radical ainda
no Eu absoluto de Fichte, subjetividade auto-consciente, autônoma, sem
corporalidade viva como referência. Hegel, por sua vez, afirma o saber
absoluto como a própria realidade negando o nível objetivo de uma
subjetividade corporal, razão e realidade são idênticas em Hegel,
identidade absoluta que perde o contato com a própria vida cotidiana.
Em Ser e tempo, Heidegger pressupõe o horizonte fundamental do Da-sein,
que é o ser-aí já pressuposto na própria atividade cognoscente do
sujeito, o ser-no-mundo. Tal concepção heideggeriana antecipa-se
ontologicamente ao pressuposto cognitivo da relação sujeito-objeto
moderna, é uma crítica ao sujeito moderno como ego cogito, pois antes da
atividade cognoscente o sujeito já está sempre no mundo empírico,
cotidiano e concreto, âmbito pré-cognitivo em que o sujeito deixa de ser
ego cogito e se torna ser-no-mundo, é toda a filosofia da “compreensão”
heideggeriana que supera a filosofia do ego cogito cartesiana, sujeito
corporal concreto que se antecipa ontologicamente à subjetividade
cognoscente ôntica.
A filosofia analítica, por sua vez, na sua vertente do positivismo
lógico, situava-se metodicamente no nível abstrato de inteligibilidade,
deixando de fora o sujeito, e considerando apenas as proposições em si
mesmas, não importando o sujeito concreto da enunciação, o que limitava
tal filosofia ao mero critério de inteligibilidade (se uma proposição
tem sentido ou não), jamais podendo incluir nela um critério de verdade,
pois perdeu o horizonte objetivo do sujeito concreto no reducionismo do
linguistic turn. Contudo, tal filosofia permanece, ainda assim, dentro
do “paradigma da consciência moderna” (pressupõe o sujeito consciente da
enunciação, mesmo que deixado de fora na abstração metódica do critério
de inteligibilidade de uma proposição) e, seguindo tal paradigma, é de
orientação solipsista (não-intersubjetiva). Tal supressão do sujeito
também ocorre na “teoria de sistemas” de Luhmann, em cujo sistema os
indivíduos fazem parte do “entorno”, sem qualquer poder funcional dentro
do sistema, o sistema luhmanniano é auto-referente, auto-regulado. Tal
supressão do sujeito na filosofia analítica do positivismo lógico, na
epistemologia popperiana e no sistema luhmanniano, se deve, sobretudo, à
concepção de que a razão instrumental (meio-fim) e a analítica
(sujeito-objeto teórico) são as únicas racionalidades que podem ter
validade empírica e universal. Também neste caminho epistemológico sem
sujeitos está a epistemologia teorética abstrata de Althusser, como
reação ao sujeito proletário metafísico stalinista, reinterpretação
marxista sem sujeito com influência do estruturalismo de Lévi-Strauss.
De outro lado, está a crítica foucaltiana contra a “soberania do
sujeito”, uma visão epistemológico-histórica que terá no último Foucalt a
afirmação do sujeito pulsional concreto na subjetivação dos lugares da
enunciação pela ação disciplinar. E Dussel cita também o pensamento
pós-moderno, que será uma crítica à “filosofia do sujeito” cartesiana,
num ressurgimento da “pluralidade” fragmentária da Diferença na
identidade.
Na pragmática, por sua vez, temos a recuperação do sujeito nos
“atos-de-fala” da comunidade de comunicação, é quando a filosofia da
linguagem supera a redução abstrata da filosofia analítica sem sujeito
(na sua vertente do positivismo lógico, do primeiro Wittgenstein). O
sujeito prático intersubjetivo supera o sujeito solipsista do “paradigma
da consciência”, passamos ao nível da intersubjetividade dos “jogos de
linguagem” do segundo Wittgenstein, sendo, para Dussel, a passagem
fundamental determinante para a sua ética da libertação.
Por fim, antes de situar o sujeito da ética da libertação, Dussel cita
ainda Lévinas e Freud. O primeiro indo aquém da ontologia heideggeriana
na corporalidade do prazer e além dela na Alteridade pela
responsabilidade pelo outro, e o segundo ampliando a subjetividade com a
conceituação do inconsciente, negando um sujeito totalmente
auto-consciente.
Dussel passa agora então ao sujeito humano concreto vivo como modo de
realidade, sujeito que subsume todas as etapas demonstradas
anteriormente pelos outros pensadores citados por Dussel, e que será o
sujeito de sua ética da libertação, indo de encontro às reduções
sistêmicas do cálculo meio-fim que tornam tal sujeito invisível,
reintroduzindo o referencial ético-material de vida-morte, tendo em
conta os sujeitos vivos que operam nos sistemas performativos como
“partes funcionais”, revelando aí o sujeito negado que se materializa na
vítima desses sistemas performativos, o Outro que o sistema, o oprimido
ou excluído, vítima não-intencional que mostra a irracionalidade da
lógica performativa sistêmica auto-referente e fetichizada,
subjetividade vitimizada que aparece como interpelação pela vida que lhe
é negada, interpelação que se não for respondida provoca a morte da
vítima. Dussel fala aqui de um sujeito histórico, social, cultural,
corpóreo. E afirma que o sujeito da práxis de libertação é a comunidade
das vítimas e aqueles co-responsavelmente articulados a ela, abrindo o
horizonte intersubjetivo do que afirma ser o “sujeito sócio-histórico”,
negando qualquer subjetividade metafísica, e afirmando uma subjetividade
intersubjetiva que é uma comunidade de vida e de comunicação que têm
características e objetivos comuns, sendo a emergência desses novos
sujeitos a passagem de uma subjetividade passiva para outra de maior
auto-consciência, a consciência ético-crítica da vítima como vítima que
efetua uma crítica auto-consciente do sistema que causa a vitimização,
tornando-se o sujeito sócio-histórico, desta maneira, uma subjetividade
libertadora.
A questão reforma-transformação
Dussel agora faz uma diferenciação entre a práxis funcional, de
reforma, e crítico-libertadora. Afirma que a tarefa da ética é mostrar e
normatizar a compatibilidade do sistema vigente com a produção,
reprodução e desenvolvimento da vida humana de cada sujeito ético com
direito à participação discursiva simétrica. Quando não ocorre tal
compatibilidade, a intervenção ético-crítica se faz necessária. É neste
contexto que Dussel compreende a relação entre reforma, revolução e
transformação.
O reformista quer reformar o sistema vigente a partir de dentro, a ação
reformista é aquela que cumpre com os critérios e princípios do sistema
vigente, é uma crítica feita dentro dos parâmetros do sistema. Mas,
contudo, o reformista não é o intelectual tradicional ou funcional do
sistema vigente, ele adota na sua aparente crítica os critérios do
sistema que pretende criticar, podemos ver isto no surgimento da
social-democracia alemã, capitalista em seu horizonte fundamental, e
socialista em suas formulações lingüísticas, o que Rosa Luxemburg
critica como deturpação do pensamento de Marx numa interpretação
funcional ao capital.
Entretanto, para a Ética da Libertação, discordando de Rosa Luxemburg, a
ação ética contrária à práxis funcional ou reformista não é
necessariamente a revolução, mas a transformação, o que está de acordo
com a orientação cotidiana da vida fornecida por esta ética crítica de
Dussel. “Transformar”, no processo estratégico e tático, é mudar uma
norma, ato, instituição, microestrutura ou sistema completo de
eticidade, sem ser necessariamente uma revolução, este “transformar”
dusseliano diz mais respeito às mudanças cotidianas do que às mudanças
radicais como as que ocorrem numa revolução, a revolução seria, como já
dito anteriormente, o paroxismo da práxis de libertação, mas não sua
característica usual.
O que está de acordo com a transformação dusseliana e com a sua práxis
de libertação é o fato do sujeito sócio-histórico organizado situar suas
estratégias, táticas e métodos dentro do quadro definido pelos
princípios ético-críticos (níveis ético-material crítico, moral-formal
crítico, e de factibilidade ético-crítica), tal é a libertação possível
para Dussel, o que não faz de tal transformação ético-crítica
não-revolucionária uma ação reformista, em absoluto, pois o reformista
critica de acordo com os critérios vigentes do sistema, ao passo que o
agente transformador age criativamente numa crítica desconstrutiva de
tais critérios, sugerindo novos critérios e princípios. A ação
ético-crítica ou libertadora tem sua referência na comunidade crítica
das vítimas, combatendo o fetichismo do sistema performativo da razão
instrumental materializado no sistema vigente (leia-se: capitalismo
globalizado ou transnacional) do progresso quantitativo e
transformando-o num progresso qualitativo que inclui todos os critérios e
princípios ético-críticos expostos por Dussel em sua Ética da
libertação, e que constituirá o processo histórico de libertação.
Coação legítima, violência e práxis de libertação
Dussel tenta distinguir a coação legítima da violência, ou melhor,
quando a coação perde legitimidade e se torna violência, fazendo isto
segundo as categorias analíticas de sua ética da libertação, de acordo
com o direito de todo sistema institucional de contar com os meios
jurídicos e instrumentais suficientes de coação pela ordem de tal
sistema, obedecendo, claro, a convenção discursiva dos afetados em
simetria (legitimação), que permita, por sua vez, reproduzir e
desenvolver a vida de cada sujeito ético no âmbito sistêmico. A
instituição vigente deve apoiar-se, enfim, numa coação legítima, o que
significa em Dussel que tenha factibilidade ética, objetividade pública
da instituição para além da mera aceitação subjetiva, a coação é
legítima quando cumpre com as exigências dos princípios material,
formal-discursivo e de factibilidade ética.
Dussel, de acordo com a sua posição sobre a coação legítima, discorda
de Max Weber, para quem a dominação é constitutiva da legitimidade do
sistema institucional, sendo para Dussel apenas o cumprimento de
princípios éticos. Dussel não denomina como violência o uso da força
pelo sistema institucional por meio de leis, tribunais, armas,
organismos policiais e lugares de reclusão, o problema é quando as
vítimas de um sistema formal vigente não podem viver ou foram excluídas
com violência e discursivamente de tal sistema, quando a coação legal
perde legitimidade, podendo se tornar simplesmente violência para a
consciência ético-comunitária das vítimas, quando se reproduz somente o
sistema em detrimento da vida humana, é quando as vítimas partem para a
coação defensivo-ilegal que é, contudo, legítima eticamente para as
vítimas, apesar de ilegal perante o sistema.
Dussel fala da arma que evoluiu para o século XX como algo capaz de
ameaçar a vida sobre o planeta Terra, a fetichização do que era antes um
meio para a vida humana, conseqüência da autonomização do sistema
auto-referente militarista com a tecnificação das armas, poderio militar
que desde a queda da URSS tem a hegemonia dos Estados Unidos, sendo
este o quadro no qual se poderá, no século XXI, refletir sobre a
libertação das vítimas no planeta Terra.
A doutrina da “não-violência” de Mahatma Gandhi, o método tático da
guerra sem armas de fundamentação ético-religiosa é, para Dussel, uma
tática política eficiente, mas só funcionaria num estado de direito, não
nas ditaduras e nas situações revolucionárias. A tática dusseliana
seria a de tornar evidente a contradição do sistema numa coação legal
que aparece como violência, é o começo da deslegitimação da coação
legal, de sua ruína moral, os movimentos sociais denunciam a dominação
do sistema vigente sobre as vítimas e reivindicam direitos emergentes
ainda não sancionados positivamente sob a forma de leis, legitimidade
crítica da ação das vítimas perante a legalidade coativa do sistema que
agora é violência contra as vítimas.
Para Max Weber, a legitimidade do sistema se funda na dominação, não
podendo, para Dussel, ter validade ético-normativa, Habermas, por sua
vez, apoiou a legitimidade na normatividade da ética discursiva, mas se
trata em Dussel, de legitimar o sistema segundo os princípios de uma
ética da libertação, já expostos nesta monografia. A crise de
legitimidade, em Dussel, é articulada com uma crise na reprodução da
vida (miséria das vítimas), sendo, para a Ética da Libertação,
necessário saber o momento em que a legitimidade do sistema vigente se
torna ilegítima.
Para Dussel a nova legitimidade deve ser libertadora e não dominadora,
para além dos três tipos de dominação weberiana (carismática,
burocrática ou tradicional), a comunidade de vida e comunicação crítica
das vítimas levanta-se contra o sistema estabelecido com outros
critérios de verdade, validade e factibilidade, críticos e
intersubjetivos, outros princípios normativos, a legitimidade nova da
práxis de libertação (legitimidade dos novos sujeitos sociais
emergentes) diante da legalidade do sistema, que já não é legítimo para
as vítimas. Temos então, atualmente, movimentos sociais que reivindicam a
inclusão das vítimas no processo econômico da revolução liberal
mundial, espaços dentro da globalização econômica que desenvolvam a
vida, o que se torna urgente diante da concentração de renda mundial, em
que os pobres morrem e não têm a sua dignidade reconhecida, e que
tampouco participam discursivamente do que é decidido no cenário
político, econômico e social mundial, onde também vemos o poderio
militar dos Estados Unidos com o messianismo “democrático-guerreiro” de
George W. Bush incapaz de combater o terrorismo e com prejuízos
financeiros decorrentes da invasão do Iraque. Temos agora, diante da
repressão legal ilegítima do sistema, pois se tornou violência, a
legitimação das reivindicações das vítimas nos movimentos sociais,
coação legítima que visa se tornar legal, práxis de libertação que busca
o fim de um sistema dominador para o começo de um sistema libertador,
em Dussel, a utopia possível de sua Ética da Libertação.
A ordem vigente, por sua vez, quando exerce o monopólio da coação de
forma legítima e legal, o público não se submete a uma decisão subjetiva
meramente individual, dominação que é o momento da “hegemonia”, como
diz Gramsci, quando o sistema estabelecido goza de boa aceitação por
parte dos dominados, e que, em Dussel, para se legitimar, deve cumprir
os princípios éticos material, formal e de factibilidade já citados
anteriormente, a legalidade agora é legítima.
No estado moderno europeu, temos, junto com o momento da “hegemonia” de Gramsci, o “estado governativo” baseado na soberania onipresente do rei absoluto, fundamento da legalidade, com a concepção política de centralização do poder, pretendendo uma certa homogeneização “nacional” de todos os membros, com o desaparecimento da esfera autônoma do privado e do mercado, nascendo assim o “totalitarismo” moderno. Ao contrário, no “estado de direito”, existem normas válidas intersubjetivamente a partir do consenso livremente aceito no princípio racional democrático, articulando mutuamente legalidade e legitimidade.
Para a Ética da Libertação de Dussel, a ordem legal (positiva), para
ser legítima, deve cumprir com a inclusão material e discursiva das
vítimas, pois a partir das vítimas podemos descobrir novos significados
para a coação de direito, sua legalidade e legitimidade, sendo a crítica
da contradição performativa do sistema os movimentos sociais das
vítimas que se organizam perante a ordem vigente, colocando em crise a
legitimidade do sistema, mesmo que as ações das vítimas contra o sistema
sejam ainda ilegais, pois suas ações ganham legitimidade para si
mesmas, e a violência do sistema instaura a crise em sua ordem legal
vigente, ilegítima para as vítimas. A práxis de libertação é legítima em
sua ação crítica diante do sistema, as ações ilegais de reivindicação
dos direitos das vítimas no sistema performativo se estabelecem como uma
práxis de libertação legítima para as vítimas.
Dussel tematiza agora a guerra como o extremo da ação tática em sua
factibilidade ética (momento da razão instrumental), assim como o
paroxismo da transformação estratégica era a revolução (momento da razão
estratégica), sendo tanto as guerras como as revoluções determinantes
para a fisionomia do século XX, como disse Hannah Arendt. Por fim, temos
o colapso da revolução soviética de 1917, se realizando enfim a
revolução liberal mundial. Se a coação-limite da transformação
estratégica é a revolução, agora Dussel trata a guerra como o extremo da
ação tática, sendo uma estrutura estratégica em que os exércitos se
enfrentam por causas diversas, podendo ser uma guerra de dominação
territorial ou uma guerra de defesa da soberania, sendo apenas a última
legítima para o âmbito da factibilidade ético-crítica, de ações táticas
que neguem a negação das vítimas.
Depois da revolução russa de 1905, Rosa Luxemburg levantou a questão da
greve geral e nacional de massas, uma decisão tática da práxis de
libertação que logo se tornará legal, inaugurando uma nova época para a
evolução do movimento operário, a greve é uma ação tática social, uma
ação sócio-sindical, dentro de uma estratégia política, um fenômeno
histórico para Luxemburg, que diz: “necessidade histórica determinada
pelas condições sociais”. Para Dussel, por sua vez, a greve deve estar
no âmbito da ação eticamente possível, quer dizer, as ações da greve
geral não são feitas apenas com a organização, mas deve estar a serviço
de um verdadeiro movimento popular, que, em Dussel, serve como “tarefa
educativa”, é a partir das ações das vítimas reivindicando direitos
diante do sistema que surge a conscientização das massas (as vítimas do
sistema performativo capitalista, no caso), a comunidade crítica das
vítimas toma consciência ético-crítica da legitimidade de sua práxis de
libertação.
A práxis de libertação como tática e estratégia, realização de uma
factibilidade ético-crítica, está sempre entre o anarquismo
antiinstitucionalista e o reformismo integracionista, devendo por isso
ter bem claros os critérios e princípios que a regem, para realizar a
utopia do possível, o projeto de libertação.
O critério ético de factibilidade e o “princípio-libertação”
A práxis de libertação, em Dussel, tem sempre como referência as
vítimas do sistema vigente, ação possível de transformação segundo os
critérios e princípios enunciados por Dussel na sua Ética da Libertação.
O critério de transformação ético-crítico, por sua vez, é um critério
de factibilidade em referência às possibilidades de libertação da vítima
ante o sistema dominante que aparece como contradição pela existência
desta vítima, e agora, de acordo com a factibilidade ético-crítica, a
transformação necessária pode ser visualizada como possível ou
impossível.
O critério crítico-factível de toda transformação se dá na confrontação
entre um movimento social organizado das vítimas e um sistema formal
dominante, estamos agora no âmbito de sua factibilidade empírica, as
possibilidades empíricas, tecnológicas, econômicas, políticas etc.,
considerando a negatividade da vítima no sistema vigente, critério que
consiste na avaliação da capacidade estratégico-instrumental da
comunidade das vítimas de transformação diante do poder do sistema
vigente, critério que vai além da mera factibilidade ética de poder ou
não efetuar o decidido, agora temos a confrontação direta com o sistema
vigente e não apenas a justiça ética de um movimento social libertador,
mas, contudo, para Dussel, a factibilidade empírica do que foi acordado
entre as vítimas cumpre com os princípios ético-material crítico e
moral-formal crítico para ser uma avaliação de factibilidade
ético-crítica.
Diante do poder histórico-concreto do sistema vigente, as vítimas
(sujeitos sócio-históricos emergentes) têm pouco poder, mas a práxis de
libertação pode explorar as fragilidades do sistema vigente em seu
momento de crise, é quando as vítimas se organizam e se tornam críticas
do sistema. Dussel, por sua vez, deixa claro a inevitável contradição de
todo sistema por ser histórico, isto é, surgem e desaparecem de acordo
com as transformações da sociedade, aqui se trata, sobretudo, da
imperfeição de todo sistema histórico e de sua finitude. Cabe então, à
ciência social crítica, nas palavras de Dussel, explicar a
impossibilidade essencial do sistema dominante de se perpetuar in the
long run, as causas da negação das vítimas, e estudar as possibilidades
de superação da crise do sistema e de sua transformação, tudo isso
dentro de um programa científico articulado com a intenção libertadora
das vítimas, sendo que a comunidade das vítimas deve calcular
instrumental e estrategicamente as possibilidades efetivas de
transformação, tendo ajuda da ciência social crítica (suporte teórico),
mas na ação (ou seja, como práxis de libertação), onde realmente se dá o
processo de libertação.
É importante lembrar que a práxis de libertação deve encontrar as
fissuras do sistema vigente, por onde poderá penetrar criticamente,
deixando evidente sua contradição absurda. Por outro lado, as vítimas
devem avaliar realisticamente (ou empiricamente) as possibilidades de
ação, pois dificilmente podem fazer frente ao sistema dominador, podendo
um movimento social aparecer e desaparecer visto a fraqueza inevitável
das vítimas, mas, para Dussel, a auto-avaliação das vítimas de sua
capacidade de ação, deve estar sob uma discursividade comunitária
crítica das vítimas num sistema democrático simétrico, de onde temos um
programa concreto de ação, sendo a comunidade das vítimas o sujeito
sócio-histórico da ação.
O princípio-libertação, por sua vez, é o princípio deontológico, ou
seja, enuncia o dever-ser que obriga eticamente a realização da
transformação do sistema vigente libertando a vítima de seu domínio, é
uma obrigação, por conseguinte, da razão libertadora (razão
ético-crítica prático-material, discursiva consensual e
estratégico-instrumental), que é cumprida pela comunidade das vítimas,
por sua capacidade de transformação do sistema vigente, capacidade da
razão estratégica e instrumental (factibilidade crítica da práxis), que
considera as condições técnicas, econômicas, políticas, culturais etc.,
para a transformação. O princípio-libertação trata do dever de todo ser
humano de intervir criativamente no progresso qualitativo da história,
obrigação da desconstrução negativa de normas, ações, microestruturas,
instituições ou sistemas completos de eticidade que produzem a
negatividade da vítima e, por conseguinte, da construção positiva de
novas normas, ações, microestruturas, instituições e sistemas completos
de eticidade que incluam as vítimas. O princípio-libertação é, antes de
tudo, a obrigação ética da vítima de se auto-libertar (obrigação da
práxis de libertação). Faz-se agora, em Dussel, a passagem de
fundamentação dialético-material de um juízo de fato para um juízo
normativo, passagem do critério de factibilidade crítica (possibilidade
real da libertação) ao princípio-libertação (dever de operar a práxis de
libertação), princípio que subsume todos os outros princípios de
Dussel, princípio que é uma obrigação universal, sendo mais comum à
vítima de um sistema dominador.
A libertação da vítima que o princípio-libertação torna uma obrigação
se dá através da desconstrução crítica da contradição sistêmica
(negatividade material e discursiva das vítimas) e a construção de novas
normas, ações, microestruturas, instituições e sistemas completos de
eticidade, onde as vítimas possam viver e ter participação discursiva
simétrica. A práxis de libertação, por fim, procura transformar o
sistema a partir das vítimas para que estas vivam, e não porque sejam as
instituições intrinsecamente perversas (como para o anarquismo) ou
sistematicamente justificadas (como para o conservadorismo ou o
reformismo).
A Ética da Libertação reconhece concreta e positivamente o sujeito
ético vivente e comunitário, sobretudo quando este irrompe como as
vítimas de um sistema auto-referente que as nega (material e
formalmente), reconhecimento histórico e social da diversidade
intersubjetiva de comunidades sócio-históricas, especialmente das
vítimas, diversidade que inclui a universalidade da razão material e
discursiva, diversidade de rostos que são articulados “transversalmente”
em sua natureza alterativa, o que, em Dussel, se trata do momento
analético do método dialético, que parte da possibilidade distinta da
Alteridade, para encontrar a universalidade na profundidade da
diversidade, pois, em Dussel, em cada vítima concreta está a vítima
universal. A razão ético-material, discursivo-formal e
estratégico-instrumental são articuladas pela razão “transversal” a
todas as alteridades distintas, particulares, se chegando ao “êxito”
pelo exercício da razão estratégico-instrumental ético-crítica em que o
“bem” é realizado, operação factível real da práxis de libertação como
atualidade transformativa final, realização do “devido” (projeto
explícito de libertação), do novum, o bem ético por excelência.
Contudo, a norma boa não é ainda o bem, a ação boa realiza a norma boa,
sendo tal ação a atualidade do bem, mas não o bem propriamente. As
instituições, por sua vez, também não são o bem, nem o sistema de
eticidade, o bem é, por fim, um momento do próprio sujeito humano, com
validade intersubjetiva e monológica. O “bem” supremo seria a plena
reprodução e desenvolvimento da vida humana das vítimas, se trata de uma
idéia regulativa em Dussel que se realiza parcialmente em cada ato
humano julgado como bom. Mas o bem realizável pelo processo de
libertação não é um bem absoluto, mas um bem histórico, a sociedade
perfeita é empiricamente impossível. O bem fruto da práxis de
libertação, por sua vez, é o êxito de uma empresa difícil à qual se
opõem as forças superiores das estruturas do sistema dominador como o
bem vigente e tradicional, o novo bem das vítimas que é obra, para
Dussel, das quatro virtudes cardeais levadas ao paroxismo: fortaleza,
temperança, prudência e justiça.
A Ética da Libertação de Dussel é uma ética da responsabilidade a
priori pelo outro, mas também da responsabilidade a posteriori dos
efeitos não intencionais das estruturas dos sistemas que se manifestam
às vítimas, ética da responsabilidade que vai além de uma mera boa
vontade, é uma responsabilidade que se configura como obrigação, não
sendo apenas sistêmica ou ontológica, mas também pré-ontológica e
transontológica, porque o é a partir do Outro, a partir das vítimas.
Dussel fornece, em sua obra Ética da Libertação, os critérios e
princípios para fazer ações (a priori) e poder julgá-las como “boas” ou
“más” de acordo com as vítimas, se tais ações favorecem ou não a
libertação das vítimas, na tarefa do progresso qualitativo humano, na
reprodução da vida e da discursividade participativa dessas vítimas. A
responsabilidade pelo outro se transforma na “própria racionalidade da
razão”, torna-se necessário um processo de libertação das vítimas.
Por fim, a Ética da Libertação dusseliana tenta justificar
filosoficamente a práxis de libertação das vítimas em nossa época da
História, a da globalização, em que o fetichismo do capital exclui a
maioria de seus benefícios, revelando a contradição performática do
capitalismo mundial, se erguendo então um princípio universal
completamente negado pelo sistema vigente que se globaliza: o dever da
produção e reprodução da vida de cada sujeito humano. Dussel constrói a
sua ética sobre juízos de fato e não de valor, e o fato a que ele se
refere é a exclusão da maioria da humanidade do processo da modernidade e
do capitalismo, é a partir deste fato que surge a obrigação ética das
vítimas de se auto-libertarem.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
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