“um dos temas do sonho é a concepção da insignificância da
vida individual neste mundo”
Borges nos fornece neste seu Livro dos Sonhos uma perspectiva
em que a ficção mais uma vez se faz como uma aparente crítica literária, mas no
caso deste livro temos um caso mais específico ainda da literatura borgiana,
temos uma espécie de documento transcrito, vide o relato inicial da História de
Gilgamesh, seja no trecho em que se dá os diversos relatos bíblicos do plano
onírico e de como o terreno do sonho sempre foi, na era antiga e demais
contextos, também associado com uma faculdade profética ou de adivinhação.
Na abertura do livro temos, portanto, a História de
Gilgamesh, este que é um dos registros de ficção mais antigos do mundo
civilizado, surgido nos inícios da civilização mesopotâmica, pois, em meio de
uma mitologia que reunia entidades como Tamuz e Ishtar, Gilgamesh nos aparece
como um personagem sui generis, não fazendo parte do panteão sumério, por
exemplo, mas sendo o primeiro poema épico de que se tem notícia na nossa
História do mundo. E Borges faz aqui uma reprodução fiel do texto antigo, na
relação entre Gilgamesh e Enkidu, e no afã de romper o mundo dos mortais em
direção do mundo dos deuses, Gilgamesh teria, no entanto, o mesmo destino
reservado aos mortais, a finitude, no que o herói regressa, por fim, a Erech.
Se segue, no livro de Borges, então, uma série de textos
bíblicos curtos, todos referentes ao papel do sonho no contexto destes relatos
bíblicos, e começando com o mais conhecido, que é o de José no Egito, no
Gênese, que era um hebreu feito cativo que ganha a confiança de Faraó ao ser o
único que teve a capacidade de interpretar um sonho do soberano que nenhum dos
adivinhos do Egito tiveram como decifrar.
E José acaba sendo então nomeado por Faraó o superintendente do Egito.
Outro relato bíblico famoso e também transcrito por Borges em
seu Livro dos Sonhos é o de Daniel com os sonhos de Nabucodonosor, já no reino
caldeu ou neobabilônico. A história começa com um pesadelo que o soberano
tivera, mas que havia sumido de sua memória, e nisto ele convoca todos, isto é,
os adivinhos, os magos, os encantadores, e por fim os próprios caldeus, mas
ninguém lhe dá a resposta, mesmo com a ameaça do soberano sobre o seu povo de
perecerem se não lhe dessem a resposta. Uma vez que os caldeus disseram ao rei que só
os deuses poderiam lhe dar tal resposta, ele então ordena a morte de todos os
sábios de Babilônia. E Daniel, que também poderia perecer, pediu ao rei, no
entanto, um tempo, e lhe prometeu que desvendaria o mistério.
E então o segredo foi descoberto por Daniel numa visão
durante a noite. Daniel então é levado ao rei por Arioc, e este cativo, um dos
filhos de Judá, diz ao soberano : “Os sábios, os magos, os adivinhos e os
agoureiros não podem descobrir ao rei o mistério que o rei deseja descobrir.
Mas no céu há um Deus que revela os mistérios, o qual mostrou, ó rei
Nabucodonosor, as coisas que hão de acontecer nos últimos tempos.”
E então temos a revelação de que o sonho era de que o rei
olhava uma estátua bem grande, com a cabeça de ouro, o peito e os braços de
prata, o ventre e as coxas de cobre, e as pernas de ferro, uma das partes do pés
era de ferro e a outra de barro. O rei olhava, segundo a revelação feita a
Daniel, a estátua, quando então rolou uma pedra de um monte e feriu a estátua
nos seus pés de ferro e de barro e os fez em pedaços. E tudo se quebrou, o
ouro, a prata e o cobre também. Este era o sonho do rei e que Daniel então também
teve a visão.
E a tradução do sonho feita por Daniel, com o concurso de seu
Deus, era o de que o rei era a cabeça de ouro, de um reino próspero, que seria
sucedido por um reino menor que o dele, que seria de prata, um terceiro reino
então viria, de cobre, o quarto reino de ferro, e este reino, por fim, será
dividido, entre a firmeza do ferro, e a parte frágil do barro. Então
Nabucodonosor se prostra diante de Daniel dizendo-lhe que aquele Deus que
revelara o sonho era o Deus dos deuses.
Temos então em seguida mais relatos de sonhos bíblicos, tendo
então uma grande alegoria de quatro reinos, com todo o simbolismo que envolve
também imagens fundidas de animais para interpretações de acontecimentos
históricos, lembrando uma dinâmica comum entre a alegoria do sonho e sua
interpretação, o simbolismo sendo sempre um enigma evidente, nunca algo sem
sentido, daí que a interpretação, quando nos aparece, revela a lógica interna
de tais sonhos. E terminamos o trecho bíblico do Livro dos Sonhos, por fim, com
orações e confissões de Daniel e a citação do Evangelho de São Mateus, com a
descrição do sonho de José que era uma comunicação espiritual do anjo do
Senhor, a fuga para o Egito, incitada pela perseguição de Herodes, e o retorno,
com o falecimento do perseguidor, da sagrada família a Israel, por fim.
Segue-se então, ao término do ciclo bíblico em Livro dos
Sonhos, um conto sobrenatural hitita, História de Kessi, e então a fonte grega
“Os sonhos procedem de Zeus”, da Ilíada, As Duas Portas, parte I, da Odisseia,
uma fonte latina, a parte II, vinda da Eneida, O Sonho de Penélope, que era
alegoria do retorno de Odisseu a Ítaca, o qual dava um fim ignominioso aos
pretendentes de Penélope, a águia que mata os gansos rompendo-lhes o pescoço,
retirado da Odisseia. E temos em seguida Os Idos de Março, um dos episódios
mais famosos do périplo que foi o trajeto romano do reino à República e daí
para se constituir como um grande império, Idos de Março que envolve a
conspiração contra Júlio César e sua morte, relato este que foi feito pelo
historiador Tito Lívio, mas que aqui em Borges se inspira na conhecida Vidas
Paralelas de Plutarco.
Segue-se um pequeno relato sobre O Sonho de Cipião, obra de
Cícero, que tem caráter filosófico-religioso, e tem a descrição do sonho do
título, que envolve, na sua parte reflexiva, ou seu leitmotiv, a questão da
piedade e da justiça, que então nos leva a uma descrição dos mundos
supralunares e sublunares, de como esta divisão astronômica é também uma
divisão da alma do Homem, o mundo inferior, sublunar, como lugar da mortalidade
e da decrepitude, “exceto as almas dos homens”, como nos lembra Borges nesta
descrição, e temos então a necessidade destes homens de se voltarem às virtudes
citadas da piedade e da justiça, voltando então a vista a este plano superior
das esferas supralunares, “onde nada é decrépito ou mortal”, como nos lembra
Borges.
E o autor então também nos dá a chave : “A alma se acha
ligada por sua parte superior a estas esferas, e somente poderá regressar
efetivamente a elas, como sua verdadeira pátria, quando esqueça a caducidade
dos bens materiais e das falsas glórias terrenas”. A origem de tais ideias em
Cícero remete a Pocidônio, a qual alguns negam, e temos um plano geral em que
tais concepções eram correntes, seja da influência das ditas religiões astrais,
seja na concepção platônica, e que vai influenciar, por sua vez, autores
posteriores, se destacando então Macróbio.
E aqui cito mais uma vez o texto borgiano, que nos diz : “É
mister observar que um dos temas do sonho é a concepção da insignificância da
vida individual neste mundo, comparada com a imensidade do cosmo. O tema está
igualmente desenvolvido no Livro VI da Eneida (revelação de Eneas a Anquises) e
em alguns escritos estoicos (por exemplo, em Sêneca, Ad Marciam de
consolatione, XXI).”
Quanto a Macróbio, o temos citado pelo texto borgiano que se
segue em Livro dos Sonhos, que é o Sonhos Caseiros, que nos diz da
desimportância dos sonhos prosaicos ou cotidianos, e temos a valorização dos
sonhos mais sublimes, lembrando que este autor, por exemplo, da obra Saturnais,
escreveu um difundido Comentário ao Sonho de Cipião, capítulo VI da República
de Cícero, Macróbio que, por sua vez, era um escritor latino do século V, e
temos novamente esta descrição cosmogônica de origem platônica e pitagórica.
E seguindo a primazia de tais sonhos maiores, após na
História, temos o mestre de São Tomás de Aquino, que era São Alberto Magno,
iniciador da conciliação escolástica entre a filosofia grega e a doutrina
cristã, na sua obra Da alma, reforçando a irrelevância dos sonhos menores e
elevando os de origem divina. E tal levantamento se baseia bem em Rodericus
Bartius, uma das fontes principais do Livro dos Sonhos de Borges.
(continua)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/38375/17/borges-os-sonhos-biblicos-e-mais-descricoes-oniricas
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