“Com ampla temática, “Livro Sexto” tem uma dimensão formal bem desenvolvida”
O chamado “Livro Sexto” da poeta reforça este caráter
descentrado, uma vez que “O Cristo Cigano” tem uma posição não-oficial na obra
de Sophia, não é exatamente o sexto livro que Sophia considera na sua obra. Tal
livro foi excluído da edição de “Obra poética”, de 1991, que reuniu todos os
livros de Sophia.
Sophia coloca “O Cristo Cigano” numa ideia paradoxal do
sagrado e sua manifestação na arte partir de uma assassinato por um escultor
obcecado, a lenda aqui tenta, aparentemente, legitimar a ignomínia para a
realização de um bem maior, uma obra de arte.
A poesia de Sophia, por sua vez, possui um ambiente em que a
mitologia grega se projeta, criando um tipo de sentimento pagão, o mundo
antigo, com seus mitos e sua geografia, ganha corpo em sua poesia.
A poesia de Sophia também é uma poesia que afirma e canta a
natureza, e também avança para temas cristãos, a religiosidade aqui é um
sentimento de pertencimento e não um artifício, contudo, o expurgo de “O Cristo
Cigano” de sua obra oficial tem uma justificativa tíbia de motivação estritamente
literária.
A construção poética de eixo cabralino que aparece em “O
Cristo Cigano” é desenvolvida mais ainda para a confecção de “Livro Sexto”, e a
dicção de Sophia vai se apropriando desta poética de João Cabral de Melo Neto,
e o despojamento que daí advém reflete no título do livro, algo objetivo e
dado, um estágio numérico da obra que estava sendo realizada pela poeta Sophia.
“Livro Sexto” intensifica, desde esta sua titulação
pragmática, o eixo moderno e contemporâneo da poesia de Sophia, colocando a dicção
clássica da poeta num diálogo frutífero com uma voz moderna e com a fluência
contemporânea.
O título impessoal e frio de “Livro Sexto” reflete, portanto,
um vocabulário espesso historicamente, e tem a riqueza simbólica reafirmada
numa poética que, agora, abre um campo fértil de fluência contemporânea, com
este fundo de dicção clássica que é o tom dominante do que se pode falar da
poesia de Sophia.
Com ampla temática, “Livro Sexto” tem uma dimensão formal bem
desenvolvida, e apresenta temas que podem contrastar entre si, a dinâmica
temática do livro sempre avança e amplia seu escopo, sua abertura coloca visões
e contrastes em atividade, com tempos históricos ou suspensos convivendo no
mesmo livro, com regiões luminosas e de sombras se alternando nesta dinâmica da
amplitude.
DE LIVRO SEXTO
BARCOS : O poema levanta a dimensão de nomes mortos que são renomeados, a
sensação de ressurreição perpassa esta passagem destes barcos no poema : “Um
por um para o mar passam os barcos/Passam em frente de promontórios e
terraços/Cortando as águas lisas como um chão” (...) “E todos os deuses são de
novo nomeados/Para além das ruínas dos seus templos”. De toda a ruína que ali
havia, esta passagem dos barcos reaviva a memória destes templos, esta memória
viva retoma o seu pertencimento, seu estatuto existencial e histórico.
MUSA : O poema evoca e invoca a musa que tem do canto antigo um ensinamento, no
que temos : “Musa ensina-me o canto/Venerável e antigo/O canto para todos/Por
todos entendido”. Este canto que deve ser do entendimento de todos, objeto de
uma consciência comum e coletiva, no que segue : “Musa ensina-me o canto/Em que
eu mesma regresso/Sem demora e sem pressa/Tornada planta ou pedra”. E a mutação
em casa primitiva logo é feita, a poeta então, mais uma vez, se volta ao mar,
sua dominância e culminância temática, o eixo principal de sua poética, no que
temos : “Ou tornada parede/Da casa primitiva/Ou tornada o murmúrio/Do mar que a
cercava” (...) “Musa ensina-me o canto/Onde o mar respira/Coberto de brilhos”. E
o tempo, como um eixo existencial impassível, corta e divide a poeta, lhe
atravessa, e lhe retira da casa primitiva, e a poeta se volta, novamente, à
musa, pedindo que lhe ensine o canto que lhe corta a garganta. A poética de
Sophia tenta, no meu ver, captar e entender este canto, a busca de sua obra se
destina a isto, no que temos : “Pois o tempo me corta/O tempo me divide/O tempo
me atravessa/E me separa viva/Do chão e da parede/Da casa primitiva” (...)
“Musa ensina-me o canto/Que me corta a garganta”.
AS GRUTAS : O equilíbrio da justa medida é instável, a imagem da balança
em que o poema se reflete, coloca o homem neste jogo em que o esplendor pousa
sobre o mar, no que temos : “O esplendor poisava solene sobre o mar. E – entre
as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da
Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido – quase me cega a
perfeição como um sol olhado de frente.”. E um tipo de mito da criação eclode
no poema, e é a visão da poeta que aflora, no que temos : “De forma em forma vejo o mundo nascer e ser
criado.”. Este mito de criação, na verdade, é um movimento de renovação e
recriação do mundo, e a poesia pode ser um destes agentes de transformação, no
que vem : “É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida
um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão
clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superfície das águas
lisas como um chão.” E a poeta é atravessada por estas imagens que recriam o
mundo, no que temos : “As imagens
atravessam os meus olhos e caminham para além de mim.”. O mundo se encanta de
si mesmo, as coisas estão deslumbradas de serem elas mesmas, tudo brilha neste
poema, e logo vem a imagem de gruta, no que temos : “Estarão as coisas
deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga
no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto
de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no
alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas
surgem as pequenas praias.”. As imagens do poema são riquíssimas, podemos
sentir o cheiro de maresia nestes versos e sua eloquência marítima que nos
remete a uma paisagem idílica, no que vem : “Um fio invisível de deslumbrado
espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror
de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos
eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do
que o meu próprio pensamento.”. A gruta logo se torna o mundo interior da
poeta, e o poema segue : “E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada.
Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu queria poisar como uma rosa sobre o
mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo
de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos
abismos e surge em suas portas.” E a poeta se volta para fora, ali o mar lhe dá
o sentido todo desta balança, e a poeta chora de gratidão, como que possuída da
verdade do mundo : “Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das
águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados
de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu queria
chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras.”.
A ESTRELA : O poema tem a estrela-guia como imagem clássica, no que vem
: “Eu caminhei na noite/Entre silêncio e frio/Só uma estrela secreta me guiava”
(...) “Grandes perigos na noite me apareceram/Da minha estrela julguei que eu a
julgara/Verdadeira sendo ela só reflexo/De uma cidade a néon enfeitada”. E as
indagações e conflitos da poeta afloram nesta sua alma que se perturba, no que
temos : “Do frio das montanhas eu pensei/”Minha pureza me cerca e me rodeia””
(...) “E a fraqueza da carne e a miragem do espírito/Em monstruosa voz se
transformaram/Disse às pedras do monte que falassem/Mas elas como pedras se
calaram/Sozinha me vi delirante e perdida/E uma estrela serena me espantava”.
Entre seus conflitos e dilemas, o ponto nevrálgico do delírio, e o espanto
diante da estrela, no que segue : “Então eu vi chegar ao meu encontro/Aqueles
que uma estrela iluminava” (...) “E assim eles disseram : “Vem connosco/Se
também vens seguindo aquela estrela”/Então soube que a estrela que eu
seguia/Era real e não imaginada”. Mas a visão da poeta era real, e lhe chamaram
ao caminho, no que vem : “Grandes noites
redondas nos cercaram/Grandes brumas miragens nos mostraram/Grandes silêncios
de ecos vagabundos/Em direcções distantes nos chamaram”. E um mundo de
novidades se abriu, as visões da poeta se fascinam, e segue : “E eu espantada
vi que aquela estrela/Para a cidade dos homens nos guiava” (...) “E a estrela
do céu parou em cima/De uma rua sem cor e sem beleza” (...) “Ali não vi as
coisas que eu amava/Nem o brilho do sol nem o da água” (...) “Ao lado do
hospital e da prisão/Entre o agiota e o templo profanado/Onde a rua é mais
triste e mais sozinha/E onde tudo parece abandonado/Um lugar pela estrela foi
marcado” (...) “Nesse lugar pensei : “Quanto deserto/Atravessei para encontrar
aquilo/Que morava entre os homens e tão perto”. E tudo o que ela imaginava
estar bem longe, como a miragem de um delírio, era o próprio mundo dos homens,
na proximidade de toda vivência.
NO POEMA : O poema transfere uma vista de uma cena para dentro de seu
universo, o tema simples ganha vida na limpidez do poema, no que segue : “Transferir
o quadro o muro a brisa/A flor o copo o brilho da madeira/E a fria e virgem
liquidez da água/Para o mundo do poema limpo e rigoroso”. O poema tenta, então,
preservar esta vida iluminada da decadência e da ruína, eis o desejo expresso
no poema : “Preservar de decadência morte e ruína/O instante real de aparição e
de surpresa/Guardar num mundo claro/O gesto claro da mão tocando a mesa”.
FERNANDO PESSOA : O poema homenageia o prolífico e multiforme poeta português,
no que temos : “Teu canto justo que desdenha as sombras/Limpo de vida viúvo de
pessoa/Teu corajoso ousar não ser ninguém/Tua navegação com bússola e sem
astros/No mar indefinido”. E a descrição faz do poeta o sentido que Sophia vê
em seus poemas, e a homenagem reafirma a dimensão gigantesca que Fernando
Pessoa ganhou na poesia mundial, no que temos : “Criaram teu poema
arquitectura/E és semelhante a um deus de quatro rostos/E és semelhante a um deus
de muitos nomes” (...) “Invocando a presença já perdida/E dizendo sobre a fuga
dos caminhos/Que foste como as ervas não colhidas”.
O HOSPITAL E A PRAIA : A descrição fria do hospital abre este poema : “E eu
caminhei no hospital/Onde o branco é desolado e sujo/Onde o branco é a cor que
fica onde não há cor/E onde a luz é cinza”. E a poeta vai ao mundo, contudo,
mais uma vez a natureza, praias e campos, e a imagem reinante do mar em sua
poética : “E eu caminhei nas praias e nos campos/O azul do mar e o roxo da
distância/Enrolei-os em redor do meu pescoço/Caminhei na praia quase livre como
um deus” (...) “Não perguntei por ti à pedra meu Senhor/Nem me lembrei de ti
bebendo o vento/O vento era vento e a pedra pedra/E isso inteiramente me
bastava” (...) “Porém no hospital eu vi o rosto/Que não é pinheiral nem é
rochedo/E vi a luz como cinza na parede/E vi a dor absurda e desmedida”. A
poeta sonhava com toda a paisagem marítima, mas acorda novamente na imagem fria
do hospital, o mundo da dor.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/o-livro-sexto-de-sophia-de-mello-breyner-andresen
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