E.M. Cioran nasceu na Romênia em 1911. Filósofo e escritor, suas primeiras publicações foram feitas em romeno, mas conheceu o sucesso de fato quando se radicou na França e passou a publicar obras em francês. Uma de suas obras mais emblemáticas, e que reflete muito bem os caminhos de seu pensamento filosófico, é o incrível livro Breviário de Decomposição, que, como o título indica, é um manifesto niilista e trágico sobre a vida, a cultura, a filosofia, dentre outras coisas que envolvem a vida humana, e que, para Cioran, são fenômenos que circulam num nada em que convicções passeiam pela História com uma fatalidade que pode ser chamada de o sem-sentido.
Com o tema recorrente da solidão, e seu fundo de tédio, como vias precípuas de toda falta de sentido da existência, Cioran faz da ausência de fundamentos de todo pensamento, e sobretudo, das tentativas filosóficas de abarcar algum sentido essencial para a nossa experiência de vida humana, ou para o universo como um todo, seu ponto essencial de ceticismo, que culmina no que posso chamar de uma filosofia desilusória ou de combate de ilusões, de negação de verdades, de recusa existencial da certeza, pondo o Homem e o universo nus em sua total solidão e desespero inescapáveis.
Uma atitude antimetafísica perpassa todo o roteiro de reflexão convulsionada do Breviário de Decomposição. A posição crítica emula um pensamento autodestruidor que glorifica o suicídio e se enfatua de toda santidade, remexe na fisiologia e grita contra a metafísica como alucinação das ideias, pois o mundo em sua nudez não tem qualquer serventia, ele flutua impassível apesar de toda metafísica, e ignora toda pretensão de salvação em que o instinto é julgado sob a capa de uma pureza inexistente, uma vez que todo ideal é destruído pela evidência do fracasso da empresa existencial humana.
O mundo é decomposição, o mundo é fisiologia desesperada, o mundo é caos, toda religião e todo mistério são vestes de um mundo ideal que é refutado pela experiência direta e cotidiana que é espasmo e não luz celestial, que é sangue, mais que espírito, onde toda vida contemplativa cai em sua nulidade e fracassa em seu êxtase e desfalecimento. A santidade, em Cioran, é inutilidade, a metafísica, em Cioran, é artifício, a nudez existencial não necessita de atalhos, a circularidade do viver engendra sua petição de princípio, todo sentido é criado, todo valor é produzido, mas toda esta criação e produção sucumbem num universo hostil e inacabado, só os poetas sobrevivem como caos contínuo e não sucumbem como os santos e com os que não têm talento.
Mas, para que tudo não caia num ceticismo do suicídio, temos que retornar ao sentido. Cioran se perde em sua nulidade do fracasso, o que resta é superá-lo com a valoração da força da vida, não há desespero total e fatalidade extrema na qual se afogar, só sucumbe a fraqueza. O sentido existencial, mesmo que seja uma construção precária e contraditória, não é uma ilusão fracassada, o poder valorativo e o poder das ideias, em suas lutas pela sobrevida, são mais relevantes do que uma diatribe da morte por falta de ânimo. A recusa da alma em Cioran envenena, o antídoto para o desespero do ceticismo embrutecido é o senso de justiça, que é a ideia precária, porém fundante, de um pensamento sadio. A doença cínica ou o ascetismo solitário de Cioran naufragam em sua autofagia fisiológica, o corpo quer viver, pondo em si uma ideia de alma, se anima e luta, o suicida passa a léguas da experiência da lucidez viva que se expande, apesar da insensatez da História.
A lição positiva de Cioran: não crer em dogmas, não se tornar um metafísico puro, não crer na santidade, não se moldar por ideais, refutar valores do senso comum, ser poeta e artista para se salvar dos salvadores do mundo, saber que o mundo é uma fúria indômita em que a espada do êxito só vigora após retumbantes fracassos. O que não crer em Cioran: a sua farsa do suicídio, a sua negação abissal dos valores, a infrutífera canção de desespero de todo ceticismo que se anula e se corrói por dentro numa tenacidade da insanidade, saber que a vida é sim valoração, mesmo que numa ausência completa de Absoluto.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário:
http://www.seculodiario.com.br/exibir.php?id=8302&secao=14
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