PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 14 de março de 2021

O LIVRO SEXTO DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

“Com ampla temática, “Livro Sexto” tem uma dimensão formal bem desenvolvida”

O chamado “Livro Sexto” da poeta reforça este caráter descentrado, uma vez que “O Cristo Cigano” tem uma posição não-oficial na obra de Sophia, não é exatamente o sexto livro que Sophia considera na sua obra. Tal livro foi excluído da edição de “Obra poética”, de 1991, que reuniu todos os livros de Sophia.

Sophia coloca “O Cristo Cigano” numa ideia paradoxal do sagrado e sua manifestação na arte partir de uma assassinato por um escultor obcecado, a lenda aqui tenta, aparentemente, legitimar a ignomínia para a realização de um bem maior, uma obra de arte.

A poesia de Sophia, por sua vez, possui um ambiente em que a mitologia grega se projeta, criando um tipo de sentimento pagão, o mundo antigo, com seus mitos e sua geografia, ganha corpo em sua poesia.

A poesia de Sophia também é uma poesia que afirma e canta a natureza, e também avança para temas cristãos, a religiosidade aqui é um sentimento de pertencimento e não um artifício, contudo, o expurgo de “O Cristo Cigano” de sua obra oficial tem uma justificativa tíbia de motivação estritamente literária.

A construção poética de eixo cabralino que aparece em “O Cristo Cigano” é desenvolvida mais ainda para a confecção de “Livro Sexto”, e a dicção de Sophia vai se apropriando desta poética de João Cabral de Melo Neto, e o despojamento que daí advém reflete no título do livro, algo objetivo e dado, um estágio numérico da obra que estava sendo realizada pela poeta Sophia.

“Livro Sexto” intensifica, desde esta sua titulação pragmática, o eixo moderno e contemporâneo da poesia de Sophia, colocando a dicção clássica da poeta num diálogo frutífero com uma voz moderna e com a fluência contemporânea.

O título impessoal e frio de “Livro Sexto” reflete, portanto, um vocabulário espesso historicamente, e tem a riqueza simbólica reafirmada numa poética que, agora, abre um campo fértil de fluência contemporânea, com este fundo de dicção clássica que é o tom dominante do que se pode falar da poesia de Sophia.

Com ampla temática, “Livro Sexto” tem uma dimensão formal bem desenvolvida, e apresenta temas que podem contrastar entre si, a dinâmica temática do livro sempre avança e amplia seu escopo, sua abertura coloca visões e contrastes em atividade, com tempos históricos ou suspensos convivendo no mesmo livro, com regiões luminosas e de sombras se alternando nesta dinâmica da amplitude.

 

DE LIVRO SEXTO

BARCOS : O poema levanta a dimensão de nomes mortos que são renomeados, a sensação de ressurreição perpassa esta passagem destes barcos no poema : “Um por um para o mar passam os barcos/Passam em frente de promontórios e terraços/Cortando as águas lisas como um chão” (...) “E todos os deuses são de novo nomeados/Para além das ruínas dos seus templos”. De toda a ruína que ali havia, esta passagem dos barcos reaviva a memória destes templos, esta memória viva retoma o seu pertencimento, seu estatuto existencial e histórico.

MUSA : O poema evoca e invoca a musa que tem do canto antigo um ensinamento, no que temos : “Musa ensina-me o canto/Venerável e antigo/O canto para todos/Por todos entendido”. Este canto que deve ser do entendimento de todos, objeto de uma consciência comum e coletiva, no que segue : “Musa ensina-me o canto/Em que eu mesma regresso/Sem demora e sem pressa/Tornada planta ou pedra”. E a mutação em casa primitiva logo é feita, a poeta então, mais uma vez, se volta ao mar, sua dominância e culminância temática, o eixo principal de sua poética, no que temos : “Ou tornada parede/Da casa primitiva/Ou tornada o murmúrio/Do mar que a cercava” (...) “Musa ensina-me o canto/Onde o mar respira/Coberto de brilhos”. E o tempo, como um eixo existencial impassível, corta e divide a poeta, lhe atravessa, e lhe retira da casa primitiva, e a poeta se volta, novamente, à musa, pedindo que lhe ensine o canto que lhe corta a garganta. A poética de Sophia tenta, no meu ver, captar e entender este canto, a busca de sua obra se destina a isto, no que temos : “Pois o tempo me corta/O tempo me divide/O tempo me atravessa/E me separa viva/Do chão e da parede/Da casa primitiva” (...) “Musa ensina-me o canto/Que me corta a garganta”.

AS GRUTAS : O equilíbrio da justa medida é instável, a imagem da balança em que o poema se reflete, coloca o homem neste jogo em que o esplendor pousa sobre o mar, no que temos : “O esplendor poisava solene sobre o mar. E – entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido – quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente.”. E um tipo de mito da criação eclode no poema, e é a visão da poeta que aflora, no que temos :  “De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado.”. Este mito de criação, na verdade, é um movimento de renovação e recriação do mundo, e a poesia pode ser um destes agentes de transformação, no que vem : “É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superfície das águas lisas como um chão.” E a poeta é atravessada por estas imagens que recriam o mundo, no que temos :  “As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim.”. O mundo se encanta de si mesmo, as coisas estão deslumbradas de serem elas mesmas, tudo brilha neste poema, e logo vem a imagem de gruta, no que temos : “Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.”. As imagens do poema são riquíssimas, podemos sentir o cheiro de maresia nestes versos e sua eloquência marítima que nos remete a uma paisagem idílica, no que vem : “Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento.”. A gruta logo se torna o mundo interior da poeta, e o poema segue : “E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu queria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.” E a poeta se volta para fora, ali o mar lhe dá o sentido todo desta balança, e a poeta chora de gratidão, como que possuída da verdade do mundo : “Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu queria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras.”.

A ESTRELA : O poema tem a estrela-guia como imagem clássica, no que vem : “Eu caminhei na noite/Entre silêncio e frio/Só uma estrela secreta me guiava” (...) “Grandes perigos na noite me apareceram/Da minha estrela julguei que eu a julgara/Verdadeira sendo ela só reflexo/De uma cidade a néon enfeitada”. E as indagações e conflitos da poeta afloram nesta sua alma que se perturba, no que temos : “Do frio das montanhas eu pensei/”Minha pureza me cerca e me rodeia”” (...) “E a fraqueza da carne e a miragem do espírito/Em monstruosa voz se transformaram/Disse às pedras do monte que falassem/Mas elas como pedras se calaram/Sozinha me vi delirante e perdida/E uma estrela serena me espantava”. Entre seus conflitos e dilemas, o ponto nevrálgico do delírio, e o espanto diante da estrela, no que segue : “Então eu vi chegar ao meu encontro/Aqueles que uma estrela iluminava” (...) “E assim eles disseram : “Vem connosco/Se também vens seguindo aquela estrela”/Então soube que a estrela que eu seguia/Era real e não imaginada”. Mas a visão da poeta era real, e lhe chamaram ao caminho, no que vem :  “Grandes noites redondas nos cercaram/Grandes brumas miragens nos mostraram/Grandes silêncios de ecos vagabundos/Em direcções distantes nos chamaram”. E um mundo de novidades se abriu, as visões da poeta se fascinam, e segue : “E eu espantada vi que aquela estrela/Para a cidade dos homens nos guiava” (...) “E a estrela do céu parou em cima/De uma rua sem cor e sem beleza” (...) “Ali não vi as coisas que eu amava/Nem o brilho do sol nem o da água” (...) “Ao lado do hospital e da prisão/Entre o agiota e o templo profanado/Onde a rua é mais triste e mais sozinha/E onde tudo parece abandonado/Um lugar pela estrela foi marcado” (...) “Nesse lugar pensei : “Quanto deserto/Atravessei para encontrar aquilo/Que morava entre os homens e tão perto”. E tudo o que ela imaginava estar bem longe, como a miragem de um delírio, era o próprio mundo dos homens, na proximidade de toda vivência.

NO POEMA : O poema transfere uma vista de uma cena para dentro de seu universo, o tema simples ganha vida na limpidez do poema, no que segue : “Transferir o quadro o muro a brisa/A flor o copo o brilho da madeira/E a fria e virgem liquidez da água/Para o mundo do poema limpo e rigoroso”. O poema tenta, então, preservar esta vida iluminada da decadência e da ruína, eis o desejo expresso no poema : “Preservar de decadência morte e ruína/O instante real de aparição e de surpresa/Guardar num mundo claro/O gesto claro da mão tocando a mesa”.

FERNANDO PESSOA : O poema homenageia o prolífico e multiforme poeta português, no que temos : “Teu canto justo que desdenha as sombras/Limpo de vida viúvo de pessoa/Teu corajoso ousar não ser ninguém/Tua navegação com bússola e sem astros/No mar indefinido”. E a descrição faz do poeta o sentido que Sophia vê em seus poemas, e a homenagem reafirma a dimensão gigantesca que Fernando Pessoa ganhou na poesia mundial, no que temos : “Criaram teu poema arquitectura/E és semelhante a um deus de quatro rostos/E és semelhante a um deus de muitos nomes” (...) “Invocando a presença já perdida/E dizendo sobre a fuga dos caminhos/Que foste como as ervas não colhidas”.

O HOSPITAL E A PRAIA : A descrição fria do hospital abre este poema : “E eu caminhei no hospital/Onde o branco é desolado e sujo/Onde o branco é a cor que fica onde não há cor/E onde a luz é cinza”. E a poeta vai ao mundo, contudo, mais uma vez a natureza, praias e campos, e a imagem reinante do mar em sua poética : “E eu caminhei nas praias e nos campos/O azul do mar e o roxo da distância/Enrolei-os em redor do meu pescoço/Caminhei na praia quase livre como um deus” (...) “Não perguntei por ti à pedra meu Senhor/Nem me lembrei de ti bebendo o vento/O vento era vento e a pedra pedra/E isso inteiramente me bastava” (...) “Porém no hospital eu vi o rosto/Que não é pinheiral nem é rochedo/E vi a luz como cinza na parede/E vi a dor absurda e desmedida”. A poeta sonhava com toda a paisagem marítima, mas acorda novamente na imagem fria do hospital, o mundo da dor.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/o-livro-sexto-de-sophia-de-mello-breyner-andresen 

 

 

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