Fruto de uma pesquisa poética aprofundada, de amplos matizes, Ana C.
transitou pelo cenário da literatura brasileira nos idos das décadas de
1970 e 1980. Numa experiência radical que expressa uma cadência de
conversa, num toque preciso em harmonia com o modernismo, mas se
colocando, junto com seus companheiros da poesia marginal, num contato
com a linguagem pop, e sendo uma voz original que ia até mesmo além do
programa previsto dos poetas marginais de sua geração.
Ana C. é o feminino em poesia, sua sedução se dá com um ritmo próprio,
nada devendo aos grandes nomes, pois ela agora com a edição de Poética,
antologia de sua obra, ela também se revela grande, e mais, tem uma
profundidade só dela. Ana C. é o que se pode dizer em poesia como uma
poeta que conquistou seu próprio território. Raramente se vê em seus
escritos ecos oriundos de outros lugares, o que a coloca num passe de
magia de criar sua poesia toda nova, e que tem poemas acabados,
inacabados, numa linguagem fraturada também por fragmentos esparsos de
uma produção interrompida pelo suicídio, restando, graças à poesia, um
tempo em que seus escritos podem ser suficientes, sem bem perguntar o
que seria de sua vida se ela fosse mais longa em relação à poesia que
dela ficou como registro.
Desta vez coloco um poema que me empolgou quando li Ana C., a 33ª
poética, que é aonde encontro toda a sua originalidade, a palavra
original que então eu insisto com convicção ao falar de Ana C. e de sua
poesia, sim, esta poeta é bastante original, foi positivamente ganhando
um tom próprio em relação até mesmo com a sua geração de poetas
marginais, e este poema que faço o registro logo abaixo é sua vontade
(de Ana C.) de se estabelecer em seu tempo próprio, numa recusa dos
signos poéticos elevados, numa luta de se ver poesia nos maxilares, das
multidões desejantes, diluvianas, e que sai da metalinguagem, sendo que
Ana C. está farta, e denuncia o clichê nem sempre bom do “traço
infinito”. A poética de Ana C. transita desenvolta em um mundo novo que
se registra como poemas que vão num caminho não traçado, saindo do supersigno
viciado de uma metáfora estudada para uma linguagem que desliza em
terreno totalmente novo, o caminho da poesia de Ana C., que é ela mesma,
com todas as suas letras no lugar em que ela bem quis por, com a
verdade de objetos rotundos e contundentes.
33ª POÉTICA
estou farto da materialidade embrulhada do signo
da metalinguagem narcísica dos poetas
do texto de espelho em punho revirando os óculos
modernos
estou farta dessa falta enxuta
dessa ausência de objetos rotundos e contundentes
do conluio entre cifras e cifrantes
da feminil hora quieta da palavra
da lista (política raquítica sifilítica) de supersignos cabais: “duro
ofício”, “espaço em branco”, “vocábulo delirante”, “traço
[infinito”
quero antes
a página atravancada de abajures
o zoológico inteiro caindo pelas tabelas
a sedução os maxilares
o plágio atroz
ratas devorando ninhadas úmidas
multidões mostrando as dentinas
multidões desejantes
diluvianas
bandos ilícitos fartos excessivos pesados e bastardos
a pecar e por cima
os cortinados do pudor
vedando tudo
com goma
de mascar.
Outubro.1975 (Ana C.)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/25740/17/ana-cristina-cesar-e-sua-poesia-original-parte-i
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