PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

A POETA WISLAWA SZYMBORSKA E SUA FORMA POÉTICA

“O eu lírico de Szymborska também marca aqui a sua identidade como ente feminino”

A poesia de Wislawa Szymborska tem um caráter filosófico que suspende a certeza sobre a realidade e a coloca em questionamento, a parte reflexiva de sua poesia pode facilmente se associar ao conhecimento filosófico nesta sua forma de abordar a vida e o pensamento que produz em seu fazer poético este choque para renovar a perspectiva que temos da realidade como um todo.

No confronto com o acaso, o eu lírico em Szymborska se coloca neste fazer que também é evolutivo, a qualidade do pensar que se condensa em sua atividade poética. Um saber especulativo que desestabiliza estruturas viciadas é o papel do filosofar e aqui este tipo de inflexão é feito com a composição poética que Szymborska pratica.

Szymborska também insere temas insólitos ou incomuns em sua poesia e que não são usuais na poesia como um todo, tais como abordagens sobre as ciências naturais, e temas que têm origem na biologia. Ainda temos temas mais tradicionais à poesia como a História e a mitologia, e aqui em Szymborska temos temas bíblicos e da Antiguidade clássica.

O conhecimento sobre o mundo, indo agora além da pura metafísica especulativa, enriquece a poesia de Szymborska que, nesta sua inflexão reflexiva, se serve dos fatos do mundo para produzir o seu próprio pensamento condensado na forma poética, nesta brevidade que a poesia se faz e que consegue numa operação metafórica reunir toda uma amálgama e nesta forma acabada e breve da poesia dizer muito com pouco.

O estranhamento que se produz com a reflexão filosófica se torna um instrumento a serviço da produção poética de Szymborska. E como o manejo da linguagem também é o recurso da poesia, ou melhor, o seu recurso central, todo este trabalho coloca a linguagem fora de sua forma convencional. O eu lírico, por possuir este dom de manejo, consegue sair da convenção linguística e com isso produzir material novo e inédito para o mundo.

O eu lírico de Szymborska também marca aqui a sua identidade como ente feminino, a enunciação poética deixa clara a sua procedência feminina, neste caráter que define este feminino em seu lugar que difere em muitos tons de uma poesia masculina, e isto naturalmente, também pelo imperativo biológico e histórico, a não ser quando falamos de transições de gênero, o que não é o caso aqui. Portanto, em Szymborska também teremos a temática do feminino.

As marcas de gênero na poesia de Szymborska atuam no plano gramatical, em que temos isto em adjetivos e também na conjugação verbal, que no caso das línguas eslavas temos alguns verbos que possuem gênero, e os poemas também se referem a gêneros no plano semântico, tanto no poema “Museu”, que se refere a objetos, como na identificação do eu lírico a personagens femininas, como temos nos poemas “A mulher de Lot” e “Vietnã”. Não há aqui um eu lírico como sujeito transcendental e anônimo de enunciação, pois temos a presença da individualidade, de uma voz individual e que se define pelo feminino.

A poesia de Szymborska, por sua vez, não entra diretamente em temas políticos específicos, mas está envolvida nas transformações que ocorreram na Polônia, tanto na ocupação nazista como na ascensão comunista no país. O caráter temático mais universal de sua poesia, no entanto, pode ser palatável para diferentes culturas, tornando a sua poesia cambiável e de fácil adesão.

POEMAS :

UM GRANDE NÚMERO, 1976

AGRADECIMENTO : Este poema mistura a ironia a uma espécie de visão desassombrada sobre o amor e a liberdade de ter na autonomia sentimental um tipo de trunfo em relação à vida, no que temos : “Devo muito/aos que não amo.” (...) “O alívio de aceitar/que sejam mais próximos de outrem.” (...) “A alegria de não ser eu/o lobo de suas ovelhas.”. A poeta anda com os que ela não ama para desfrutar desta liberdade original de não-pertencimento, como uma nômade sem porto, no que vem : “A paz que tenho com eles/e a liberdade com eles,/isso o amor não pode dar/nem consegue tirar.”. Ela não sente a ansiedade apaixonada, seu coração não palpita, ela tem uma alegria insuperável de quem comanda a própria vida, tem o leme de seu destino, e tem um coração que voa sem ficar na espera desesperada, no que temos : “Não espero por eles/andando da janela à porta.”. Com os que ela anda, ela tem o sucesso de sua independência, ela vislumbra uma paisagem clara, e temos : “As viagens com eles são sempre um sucesso,/os concertos assistidos,/as catedrais visitadas,/as paisagens claras.”. Sua conclusão existencial é seu espaço sem lírica e sem retórica, no que temos : “E quando nos separam/sete colinas e rios/são colinas e rios/bem conhecidos dos mapas.” (...) “É mérito deles/eu viver em três dimensões,/num espaço sem lírica e sem retórica,/com um horizonte real porque imóvel.”. Ninguém se importa por aqui, todos seguem o seu caminho, nas escolhas de seus corações, e o amor aqui tem um sabor livre e que não se afunda : “Eles próprios não veem/quanto carregam nas mãos vazias.” (...) “Não lhes devo nada -/diria o amor/sobre essa questão aberta.”

A MULHER DE LOT : Aqui temos o tema de Gênesis, na Bíblia, da queda de Sodoma, em que a mulher de Lot dá uma última olhada para a cidade em sua fuga e vira uma estátua de sal, no que temos : “Dizem que olhei para trás de curiosa./Mas quem sabe eu também tinha outras razões./Olhei para trás de pena pela tigela de prata./Por distração – amarrando a tira da sandália./Para não olhar mais para a nuca vitoriosa/do meu marido Lot./Pela súbita certeza de que se eu morresse/ele nem diminuiria o passo./Pela desobediência dos mansos./Alerta à perseguição./Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.” A mulher de Lot elenca os seus motivos, a poeta Szymborska pontua a partir daí uma sugestão de reflexão, e lógico que isto está associado à ruína da mulher de Lot, em sua decisão desastrosa, no que temos : “Olhei para trás por receio de onde pisar./No meu caminho surgiram serpentes,/aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.” As consequências logo vêm, e são inevitáveis, no que temos : “Olhei para trás de solidão./De vergonha de fugir às escondidas./De vontade de gritar, de voltar./Ou foi só quando um vento bateu,/despenteou meu cabelo e levantou meu vestido./Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma/e caíam na risada, uma vez, outra vez./Olhei para trás de raiva./Para me saciar de sua enorme ruína.” A descrição da ruína de Sodoma aqui se mistura à ruína interior da mulher de Lot, tudo vindo como consequência de escolhas ruins, no que temos : “Eu continuava correndo,/me arrastava e levantava,/enquanto a escuridão não caiu do céu/e com ela o cascalho ardente e as aves mortas./Sem poder respirar, rodopiei várias vezes./Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava./É concebível que meus olhos estivessem abertos./É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.”

O TERRORISTA, ELE OBSERVA : A observação tétrica do terrorista aqui se ri do acaso e da tragédia, enumerando de forma cruel a relação entre o tempo cronológico e a morte, no que temos : “A bomba vai explodir no bar às treze e vinte./Agora são só treze e dezesseis./Alguns ainda terão tempo de entrar;/alguns de sair.” A poeta Szymborska acompanha este olhar do terrorista diante de sua obra de morte, no que segue : “O terrorista já passou para o outro lado da rua./A distância o livra de todo mal/e a vista, bom, é como no cinema:” (...) “Uma mulher de jaqueta amarela, ela entra./Um homem de óculos escuros, ele sai./Uns jovens de jeans, eles conversam.” Toda uma rotina normal que estava prestes a levar um choque, no que vem : “Treze e dezenove./Parece que ninguém mais entra./Aliás, um gordo careca sai./Mas remexe os bolsos como se procurasse algo/e às treze e vinte menos dez segundos/ele volta para buscar a droga das luvas.” E a explosão : “São treze e vinte./O tempo, como ele se arrasta./Deve ser agora./Ainda não./É agora./A bomba, ela explode.”

RETRATO DE MULHER : A poeta enumera aqui os predicados do feminino e a relação de expectativas com uma mistura de humor e ironia, no que temos : “Deve ser para todos os gostos./Mudar só para que nada mude.” (...) “Dá-lhe quatro filhos, nenhum filho, um./Ingênua, mas a que melhor aconselha./Fraca, mas aguenta./Não tem cabeça, pois vai tê-la./Lê Jaspers e revistas de mulher.” E a descrição se torna plena, risonha, e segue : “Jovem, como sempre jovem, ainda jovem./Segura nas mãos um pardalzinho de asa partida/seu próprio dinheiro para uma viagem longa e longínqua”. E temos o amor que também aqui se pretende pleno : “Corre para onde, não está cansada./Claro que não, só um pouco, muito, não importa./Ou ela o ama ou é teimosa./Para o bem, para o mal e para o que der e vier.”

O QUARTO DO SUICIDA : A descrição aqui nos dá um retrato de um suicida não como inserido num cenário paupérrimo ou desolador, podemos ver aqui uma riqueza de referências, e como isto ainda foi insuficiente e não poupou este desastre do suicídio, no que temos : “Vocês devem achar que o quarto estava vazio./Pois havia ali três cadeiras de encosto firme./Uma boa lâmpada contra a escuridão./Uma mesinha, e sobre a mesinha uma carteira, jornais./Um Buda alegre, um Jesus aflito.” A poeta segue em sua descrição e nos sugere uma visão do suicídio fora da chave habitual de um desespero óbvio em que o desamparo é evidente, aqui podemos ver que o suicídio ocorre em todos os cenários possíveis, a sua falta vem de lugares inauditos, imprevisíveis, no que temos : “Acham que faltavam livros, quadros ou discos?/Pois lá estava o trompete consolador nas mãos negras.” E tão terrível, que é um suicídio silencioso, sem carta : “Na estante Ulisses num sono reparador/depois dos esforços do Canto Cinco./Os moralistas,/seus nomes inscritos em letras douradas/nas lindas lombadas de couro./Ao lado, também os políticos perfilados.” (...) “Devem achar ao menos que a carta explicasse algo./E se eu lhes disser que não havia carta -/éramos tantos os amigos e coubemos todos/no envelope vazio apoiado no lado do copo.”

VIDA NA HORA : A vida aqui é tomada por si mesma, sem inflexão conceitual e, sobretudo, sem metafísica, em sua lida direta, objetiva, tal como vem, segue a poeta : “A vida na hora./Cena sem ensaio./Corpo sem medida./Cabeça sem reflexão.” (...) “Não sei o papel que desempenho./Só sei é meu, impermutável.” A astúcia vem deste poder de decisão rápida, consequente, e segue :  “De que trata a peça/devo adivinhar já em cena.” E o ritmo vertiginoso em que o acontecimento joga entre o plano e o inaudito revela a resiliência e toda a responsabilidade das escolhas, no que segue : “Despreparada para a honra de viver,/mal posso manter o ritmo que a peça impõe./Improviso embora me repugne a improvisação./Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas./Meu jeito de ser cheira a província./Meus instintos são amadorismo.” A poeta revela também as suas falhas e eventuais amadorismos, atuando com dicção provinciana, por vezes, diante de desvãos sofisticados, no que segue : “Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes/ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!/Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.” Ela pensa em como refazer, mas só poderá recomeçar : “O palco giratório já opera há muito tempo./Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas./Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia./E o que quer que eu faça,/vai se transformar para sempre naquilo que fiz.” E a fúria irreversível do fato, do feito, para o bem e para o mal, neste palco deslizante da vida.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/a-poeta-wislawa-szymborska-e-sua-forma-poetica 

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