“Jóquei tem norte, tem estilo, tem personalidade”
Matilde Campilho já tinha uma certa reivindicação de uma
edição de seus escritos desde a sua atuação no Facebook, aonde inicialmente foi
publicando os seus poemas, e os poetas brasileiros que a liam foram incitando a
poeta a editar o que ela estava fazendo, mas Matilde adiava a edição destes
poemas, até que decidiu fazer uma ação sistemática, o que foi seu retiro para
fazer seu livro Jóquei.
Jóquei não se trata somente destes poemas que apareceram no
Facebook, mas um novo material que Matilde tornou em um PDF, e acabou recebendo
no dia seguinte um e-mail de Pedro Mexia, que a descobriu por indicação de um
amigo. Jóquei demandou um ano inteiro de trabalho de Matilde Campilho, quando
ela deixou o emprego e ficou fazendo freelance, num jeito de escrever rápido
dentro de ônibus, por exemplo, e depois se debater com os poemas.
Matilde nos diz : “Foi mais de um ano assim, acordar para
escrever, ir dormir depois de escrever. Claro que a vida acontecia na mesma -
amigos, cervejas, mergulhos, chuva, empregos, tudo. Mas durante aquela
temporada havia um eixo central (…) [que] era o livro.
Quando comecei essa temporada nem tinha a total consciência
de que ia ser assim tão firme, tão constante. Mas foi. Foi uma prática diária,
e quase tudo o que se pratica diariamente se afina e ganha as suas próprias
regras. E ao mesmo tempo acaba dando uma regra à vida. Foi um tempo muito bom,
ganhei uma cadência e um sossego que contaminou quase todos os meus gestos. É
como um ginásio, sabes? Como fazer jogging todas as manhãs. Fica no corpo e
muda o corpo. Fazer este livro foi muito isso”.
E Jóquei foi ganhando este corpo imenso de uma polifonia de
poetas e cantores, muitas vozes ecoando nestes poemas, e Matilde fazendo desta
mistura seu próprio estilo, que tem um tributo especial aos norte-americanos
como Frank O'Hara, Allen Ginsberg, Ferlinghetti, John Ashberry, Kenneth Koch,
Wallace Stevens e william carlos williams.
Matilde leu bastante, e também traduziu muito. Matilde,
falando destes norte-americanos, ela fala que o mais marcante talvez tenham
sido “aqueles norte-americanos todos”. Ela diz : “Acho que foi com os
norte-americanos que aprendi o ritmo, aquela coisa quase de canção que muitos
deles têm”. E Matilde também faz tributo a figuras como Octavio Paz e Antonio
Cisneros, e seus conterrâneos como Ruy Belo, Daniel Filipe ou Fernando Assis
Pacheco.
Por fim, com a sua vinda ao Brasil Matilde Campilho teve
também a influência dos textos que Caetano Veloso escrevia no jornal e nas
costas dos discos, que também tem ecos eventuais em Jóquei. O Brasil é um
evento de gratidão para esta poesia que Matilde produziu em Jóquei, com este
seu lado virado também para Portugal, como disse em meus outros textos sobre
este livro e sobre Matilde.
Matilde consegue criar um caleidoscópio de cosmopolitismo
mais do que de ecletismo, a mistura que temos em Jóquei tem norte, tem estilo,
tem personalidade, sua polifonia, sua babel, portanto, não tem nada de um
ecletismo pejorativo que não resulta em um material coerente.
Em Jóquei, muito pelo contrário, a mistura de ingredientes
que Matilde realiza e dos quais se apropria é muito mais para dar ao seu ritmo
um caminho próprio na poesia, na SUA poesia, e Matilde Campilho alcança este
seu objetivo, Jóquei é um livro que lhe pertence, tem a sua assinatura
inconfundível.
POEMAS :
BADLAND : O poema começa com uma dúvida sobre
o gênero sexual da voz poética, lembrando, que em algumas partes de Jóquei,
Matilde gosta de brincar com esta ambiguidade, assumindo, às vezes, em seus
poemas, uma voz masculina fictícia, esta mania de Matilde também de se dirigir
a um interlocutor percorre obsessivamente os versos de Jóquei, no que temos : “Não
sei se sou homem/já não sei se sou/homem/se sou besta/se tenho olhos azuis/ou
mesmo se visto/camisa azul.”. O poema evoca uma dúvida, Matilde desperta aqui
um questionamento e fundamentalmente uma interrogação, no que vem : “Não sei se
sobre meu ventre/foi depositada uma concha, há uns./1.000 dias atrás. Não sei
se sou automático, se devo/trabalhar, pagar o revólver a prestações,/fazer
remo, correr na calçada, usar/camisa esquadrinhada, escrever em/cedro
esquadrinhado.”. Matilde não tem uma memória plena, se esquece dos nomes de
poetas, e segue em seu poema do que ela não sabe : “Eu não sei os nomes/dos
poetas todos mas sei que os poetas/todos são os novos roqueiros.”. Evoca o
amor, que promete ser intenso e segue seu curso normal, logo após, com os pés
na realidade, e que tem muito a nos ensinar, no que vem : “Aquele amor/aquele
que eu pensei/que se despedaçaria como/um meteorito no Minnesota” (...) “afinal
caiu silencioso/como um aviãozinho de papel/passeando em Itaparica/em dia de
apanha dos morangos.”. Matilde finaliza, aqui, com esta dúvida de gênero
sexual, a ambiguidade da voz poética de Matilde dando a cara mais uma vez neste
poema simpático : “Não sei se sou homem,/se sou mulher. Mas este/é o caminho do
estio/e por perto passam os bois.”.
GNOMON : O poema tem um desejo intenso, a
faculdade do querer em toda a sua potência, no que temos : “Eu queria tudo como/no
livro monogramado/A musa/As crianças/A discussão à chuva/que nos obrigaria a
perceber/a circularidade mística/de algumas árvores”. Matilde quer tudo, no que
vem : “Queria tudo como/no lenço das aparições/O gengibre assustando-nos/de vez
em quando os pratos/O morro da Lopes Quintas/que você nunca chegaria a ver/Mas
que certamente verá/Só não mais por meus olhos”. O querer que, normalmente, vem
de um desejo de mudança, e mais radicalmente, de transformação, no que temos :
“Queria tudo em jeito de promessa/de um acontecimento que mudaria/a percepção
da sombra humana/Mas você insistiu em morrer/Você sempre insistia em morrer/e
finalmente conseguiu”. No entanto, em meio a estes quereres, eventualmente,
existem adversidades, e até mesmo tragédias, é a vida como ela é, e este poema
a conhece, a vida, também, e narra de forma natural o curso dos acontecimentos,
no que temos : “Acontece que agora/Mil
anos depois/do enterro de sua bandeira/Depois do choro/Depois da impressionante
mudança/nas ocorrências diárias do mundo/Você fica se queixando/Sobre a queda
da musa/Sobre a saudade das crianças/Sobre a reprodução profícua/de certas
árvores no jardim.”. Matilde então segue a narrativa da sensação que vem após
completar 30 anos de idade, no que temos : “As coisas que a gente aprende/depois
dos 30 anos : sempre achei/que os mortos fossem mudos/E afinal os mortos se
descontrolam/no exercício alto da sintaxe.”. A ideia de morte e da voz dos
mortos, aqui nesta coda, fecha o raciocínio com uma naturalidade que podemos
chamar de poética.
O AMOR FAZ-ME FOME : Aqui temos um dos poemas em prosa de
caráter fluido de Matilde Campilho, no que vem : “Tropecei numa ementa de
vendas de comida ready-made/E por uma dessas fatalidades que vêm encadernadas/em
vouchers de correio ou publicidade não endereçada/Fui reparar que agora tu e a
tua miúda fazem/cafés da manhã para entregar ao domicílio”. O poema segue sobre
o tema da entrega a domicílio e logo divaga sobre Rimbaud, saltimbancos, e
depois retorna à comida, e o tema da paixão, no que temos : “No meu tempo eu
era o príncipe e tu a imagem/mais pura do menino Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud/Dois
saltimbancos cruzando a cidade e os dias” (...) “A comida não era de todo o que
mais nos interessava/se pensarmos que a paixão alucinante era rastilho
suficiente/para rebentar-nos o estômago até o nível da alegria”. Mais uma vez,
como Matilde fez em outros poemas de Jóquei, ela se refere a esta sua idade que
acaba de passar dos 30 anos, no que temos : “Hoje temos mais de trinta anos e
da minha janela dá para ver/os disparos dos incontáveis snipers das barricadas
de Kiev/Desta varanda podem ouvir-se os gritos das ruas venezuelanas/se sobrepondo
ao viejo papá que só quer dizer pásame el pan”. Um tour rápido por Kiev, um
sniper, as ruas venezuelanas, enriquecendo o poema em prosa que reforça a sua
fluidez nestas imagens, e segue : “Parece que a primavera do mundo é um
trabalho em progresso/mas o caminho até lá está sendo todo feito entre as
veredas/e entre os galhos de fogo de um gigante inverno”. E temos o amor, tema
poético par excellence, em uma chave cool e contemporânea, no que vem : “O amor
ainda é o estandarte onde vamos pendurando as bandeiras/A coragem ainda é o
ferro onde vamos pendurando as roupas/Sim ainda rasgamos nossas roupas Sim
ainda esfolamos os joelhos/Mas agora é tudo em nome de uma certa mudança
universal/Onde andarás tu e teu sonho nesta manhã eu já não sei/Muito menos que
espécie de alimentos entregas ao domicílio/Seja como for o amor ainda me faz
bastante fome/e o relento ainda me parece o asfalto justo para toda revolução/Portanto
(apesar dos vouchers) hoje meu miúdo e eu escolhemos/tomar café da manhã na rua
e deixar para lá o domicílio.”. E Matilde e seu miúdo, enfim, corrompem a chave
de prata do poema e vão à rua, fora do domicílio, a chave de ouro ou coda
formam a surpresa de uma decisão nova da poeta.
PAZ, PALAVRA ÚTIL : O poema lembra mais uma vez Whitman,
um dos poetas-fetiche de Matilde, podemos compará-lo somente à presença de
T.S.Eliot nesta citação de poetas que Matilde faz em seu livro Jóquei, no que
temos : “Estava lendo Whitman/e lembrei de você/Isso para começo dos trabalhos/já
é mais ou menos bom sinal”. E Matilde faz esta colagem em que produz seu poema
próprio de Whitman, no que temos : “Quando descobri o tal poema curto/que lá
para o meio do corpo diz/“the pay is certain one way or another”/Não foi
exatamente por isso/que lembrei de você/Até porque esse é um poema/que fala
daqueles amores assim/longos, assustados, algumas vezes/raivosos e geralmente/de
correspondência difícil”. E o poema vem com o tema do amor, esta âncora comum
dos versos clássicos, mas que aqui aparece junto com outros sentimentos como o
espanto, no que vem : “Um amor daqueles semieternos/que faz escrever um livro/ou
um punhado de versos” (...) “O que aconteceu foi que/por causa do espanto/precisei
coçar o queixo/levar as duas mãos à cara”. E o evento do poema explica o fato
da memória que o poema evoca, no que temos : “O que aconteceu foi que/por causa
do gesto indecifrável/ou da estocada da
memória/o livro caiu no chão do trem/E então a queda ferroviária/fez voar o
marcador das páginas/Veja só : era o cartãozinho/do bar dos pescadores”. E aqui
temos o esclarecimento de todo o tema do poema, no que temos : “caindo a meus
pés/Foi por causa do nome da rua/que vinha escrito no cartão/O endereço do
boteco/do sol & das fainas/Que lembrei de você” (...) “E daquele mês/de
ouro na cidade-norte/Quando tudo ia bem/hiper mega bem/com as 4 vidas/transatlânticas.”.
TENHO PLANOS PARA UMA
CONFISSÃO : O poema
segue em seu imprevisto e o que se
espera, e se abre nesta tensão da razão desafiada, no que temos : “Foi
em novembro de dois mil e tal/em Ipanema/Fazia frio e não devia/Chovia como era
previsto/E algumas dessas coisas/nos confundiam/Eu era demasiado novo para o
desterro/Um pouco velho já para certas aventuras”. E o poema ganha um tom
reflexivo, no que temos : “Meu rosto não se transformava/mas a paisagem sim”
(...) “Maria meu velho tesouro/não me acompanhava mais/Os canaviais, as
abóbadas do Arkansas,/as feridas no rosto e os recibos de pensões/iam caindo no
caminho como balas de açúcar”. O poema fala do pensamento, da reflexão do
tempo, da memória, no que temos : “Era nisso que eu pensava/quando não pensava
em nada/Foi no novembro de Ipanema/quando me acertei com a meditação” (...) “A
vida nunca foi tão pacífica/Desistira facilmente dos troféus”. E as
consequências do tempo, em toda a sua densidade existencial, no que vem : “Meus
amigos iam se retirando como lascas/Eu ia aproximando o rosto das orquídeas/atadas
nas árvores pelos porteiros de Ipanema” (...) “As manhãs eram todas de ouro/E à
passagem de cada uma delas/eu atava uma nova pulseira em meu braço/Foi um poeta
quem me disse/Que os gêmeos se distinguem pelas cores/das fitas amarradas em
seus pulsos/Eu queria distinguir-me de mim mesmo/Como um urso que fareja as
moedas/entre os cachos de erva”. O poema segue seu curso, e temos : “Certa
manhã, entre as colunas/de fogo que de vez em quando/se levantavam no terror
das esquinas,/apareceu o rosto doce de Antonio/Fotografei-o com minha câmera
descartável/E essa imagem desfocada é a pagela/que trago dobrada em meu bolso
até hoje”. A voz poética, depois de todo este trajeto, faz uma bela descoberta,
foi feliz, coda magistral de Matilde : “Aqueles foram meus pleitos literários/entre
o mar e a cidade/E, como disse o santo da fotografia,/na verdade fui feliz.”.
WE NEVER DID TOO MUCH
TALKING ANYWAY : O
poema descreve ambiguamente Coney Island, e contradiz apontando para um outro
lado, no que temos : “Por exemplo/esqueça Coney Island/e as trezentas peças/de
metal que compõem/o jogo mágico de Coney/Island no mês de agosto”. Evoca a
lembrança, no que temos : “Lembre de meu fascínio/profundo por desportistas/noturnos
que sincronizam/a respiração com o batimento/dos dedos da amante morta” (...) “Lembre
do quanto me iluminam/os animais talhados no marfim”. O poema faz este jogo
entre lembrança e esquecimento, mais uma vez Matilde coloca o tema aqui da
memória, no que temos : “Esqueça talvez/a manobra repetida/de lamber envelopes/no
silêncio de um quarto” (...) “Lembre que por vezes/você tem muita razão/e que
outras vezes não/Esqueça vá esqueça/o inverno em Ipanema” (...) “Lembre de meu
desejo/muitas vezes certo/muitas vezes não” (...) “E se puder não esqueça/o
rosto calmo do tigre/que está parado na porta/esperando para entrar/e para
depois nos atravessar.”. A riqueza de imagens do poema conversa bem com os
motes ambivalentes da memória, que são a lembrança e o esquecimento.
POEMAS :
BADLAND
Não sei se sou homem
já não sei se sou
homem
se sou besta
se tenho olhos azuis
ou mesmo se visto
camisa azul.
Também já não sei
se seguro um toco
meio ardido, aqui sentado
na esplanada desta cidade
cujo nome é Tavizkam.
Não sei se sobre meu ventre
foi depositada uma concha, há uns.
1.000 dias atrás.
Não sei se sou automático, se devo
trabalhar, pagar o revólver a prestações,
fazer remo, correr na calçada, usar
camisa esquadrinhada, escrever em
cedro esquadrinhado. Eu não sei
se possuo uma barca, se possuo
ossos que podem apodrecer
a qualquer hora. Eu não sei os nomes
dos poetas todos mas sei que os poetas
todos são os novos roqueiros. Eu não
sei, só sei que antes julguei que
os poetas eram escavadores.
Aquele amor
aquele que eu pensei
que se despedaçaria como
um meteorito no Minnesota
(uma coisa assim
estrondosa abusiva
gritante maravilhosa
estilhaço prolongado
cheio de uivos)
afinal caiu silencioso
como um aviãozinho de papel
passeando em Itaparica
em dia de apanha dos morangos.
Não sei se sou homem,
se sou mulher. Mas este
é o caminho do estio
e por perto passam os bois.
GNOMON
Eu queria tudo como
no livro monogramado
A musa
As crianças
A discussão à chuva
que nos obrigaria a perceber
a circularidade mística
de algumas árvores
O choro
O recado escondido de Chillida
Queria tudo como
no lenço das aparições
O gengibre assustando-nos
de vez em quando os pratos
O morro da Lopes Quintas
que você nunca chegaria a ver
Mas que certamente verá
Só não mais por meus olhos
(como você ainda disse :
o caleidoscópio através
do qual sucedia o mundo)
Queria tudo sobre o pano
de um chapéu de tirolês
Tudo tão importante quanto
a descoberta grega
do ângulo de noventa graus
Queria tudo em jeito de promessa
de um acontecimento que mudaria
a percepção da sombra humana
Mas você insistiu em morrer
Você sempre insistia em morrer
e finalmente conseguiu
Acontece que agora
Mil anos depois
do enterro de sua bandeira
Depois do choro
Depois da impressionante mudança
nas ocorrências diárias do mundo
Você fica se queixando
Sobre a queda da musa
Sobre a saudade das crianças
Sobre a reprodução profícua
de certas árvores no jardim.
As coisas que a gente aprende
depois dos 30 anos : sempre achei
que os mortos fossem mudos
E afinal os mortos se descontrolam
no exercício alto da sintaxe.
O AMOR FAZ-ME FOME
Tropecei numa ementa de vendas de comida ready-made
E por uma dessas fatalidades que vêm encadernadas
em vouchers de correio ou publicidade não endereçada
Fui reparar que agora tu e a tua miúda fazem
cafés da manhã para entregar ao domicílio
Perdão queria dizer pequenos-almoços
deixemos o café e as manhãs para outras dinastias
No meu tempo eu era o príncipe e tu a imagem
mais pura do menino Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud
Dois saltimbancos cruzando a cidade e os dias
Também cruzávamos os dedos mas isso agora não importa
Dois rapazolas roubando meio croissant e três goles de suco
às mesas impecavelmente postas dos hotéis mais bonitos da
cidade
A comida não era de todo o que mais nos interessava
se pensarmos que a paixão alucinante era rastilho suficiente
para rebentar-nos o estômago até o nível da alegria
Havia sempre alguém disposto a pagar-nos refeições
assim como nós estávamos sempre prontos a pular o fogo mágico
Acostumamo-nos desde muito cedo a sair das celebrações
de joelhos chamuscados e com as roupas mais ou menos rasgadas
Isso era motivo suficiente para que um de nós pegasse a moto
e então os dois acelerávamos até a praia mais deserta do país
Nem por isso deixamos de nos escapar aos acontecimentos
mas aqueles foram indubitavelmente os mergulhos de ouro
Agora as fogueiras levantam-se muito mais altas do que as
magias
às quais dedicamos quase toda nossa juventude igualitária
Hoje temos mais de trinta anos e da minha janela dá para ver
os disparos dos incontáveis snipers das barricadas de Kiev
Desta varanda podem ouvir-se os gritos das ruas venezuelanas
se sobrepondo ao viejo papá que só quer dizer pásame el pan
Daqui dá para cheirar a ameaça de pólvora semi-invisível
saindo
do documento que declara o estado de exceção no sul da Bahia
Parece que a primavera do mundo é um trabalho em progresso
mas o caminho até lá está sendo todo feito entre as veredas
e entre os galhos de fogo de um gigante inverno
No nosso tempo eu acreditava muito nas notícias e na
televisão
Hoje eu acredito nas experiências que me contam os homens
Ontem éramos os filhos dos netos da revolução
E explicaram-nos que a tabuada e a paixão alucinante eram
tudo
o que precisávamos e precisaríamos para o exercício da
construção
Hoje somos pais de algumas crianças e pais de nós mesmos
e já vamos sabendo algumas coisas sobre a palavra
desconstrução
O amor ainda é o estandarte onde vamos pendurando as
bandeiras
A coragem ainda é o ferro onde vamos pendurando as roupas
Sim ainda rasgamos nossas roupas Sim ainda esfolamos os
joelhos
Mas agora é tudo em nome de uma certa mudança universal
Onde andarás tu e teu sonho nesta manhã eu já não sei
Muito menos que espécie de alimentos entregas ao domicílio
Seja como for o amor ainda me faz bastante fome
e o relento ainda me parece o asfalto justo para toda
revolução
Portanto (apesar dos vouchers) hoje meu miúdo e eu escolhemos
tomar café da manhã na rua e deixar para lá o domicílio.
PAZ, PALAVRA ÚTIL
poema alegre para o capitão
Estava lendo Whitman
e lembrei de você
Isso para começo dos trabalhos
já é mais ou menos bom sinal
Foi imediatamente depois do espanto
da página 108
Quando descobri o tal poema curto
que lá para o meio do corpo diz
“the pay is certain one way or another”
Não foi exatamente por isso
que lembrei de você
Até porque esse é um poema
que fala daqueles amores assim
longos, assustados, algumas vezes
raivosos e geralmente
de correspondência difícil
(repare que difícil é bastante
o contrário de impossível)
Um amor daqueles semieternos
que faz escrever um livro
ou um punhado de versos
Sendo essa a correspondência
mais honesta
Portanto não foi aí que lembrei
de você Não
O que aconteceu foi que
por causa do espanto
precisei coçar o queixo
levar as duas mãos à cara
e respirar entre os 20 dedos
O que aconteceu foi que
por causa do gesto
indecifrável
ou da estocada da memória
o livro caiu no chão do trem
E então a queda ferroviária
fez voar o marcador das páginas
Veja só : era o cartãozinho
do bar dos pescadores
(ele que pelos vistos tem servido
de marca-compasso
para a canção de
Whitman
desde o último verão)
caindo a meus pés
Foi por causa do nome da rua
que vinha escrito no cartão
O endereço do boteco
do sol & das fainas
Que lembrei de você
De sua primeira aparição
De sua primeira gargalhada
E daquele mês
de ouro na cidade-norte
Quando tudo ia bem
hiper mega bem
com as 4 vidas
transatlânticas.
TENHO PLANOS PARA UMA
CONFISSÃO
Foi em novembro de dois mil e tal
em Ipanema
Fazia frio e não devia
Chovia como era previsto
E algumas dessas coisas
nos confundiam
Eu era demasiado novo para o desterro
Um pouco velho já para certas aventuras
Dormia algumas horas por noite
num quartinho de esquina
Onde guardava os 7 livros, uma hamaca
vermelha & branca e a pequena caixa
de madeira onde ia depositando a diário
as lascas que sobravam da escultura
Eu ia esculpindo um novo genoma
Com mãos encharcadas de água de coco
Meu rosto não se transformava
mas a paisagem sim
Uma vez por semana cruzava a rua
de saquinho plástico pendurado no braço
e levava a roupa na lavanderia
Maria meu velho tesouro
não me acompanhava mais
Os canaviais, as abóbadas do Arkansas,
as feridas no rosto e os recibos de pensões
iam caindo no caminho como balas de açúcar
O desenho daquele rastro no chão
apontaria certamente ao palácio lunar
Era nisso que eu pensava
quando não pensava em nada
Foi no novembro de Ipanema
quando me acertei com a meditação
Comia duas bananas por dia
Um suco de acerola
E de vez em quando um sanduíche
A vida nunca foi tão pacífica
Desistira facilmente dos troféus
Guardando para mim apenas a bandeirola
Da Federación Uruguaya de Esgrima
Porque sempre suspeitei
que aprenderíamos muito
fixando os espaços
entre as listras azuis e brancas
Meus amigos iam se retirando como lascas
Eu ia aproximando o rosto das orquídeas
atadas nas árvores pelos porteiros de Ipanema
Tomava o café da manhã no mercado
enquanto lia o jornal da cidade
Havia um forte cheiro de mar sujo
que subia sempre a 3 quadras
até chegar na avenida
As manhãs eram todas de ouro
E à passagem de cada uma delas
eu atava uma nova pulseira em meu braço
Foi um poeta quem me disse
Que os gêmeos se distinguem pelas cores
das fitas amarradas em seus pulsos
Eu queria distinguir-me de mim mesmo
Como um urso que fareja as moedas
entre os cachos de erva
Havia uma artéria que ligava todas as coisas
desde a Praia de Botafogo até o Centro da Cidade
O atravessamento do Aterro
nas cavalitas de um ônibus bêbado
foi durante muito tempo
a única salvação possível
Certa manhã, entre as colunas
de fogo que de vez em quando
se levantavam no terror das esquinas,
apareceu o rosto doce de Antonio
Fotografei-o com minha câmera descartável
E essa imagem desfocada é a pagela
que trago dobrada em meu bolso até hoje
Aqueles foram meus pleitos literários
entre o mar e a cidade
E, como disse o santo da fotografia,
na verdade fui feliz.
WE NEVER DID TOO MUCH
TALKING ANYWAY
Por exemplo
esqueça Coney Island
e as trezentas peças
de metal que compõem
o jogo mágico de Coney
Island no mês de agosto
Lembre da palavra sushi
sendo gritada no metrô
quando tudo o que alguém
queria gritar era sua devoção
por pedacinhos de prata
Lembre de meu fascínio
profundo por desportistas
noturnos que sincronizam
a respiração com o batimento
dos dedos da amante morta
Esqueça o comprimido
composto de estearato
de magnésio e macrogol
receitado por doutor Roberto
quando o pobre doutor Roberto
não sabia mais o que tentar
ou então tinha mais o que fazer
naquela tarde de quarta-feira
na emergência de São Vicente
Lembre que quarta-feira
é dia de jogo de pebolim
e sobre isso não tem discussão
Lembre do quanto me iluminam
os animais talhados no marfim
principalmente aquela baleia
de oito centímetros e meio
minha única esperança
Esqueça talvez
a manobra repetida
de lamber envelopes
no silêncio de um quarto
quando já faz sol nas praças
Somos feitos para o relento
Lembre que por vezes
você tem muita razão
e que outras vezes não
Esqueça vá esqueça
o inverno em Ipanema
e o tubarão nadando
nas veias da besta
de Ipanema gelada
Lembre de meu desejo
muitas vezes certo
muitas vezes não
Lembre a descoberta
daquele excerto que dizia
nós subimos os degraus
a correr e saímos do frio
brilhante para o frio escuro
E se puder não esqueça
o rosto calmo do tigre
que está parado na porta
esperando para entrar
e para depois nos atravessar.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário