“tentavam fazer gestos como num tipo de língua estranha feita para alienados”
Existia um morador de uma casa, esta tinha alguns cômodos,
uma sala, uma cozinha e um banheiro, ele vivia na casa meditando e vendo coisas
que lhe faziam pensar. O dono desta casa era ele e seus sonhos, ele via coisas
e as anotava em seu caderno. Estava fazendo um livro e tinha anotado várias
ideias para outros livros. Certo dia, em uma destas suas meditações ele teve
uma intuição e divulgou como uma carta náutica para o mundo, seu mundo de
ideias agora estava circulando por outras paragens, houve um burburinho, ele
pensou que poderia ser algo, mas depois preferiu deixar para lá.
A movimentação estranha se deu, na primeira semana, com um
evento perto de sua casa, um canto esganiçado de maus cantores, eles cantavam
frases sem sentido, passavam várias pessoas fazendo gestos inusuais, e este
dono desta casa via tudo pela janela, um dos cantores fingia estar bêbado,
olhava para a janela com um ar irônico, este dono da casa pensou, olhou
bastante para aquele conjunto de maus cantores, mas voltou para seu quarto, e
foi escrever pensamentos sobre a vida e de como tudo poderia transcender a
qualquer momento.
Passaram-se uns meses, o dono da casa ouvia uns barulhos
estranhos perto de sua janela, eram garotos jogando bolas de tênis na parede da
casa, o dono da casa ficou aliviado que não eram pedras, pensou que aquilo era
muito estranho, os garotos riam e tacavam aquelas bolas, durou uma tarde
inteira, tanto que o dono da casa não conseguiu terminar o que estava
escrevendo, foi fumar na cozinha e comeu uma banana.
Mais meses se passaram, o dono da casa sentia que seu
trabalho escrito estava progredindo, ele se empolgava com tudo o que lia e
escrevia, não parava, era um bom vício, ele gostava de ficar no seu quarto
fumando, e gostava de escrever ouvindo muita música, fumava, lia e escrevia,
ouvindo música. A casa se iluminava, ele escreveu algo extraordinário enfim,
seu júbilo foi máximo, havia um tipo de luminosidade sobrenatural tomando-lhe
naquele quarto enfumaçado, e seus escritos brilharam como nunca.
Mais um mês se passou, o dono da casa bebeu um bocado num
dia, passou uma tarde bebendo e disse uns impropérios, logo no dia seguinte nem
se lembrava mais, tinha sido um festim de bêbado quando lembra de alguma coisa
e depois esquece de novo. Passou mais um mês deste dia e apareceram uns
motociclistas fazendo ameaças diante de sua janela, o dono da casa não entendeu
nada e desafiou a turba dando baforadas de seu fumo, e ao grupo de
motociclistas se juntou outra turba de delinquentes juvenis portando facas e
canivetes, o dono da casa riu daquilo tudo, fechou a janela e foi ler.
Ele passou muitos dias lendo desde aquele dia estranho
daquela turba enlouquecida, e anotou mais algumas ideias, e depois se mandou
para a boêmia, voltava para a sua casa sempre com um ar superior e glorioso, de
uma juventude sem fim. Aquela turba nunca mais tinha aparecido, o dono da casa
não tinha entendido muito bem aquela barulheira perto de sua casa, e não lhe
importava, ele nem sabia se lembrava bem, dava baforadas em seu fumo, e estava
tudo bem.
Contudo, num dia de calor, bem estranho, apareceu um sujeito
armado, atirou na janela de sua casa, só que não bateu na janela, o atirador
acertou a parede, e logo foi contido por policiais, ele foi detido e não se
sabe de seu paradeiro, na hora deste tiro o dono da casa estava fumando, depois
foi ouvir música, e se mandou novamente para a boêmia, voltando com o mesmo ar
superior e glorioso de sua juventude sem fim. Ele escreveu mais umas coisas,
passou uma semana e o dono da casa percebeu que sua parede tinha mesmo era
marca de tiro e mandou degolar o infeliz.
Passou mais uma semana e parecia que estavam fazendo uma
festa louca perto de sua casa, o dono da casa não entendeu quase nada, mas
sabia que tinha coisa boa no ar, foi novamente para a boêmia, viu uns amigos,
botou o papo em dia, voltou para a sua casa e foi fumar. Ele então olhou para
seus escritos, e lembrou de recolher aquelas suas iluminações que tinha escrito
em transe, salvou suas pérolas e se pudesse colocaria num cofre. Ele começou a
vislumbrar de fato um livro que estava surgindo, e continuou o seu trabalho
escrito, foi ler e estudar, e conseguiu um trabalho para poder beber na noite.
Passaram-se daí vários meses, de vez em quando apareciam uns
malucos perto de sua casa fazendo libras ou gestos idiotas, ele sempre entendia
aquilo como piada, e continuava escrevendo, pois sempre tinha malucos na rua,
parecia ser já algo normal e corriqueiro. Volta e meia, pintavam quadros e
passavam uns malucos perto da janela de sua casa e faziam sinais com as mãos.
O dono da casa estudou e trabalhou bastante, lia e escrevia
muito também, e seguiam estes sinais estranhos, e que tinham um mesmo padrão de
repetição. Eram malucos desavisados que passavam perto de sua janela sem bem
saber o que estavam fazendo de fato, era um bando de desocupados que, de vez em
quando, ainda tentavam fazer gestos como num tipo de língua estranha feita para
alienados. Doutra vez, colocaram um outdoor em frente à janela do dono da casa,
e nada do que estava desenhado ali fazia qualquer sentido.
Passou agora um tempo longo, e depois do dono da casa ter
tomado uma decisão drástica, apareceu uma turbamulta revoltada tacando ovos no
vidro de sua janela, ele limpou a janela e avisou o guarda da rua para ficar de
olho naqueles vândalos e tomar as medidas cabíveis se for o caso. A coisa logo
acalmou, o dono da casa começou a preparar seus livros, ele tinha feito um
acordo de trabalho pleno com tudo o que acreditava, a defesa de seus valores,
custe o que custar, e não foi caro, a casa estava limpa, o caminho estava
aberto, ele abriu a janela e olhou para um céu azul e limpo, ele ia dar um
mergulho no mar.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/a-casa-invadida-miniconto
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