"Deixe o crack de lado, escute o meu recado." (Racionais MCs)
A questão sobre a internação compulsória ou involuntária de dependentes de drogas e, no caso específico, de crack, é bem polêmica. Cabe aqui, primeiramente, fazer a distinção entre internações compulsórias e involuntárias. A internação compulsória é feita após decisão judicial, e a internação involuntária não depende de decisão da Justiça, apenas de uma decisão médica. O que ocorre então, com o fenômeno do crack, são tanto a internação compulsória quanto a involuntária, o que podemos ver nas inserções de agentes do Estado via assistência social nas chamadas “cracolândias”. Mesmo com a confusão entre os dois conceitos de internação, a questão de fundo é a mesma, se é justificável internar alguém contra a sua vontade, que é o que se vê nos casos de surto psicótico. Mas fica a pergunta: a doença mental de um psicótico caberia também na definição de doença mental para um dependente crônico de drogas? Trata-se de uma mesma solução e método tanto para o psicótico como para o dependente, neste caso o dependente de crack?
Bom, o problema do crack, além de ser de ordem psiquiátrica, virou um flagelo social, para além da questão policial envolvendo os que vendem a droga, trata-se da velha questão da ordem pública. A sociedade brasileira está às voltas com questões que envolvem dilemas éticos, métodos médicos e ações policiais. Nesse ínterim, a cidade do Rio de Janeiro receberá R$ 240 milhões do governo federal para o combate ao uso do crack. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, assinou o programa “Crack, é possível vencer”, também no Rio, onde defende a internação involuntária de viciados, incluindo, além das crianças e adolescentes, também os adultos. E o prefeito do Rio, Eduardo Paes, também defende o recolhimento involuntário de adultos. E, para reforçar o trabalho da Secretaria Municipal de Assistência Social, que já existe na capital fluminense, serão criados no município seis novos CAPS-AD (Centros de Atenção Psicossocial) para atendimento 24 horas.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que não há atualmente um número suficiente de profissionais capacitados para atender dependentes de crack no País. De acordo com Cardozo, o Ministério da Justiça vai criar unidades com cursos de capacitação de profissionais para o enfrentamento ao crack. Por sua vez, os ativistas de direitos humanos sustentam que a internação involuntária ou compulsória fere cláusula pétrea, o direito à liberdade do cidadão, consagrado no artigo 5°, da Constituição Federal. Além do mais, alguns médicos sustentam que internar uma pessoa contra a sua vontade caracterizaria crime, denominado como cárcere privado. Entretanto, o princípio constitucional que deve ser protegido pelo Estado, segundo alguns juristas, é o direito à vida, a mais importante das cláusulas pétreas, vida que, numa dependência crônica de drogas ou do crack, no caso, está em risco. E, seguindo tal argumento a favor da internação contra a vontade de viciados em crack, tem ainda no ordenamento jurídico brasileiro o Decreto-Lei 891, de 25 de Novembro de 1938, em plena vigência, que regulamenta a internação obrigatória de dependentes químicos (quando necessária ou conveniente à ordem pública).
Mas a lei principal que regulamenta a questão mesmo, e que trata de doença mental, e aí vem a questão de se o dependente de drogas é ou não um doente mental tal como o psicótico, da Lei n°10.216, de 6 de Abril de 2001. A lei trata de doentes psiquiátricos, não se refere diretamente ao problema dos viciados em drogas, e estabelece os parâmetros da internação involuntária de doentes mentais, ou o que vulgarmente se chama de loucura. No caso dos drogados, que não são em si psicóticos ou loucos, mas doentes da mesma maneira, a eficácia do tratamento iniciado com uma internação obrigatória é questionada por muitos especialistas, defensores de uma abordagem baseada no convencimento e no apoio familiar. Uma alternativa à internação à força vem sendo empreendida em cidades como Porto Alegre, Salvador e Recife, onde consultórios montados na rua se colocam como um novo tipo de abordagem sem o uso da força. Porém, a ação da prefeitura do Rio tem a vantagem de seguir parâmetros da saúde e da ação social e não da captura policial, como ocorre em São Paulo. Contudo, o grande problema é que o que deveria ser exceção, isto é, a internação involuntária como caso extremo, virou regra, o que acaba descaracterizando a política verdadeira deste tipo de abordagem, que é de ser indicada apenas para alguns casos. E, temos outro problema, as soluções de consultórios na rua não servem para megalópoles como Rio e São Paulo, uma vez que o problema em ambas é mais complexo, pois o número de crianças e adolescentes viciados é muito maior.
Mas, o que vem à cabeça, no entanto, com todas as boas intenções de que, todos sabem, o inferno está cheio, parece que se está “enxugando gelo”. Estudos feitos sobre a eficácia da internação compulsória afirmam que há até 77% de sucesso dos casos, superior ao constatado nas internações voluntárias. Entretanto, o desempenho do Rio, por exemplo, está baixo, pois não chega nem à metade do índice. De outro lado, argumentos contrários a esta política de internações contra a vontade, afirmam que estas não são eficazes, que a vontade do usuário de se tratar é importante para a cura, de que cidadãos brasileiros estão sendo suprimidos de seus direitos, de que há um regime de exceção justificado pela guerra contra as drogas. Além de tudo, dados dizem que as taxas de internação à força não têm praticamente nenhum resultado no que se propõe, pois 98 % das pessoas recaem nas drogas depois que termina o período de internação.
Acho que, para além de polícia e assistentes sociais, deve se discutir a questão ética de fundo que envolve tudo isso, está certo que existem decretos, leis, cláusulas pétreas, mas o ordenamento jurídico muitas vezes não dá conta da complexidade do fenômeno humano e do problema existencial que envolve o uso e o vício em drogas. E um dos argumentos possíveis para o combate ao crack é que há o álcool, legalizado, bem aceito e difundido socialmente e pela publicidade massiva das cervejarias. Quantos alcoólatras não são viciados tão crônicos quanto os que estão em estágio avançado no crack? Fica a pergunta. A ética diz que a contenção só se dá na vida em sociedade se há ameaça da vida de si mesmo ou de outros, esta é a única fronteira, e decidir qual é o momento de conversar ou de conter é que é o problema todo. Não existe solução simples para problemas complexos, nem na nossa vã filosofia e nem no ordenamento jurídico falho como toda obra humana.
25/04/2012 Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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