“há um diálogo entre a linguagem textual e a pictórica”
A POESIA DE WILLIAM
BLAKE
Temos que identificar, dentre outros aspectos da poesia de
William Blake, o fato desta ser a poesia de um poeta-pintor, e que, portanto,
reuniu numa combinação rara o diálogo entre poemas e lâminas com gravuras e
pinturas. Blake, por conseguinte, do ponto de vista do conteúdo de sua poesia,
além de estabelecer um diálogo intertextual com a cultura judaica e a cristã,
também tem uma constante na influência literária de John Milton, este que será
um de seus guias na jornada longa da arte e da visão religiosa, e que funciona
tanto como referência literária como cultural.
Tal orientação místico-religiosa e de cunho revolucionário aparecerá em
seus chamados livros impressos iluminados, em que há um diálogo entre a
linguagem textual e a pictórica, pois os poemas sempre vêm acompanhados de
lâminas pintadas e fazem referência a estas.
Se formos analisar as lâminas de seus poemas iluminados,
temos aqui um universo amplo e múltiplo que podemos denominar de texto-imagem,
e isso no contexto de um verso que vai se apresentar em seu caráter de ritmo
variável e prosaico, e que é a característica própria do verso livre de William
Blake. E temos um Blake dos primeiros poemas, que é o de Esboços Poéticos e
Canções de inocência e de experiência, trabalhos poéticos nos quais o
poeta-pintor revela uma métrica rigorosa e uma musicalidade calcadas ainda na
lírica tradicional. E isto muda muito quando nos deparamos, logo a seguir, com
os livros impressos iluminados dos anos 1790, numa simplificação do verso que
não havia, entre versos de catorze ou quinze sílabas e o verso livre, algo
ainda não praticado até então no universo tradicional da lírica inglesa.
E temos, nesta nova prática lírica de Blake, também a
superação de certa ambiguidade poética que normalmente se associa à lírica, com
Blake inaugurando um verso profético com uma falsa clareza de termos, pois vai
se apresentar de modo narrativo e também descritivo, com uma profusão de
imagens que orbitam tanto a realidade concreta como o terreno da abstração. E
tal verso simples, em sua forma geral, revela no conteúdo uma complexidade de
tema, uma vez que envolve o mito, e mais ainda, um mito apropriado e
praticamente criado pelo poeta-pintor William Blake, donde podemos com uma
certa exegese retirar vários paralelos com a realidade política e até bíblica,
mas que revelam um estro criador que é a invenção de um mito próprio numa
poesia que também era nova. E a linguagem mítica é complexa como conteúdo
poético, pois esta é um terreno rico de interações e contrastes, com áreas
antitéticas, combativas, opositivas, e que se torna um desafio exegético para
quem tem fôlego para interpretar tantos jogos como esses que se dão em tais
poemas de Blake.
Foram os anos de 1794 e 1795 nos quais William Blake
desenvolveu grande parte das ideias que comporiam o universo ficcional de sua
obra Matrimônio do céu e do inferno (1793), ao lado de ideias também para seu
conhecido livro Canções de inocência e de experiência. Quanto aos livros que
viriam a seguir, tais como os das Profecias Continentais, que são América uma
profecia, Europa uma profecia e A canção de Los, e também o ciclo Os Livros de
Urizen, que são O livro de Urizen, O livro de Los e O livro de Ahania, estes
nos aparecem como épicos compactos que surgem como verdadeiros dramas de
caráter cósmico, com figuras divinas recompondo mitos cosmogônicos bem antigos,
e isto misturado às ambivalências do espírito e da própria sociedade organizada
humana, em que Urizen nos aparece como um deus da razão e da lógica, em combate
eterno com Orc, que é o deus das revoluções e da energia, ampliando a dicotomia
que vai dominar tal paisagem poética.
Portanto, se formos analisar a obra poética de William Blake,
temos que há um contraste que divide tal poesia em duas fases ou frentes
distintas, e que tem o livro do Matrimônio como esta primeira fase, em
contraste com a segunda fase dos dois conjuntos posteriores. Uma vez que
Matrimônio tem a pretensão de realizar na poesia uma promessa ou ainda um
legado que podemos entender como uma espécie de Bíblia Profana ou Infernal, que
pode estar associada diretamente com os dois ciclos de poemas proféticos, e
talvez o ponto de intersecção entre estas duas fases distintas do trabalho
poético de William Blake esteja no poema que encerra o livro Matrimônio, que é o
Uma canção de liberdade.
Ao passo que o livro Matrimônio revela uma visão em que o
próprio Blake participa como testemunha dos eventos narrados, e que é,
portanto, uma visão pessoal e individual do poeta-pintor de tudo o que é
descrito e narrado, no poema da Canção já existe uma amplitude que envolve
outros fatores mais impessoais como processos revolucionários, que vão do campo
mental para o mais concreto dos conflitos de caráter político e social. Então
temos, por sua vez, que toda a jornada bem pessoal de Blake por todo o livro do
Matrimônio é dada sob a influência de Virgílio, Dante e Milton, e que são
apropriados numa releitura criativa, na qual aparece o próprio Blake fazendo a
sua jornada pelo inferno, como um novo Dante, e que estende uma narrativa em
que aparecerão anjos, demônios e até os profetas judaicos. Tal fenômeno
pessoal, por sua vez, não terá espaço no poema final Uma canção de liberdade.
Matrimônio nos fornece num primeiro momento as questões
teológicas e literárias que cercam a reflexão e a poesia de William Blake, como
a sua relação com o místico Swedenborg, e com o emblemático poeta John Milton,
e isso num esforço para erigir a concepção de uma religião organizada,
inspiração e temática que não aparecerá nos livros posteriores, e que voltará
somente nos épicos Milton (1805) e Jerusalém (1820), que são, por sua vez,
relatos de experiências espirituais e não mais narrativas político-visionárias,
estas que serão o espírito que dominará os ciclos continentais e os Livros de
Urizen, tal relação que temos, portanto, em América, Europa e A canção de Los. Então,
o poeta-pintor parte da influência de Swedenborg e Milton, numa lírica
individual, para alcançar a seguir um caráter mais épico e coletivo, num dom
visionário, e que representa, ao fim, a emancipação espiritual de William Blake
em relação às ideias de Swedenborg, que impregnavam tematicamente toda a
feitura poética do Matrimônio do céu e do inferno.
O LIVRO DE URIZEN
Urizen simboliza o profundo engano que, segundo Blake, está
contido na concepção dualista, e que é a completa incompreensão da eterna
unidade dos contrários, tal que separa o homem do cosmos, e O Livro de Urizen
descreve este antagonismo fundamental, e que é a oposição entre Urizen e os
Eternos, que representam o fluxo universal e as forças cósmicas da natureza.
Como a ideia de limite, pois Urizen é uma palavra que deriva de “Nossa Razão”,
Urizen simboliza o pensamento racionalista, e que pela lógica confina e atrofia
os sentidos humanos.
William Blake então nos guia nestes firmamentos erráticos da
poesia e da vidência, tentando retirar o homem de tal confinamento e lhe
devolver as portas da percepção, O Livro de Urizen que, por fim, vai
influenciar Arthur Rimbaud em sua “Vênus Anadiómena”, este que também era um
poeta-vidente.
POEMAS:
PRELÚDIO : O poema de abertura é bem curto, mas
já evoca o poder restaurador dos Eternos, e o poema vem: “Do poder assumido
pelo primordial Sacerdote/Quando os Eternos denegriram sua religião/Relegando-lhe
um lugar ao norte,/Obscuro, sombrio, ermo e solitário./Eternos! Alegre escuto
vosso chamado/Dizei palavras de velozes asas & não temeis/Revelar vossas
sombrias visões de tormento.”. Aqui temos uma revelação que aponta para um
retorno do homem ao cosmos, como uma unidade e não mais como uma dualidade
cindida pelo pensamento racional e lógico.
CAPÍTULO I : E a treva nos aparece, e se chama
Urizen: “1 . Olhe! Voraz a treva irrompe/Terrível sobre a Eternidade!” (...) “Que
Demônio teria engendrado este ermo,/Este vácuo que arrepia as almas?/Alguns
responderam:/“É Urizen”, arredio e retirado,/Secretamente tramando o tenebroso
poder.”. E segue: “2 . Os tempos dividiu & mensurou/Espaço por espaço em
suas sombrias trevas,/Oculto e invisível; surgiram as mutações”. Sua ação
divisora reparte toda a realidade, divide tudo segundo a razão e separa o homem
de sua fonte primeva, e seu labor tenebroso prossegue, no que Blake nos
descreve a sua ação, assim: “4 . Sombrio, rodopiava em silente labor :/Oculto
nos tormentos das paixões;/Uma ação desconhecida e assustadora,/Uma sombra que
se autocontempla/Empenhada num feérico esforço.”. Sim, um esforço descomunal,
trevoso, e os Eternos então aparecem, no que segue: “5 . Os Eternos
vislumbraram suas vastas florestas;/Era após era permaneceu só e desconhecido,/Meditando
cativo do abismo;” (...) “6 . E o Sinistro Urizen, em silêncio/Seus pérfidos
horrores engendrou.”. Urizen engendra tal divisão, e o pomo da discórdia se
instala para um pensamento místico que busca a união que um dia existiu, unidade
que Blake busca nos Eternos e na sua ação restauradora.
CAPÍTULO II : O poema aparece como uma nova
descrição, em versão poética, do Gênesis: “1 . A terra não existia nem as
esferas de atração./A vontade do criador expandiu/Ou contraiu seus elásticos sentidos./Não
havia morte; emanava a vida eterna.”. E começa a ação tenebrosa, mais uma vez, e
tocam as trombetas, eis: “2 . O troar da trombeta despertou os céus/E as vastas
nuvens de sangue rondaram/Os sombrios penhascos de Urizen.” (...) “3 . Estride
o som da trombeta; & miríades da Eternidade/Engendraram-se ao redor dos
desolados desertos/Repletos de nuvens, trevas & torrentes” (...) “4 . Das
profundezas da sombria solidão,/Eterna morada de minha beatitude,/Retirado em
austeras meditações,/reservadas para os dias vindouros,/Procurei o júbilo
indolor,/O sólido não flutuante./Por que pereceis, Ó Eternos!/Por que viveis
entre as inextinguíveis flamas?”. As meditações de Blake buscam mais uma vez
esta união mística, a restauração dos sentidos na eternidade, na sua faculdade
infinita original, as portas da percepção, no que então contra Urizen, mais uma
vez Blake clama aos Eternos, e o poema segue: “5 . Primeiro lutei com o fogo.
Consumia/Minhas entranhas num mundo insondável/Imenso vazio, escuro, extenso
& profundo/Onde nada se encontrava: Útero da Natureza;” (...) “Impiedoso
rechacei/As grandes ondas e erigi sobre as águas/A pétrea obstrução de um vasto
Universo.” (...) “6 . Solitário, aqui registro em livros de metal/Os segredos
da sabedoria,/Os segredos da velada contemplação./E os combates em terríveis
conflitos/Contra os monstros gerados pelo pecado,/Que residem no peito de
todos,/Os sete pecados capitais mortais da alma.”. Os livros de metal de Blake
são então o registro, ou melhor, o testemunho de uma luta originária contra o
dualismo, contra o embuste da separação dos contrários, a união mística, um dia
contemplada, como num sonho platônico, aqui vira uma descrição de proporção
épica, com um drama de caráter cósmico e visionário, no que o poema segue: “7 .
Olhe! Desvelo minha treva e sobre/Esta pedra deposito firmemente o Livro/De
eterno bronze escrito em minha solidão:” (...) “8 . “Leis de paz, afeto e
unidade,/Piedade, compaixão e perdão./Deixai que cada qual escolha sua morada,/Seu
palácio infinito e ancestral,/Só uma ordem, um júbilo, um desejo/Uma maldição,
um peso, uma medida,/Um Rei, um Deus e uma Lei.””. O tom místico aqui ganha
caráter profético, doutrinário, como tábua de leis, e uma unidade restaurada
tem este dom visionário confirmado, visão do eterno, origem e fim de tudo, o
mundo remido e restaurado. Religião organizada na sua origem espiritual, com a
visão espiritual direta de Blake que nos proporciona estas delícias da poesia e
da vidência.
CAPÍTULO IV. a : O poema é uma descrição de todas as
eras, e estas funcionam em todo o poema como um estribilho mágico que reforça a
mensagem, no que temos: “1 . Eras e eras e eras se passaram/Sobre seu pétreo
sono,/Como um caos obscuro e mutável,” (...) “Eras e eras se passaram entre
terríveis/Tormentos; a seu redor em redemoinhos/De trevas, uivava o Eterno
Profeta,”. E nos aparece o divisor terrível, Urizen: “2 . E Urizen (Este é o
seu eterno nome)/Mais e mais velou o seu prolífico deleite,/Num escuro segredo,
Ocultando suas fantasias/Nos sulfurosos vapores./O Eterno Profeta então inflou
seus negros foles/E trabalhando com tenazes e martelos/Forjou novas & novas
cadeias,/Numerando com elos as Horas, Dias & Anos.”. Tal divisão do tempo,
e que prossegue em duro labor: “3 . Cativo, o espírito Eterno engendrou/Redemoinhos
incessantes de ira,” (...) “4 . Esquecimento. Necessidade, Silêncio!/Encarcerados
nas masmorras do espírito,/Contraindo-se como correntes de ferro,/Caóticos e
desgarrados da Eternidade./Los tentou romper os grilhões/E aquecendo suas forjas
escorreu/Suores de ferro & latão.”. Los luta contra este domínio dos
sentidos, este fechamento da percepção, no que segue: “5 . Incansável, fremia o
imortal prisioneiro,/Esvaindo-se em dores lancinantes,/Quando uma cúpula
selvagem e áspera/Conteve a fonte de seu pensamento.” (...) “6 . Num sono
insondável, repleto de pesadelos,/Qual cadeia infernal,/Retorcia-se uma
gigantesca Coluna Dorsal,” (...) “E assim se passou a primeira Era,/E o sombrio
estado de infortúnio.” (...) “7 . Das grutas de sua Coluna/Precipitou-se
apavorado, caindo ao fundo/De um globo purpúreo e incandescente,/No vertiginoso
Abismo;/Esférico, Trêmulo & Palpitante,/Expelindo dez milhares de fibras/Ao
redor de sua compacta ossatura./E assim se passou a segunda Era,”. E a tortura
de Los se aprofunda, o universo dividido faz com que sua ossatura se retorça, e
agora lhe domina as fibras, seu cérebro, e os olhos contemplam tal abismo
aberto por Urizen, no que temos: “8 . Tomado pelo pavor, atormentado,/Seu
cérebro irritado arrojou fibras/Que envolveram as fibras de seu coração,/E no
interior das minúsculas cavidades;/Ocultos cuidadosamente dos ventos,/Seus
Olhos contemplaram os abismos./E assim se passou a terceira Era,” (...) “9 .
Começaram os tormentos da esperança./Lutavam arduamente contra as dores,/Duas
Orelhas de cerradas volutas,/E sob as suas órbitas da visão,/Em espiral
abriam-se, petrificando-se/ao crescer. E assim se passou a quarta Era,” (...) “10
. Abatidas pelos terríveis males;/Duas narinas inclinaram-se às profundezas/Suspensas
na brisa/E assim se passou a quinta Era,”. Todo seu corpo é retorcido pelos
limites deste Urizen lógico e racional, divisor do mundo e do tempo: “11 .
Padecendo a terrível moléstia,/Escavava-se no fulcro de suas costelas,/Uma
Gruta esférica & Ávida/De onde erguia-se o canal de sua Garganta,/E qual
purpúrea flama, uma língua/Sedenta e faminta projetava-se./E assim se passou a
sexta Era,” (...) “12 . Colérico & sufocado entre tormentos,/Arrojou ao
norte seu Braço direito,/E ao sul o esquerdo,/Imerso em intensa angústia,/Seus
Pés sulcaram os Vértices Abissais,/Uivantes, Trepidantes & Aterradores./E
assim se passou a sétima Era,/E o sombrio estado de infortúnio.”. O estribilho
das eras é a descrição da aflição de Los e sua luta que o oprime contra Urizen,
este que, todo poderoso, limita o espaço e o tempo e atinge o corpo inteiro de
Los como numa trituração, e que é também a angústia dos sentidos embaçados da
finitude, a neblina que cerca a percepção humana neste universo degenerado por
Urizen.
CAPÍTULO VIII : A viagem de Urizen continua, e o
poema nos descreve seu périplo: “1 . Urizen sondou suas grutas,/Montes,
pântanos & desertos,/Alumiando com um globo de fogo./A viagem terrível e
atormentado/Por cruéis atrocidades & formas/De vida em suas desoladas cordilheiras.”
(...) “2 . Seu mundo gerava contínuas aberrações;/Bizarras, incrédulas e
aduladoras/Fragmentos de vida, miragens/De pés, mãos ou cabeças,/De corações ou
olhos. Pérfidos terrores,/Rondavam deliciando-se no sangue.” (...) “3 . E
Urizen, enojado, viu eclodir/Nas montanhas, suas eternas criações,/Filhos &
filhas do pesar/Em prantos! Primeiro Thirel apareceu,/Surpreso com sua própria
existência,/Qual ser surgido da nuvem & Utha,/Das águas arfante emergiu./Godna
rasgou a face da terra gritando” (...) “Então Fuzon/Irrompeu rápido como a
flama”. E Urizen tem seus filhos, engendra então Blake uma mitologia sui
generis, uma visão cósmica com pretensões visionárias, no que o poema segue: “Da
mesma forma que seus filhos eternos,/Suas filhas nasceram das verdejantes
ervas,/Do gado, monstros & vermes abissais.” (...) “4 . Prisioneiro das
trevas, sua raça observou,/E sua alma adoeceu; Amaldiçoou/Seus filhos &
filhas pois constatou/Que nem a Carne ou o Espírito seguiam,/Por um instante
sequer, suas férreas leis.” (...) “5 . Pois notou que a vida nutria-se de
morte:” (...) “E o céu qual cárcere dividindo,/Por onde os passos de Urizen/Caminharam
sobre as tristes cidades;”. A presença da morte mora na finitude, e o mundo
degenera nesses elementos de carne, o pecado reina soberano, e a teia surge do
pranto de Urizen: “7 . Até que a Teia fria & escura alastrou-se/Enredando
os tormentados elementos,/Surgidos do pranto de Urizen;” (...) “Bem amarrados
estavam os fios,/Bem entrelaçadas as tramas,/Tecidas como se fossem feitas/Para
o cérebro dos homens.” (...) “9 . E todos a chamaram:/“Rede da Religião”.”. A
trama de Urizen parece tão perfeita que ergue a rede religiosa, a teia de sua
lógica é convincente, e domina o mundo, e tal domínio agora se chama a Rede da
Religião.
POEMAS:
PRELÚDIO
Do poder assumido pelo primordial Sacerdote
Quando os Eternos denegriram sua religião
Relegando-lhe um lugar ao norte,
Obscuro, sombrio, ermo e solitário.
Eternos! Alegre escuto vosso chamado
Dizei palavras de velozes asas & não temeis
Revelar vossas sombrias visões de tormento.
CAPÍTULO I
1 . Olhe! Voraz a treva irrompe
Terrível sobre a Eternidade!
Estranha, estéril, escura & execrável;
Que Demônio teria engendrado este ermo,
Este vácuo que arrepia as almas?
Alguns responderam:
“É Urizen”, arredio e retirado,
Secretamente tramando o tenebroso poder.
2 . Os tempos dividiu & mensurou
Espaço por espaço em suas sombrias trevas,
Oculto e invisível; surgiram as mutações
Qual montanhas furiosamente fustigadas
Pelas negras rajadas da perturbação.
3 . Pois lutara em sangrentas batalhas,
Sinistros conflitos com formas
Surgidas de seu desolado deserto
De animal, ave, peixe, serpente & elemento,
Combustão, explosão, vapor e nuvem.
4 . Sombrio, rodopiava em silente labor :
Oculto nos tormentos das paixões;
Uma ação desconhecida e assustadora,
Uma sombra que se autocontempla
Empenhada num feérico esforço.
5 . Os Eternos vislumbraram suas vastas florestas;
Era após era permaneceu só e desconhecido,
Meditando cativo do abismo; Todos evitam
O caos pétreo e infindável.
6 . E o Sinistro Urizen, em silêncio
Seus pérfidos horrores engendrou.
Seus dez milhões de trovões
Disseminam-se em assustadoras formações
Através do tenebroso mundo & o ruído das rodas
Como furiosos mares ressoa nas nuvens,
Nas alvas colinas e nas montanhas
De granizo & gelo: Vozes de terror
reverberam tal trovões de outono.
Enquanto as nuvens se inflamaram sobre a ceifa.
CAPÍTULO II
1 . A terra não existia nem as esferas de atração.
A vontade do criador expandiu
Ou contraiu seus elásticos sentidos.
Não havia morte; emanava a vida eterna.
2 . O troar da trombeta despertou os céus
E as vastas nuvens de sangue rondaram
Os sombrios penhascos de Urizen. O assim chamado
Aquele eremita na Imensidão.
3 . Estride o som da trombeta; & miríades da Eternidade
Engendraram-se ao redor dos desolados desertos
Repletos de nuvens, trevas & torrentes
Que turvas turbulentas escorrem & declamam
Palavras que como trovões retroam
Sobre os cimos das altas cordilheiras.
4 . Das profundezas da sombria solidão,
Eterna morada de minha beatitude,
Retirado em austeras meditações,
reservadas para os dias vindouros,
Procurei o júbilo indolor,
O sólido não flutuante.
Por que pereceis, Ó Eternos!
Por que viveis entre as inextinguíveis flamas?
5 . Primeiro lutei com o fogo. Consumia
Minhas entranhas num mundo insondável
Imenso vazio, escuro, extenso & profundo
Onde nada se encontrava: Útero da Natureza;
No prumo, estendia-me ereto sobre o ermo
Solitário e impiedoso imobilizava os ventos;
Inclementes; Os condensando em torrentes,
Eles se precipitavam. Impiedoso rechacei
As grandes ondas e erigi sobre as águas
A pétrea obstrução de um vasto Universo.
6 . Solitário, aqui registro em livros de metal
Os segredos da sabedoria,
Os segredos da velada contemplação.
E os combates em terríveis conflitos
Contra os monstros gerados pelo pecado,
Que residem no peito de todos,
Os sete pecados capitais mortais da alma.
7 . Olhe! Desvelo minha treva e sobre
Esta pedra deposito firmemente o Livro
De eterno bronze escrito em minha solidão:
8 . “Leis de paz, afeto e unidade,
Piedade, compaixão e perdão.
Deixai que cada qual escolha sua morada,
Seu palácio infinito e ancestral,
Só uma ordem, um júbilo, um desejo
Uma maldição, um peso, uma medida,
Um Rei, um Deus e uma Lei.”
CAPÍTULO IV. a
1 . Eras e eras e eras se passaram
Sobre seu pétreo sono,
Como um caos obscuro e mutável,
Estraçalhado por terremotos, vomitando
[ardentes flamas:
Eras e eras se passaram entre terríveis
Tormentos; a seu redor em redemoinhos
De trevas, uivava o Eterno Profeta,
Martelando tenazmente seus férreos crivos,
Derramando suores de ferro; repartia
A noite horrível em vigílias.
2 . E Urizen (Este é o seu eterno nome)
Mais e mais velou o seu prolífico deleite,
Num escuro segredo, Ocultando suas fantasias
Nos sulfurosos vapores.
O Eterno Profeta então inflou seus negros foles
E trabalhando com tenazes e martelos
Forjou novas & novas cadeias,
Numerando com elos as Horas, Dias & Anos.
3 . Cativo, o espírito Eterno engendrou
Redemoinhos incessantes de ira,
E a espuma sulfurosa, espessa e escura
Condensou-se num lago claro & cristalino,
Alvo como as neves dos gélidos cimos.
4 . Esquecimento. Necessidade, Silêncio!
Encarcerados nas masmorras do espírito,
Contraindo-se como correntes de ferro,
Caóticos e desgarrados da Eternidade.
Los tentou romper os grilhões
E aquecendo suas forjas escorreu
Suores de ferro & latão.
5 . Incansável, fremia o imortal prisioneiro,
Esvaindo-se em dores lancinantes,
Quando uma cúpula selvagem e áspera
Conteve a fonte de seu pensamento.
6 . Num sono insondável, repleto de pesadelos,
Qual cadeia infernal,
Retorcia-se uma gigantesca Coluna Dorsal,
Arrojando aos ventos as costelas
Dolorosas como côncavas cavernas;
Seus ossos então gélidos enrijeceram-se
Encobrindo os nervos do prazer.
E assim se passou a primeira Era,
E o sombrio estado de infortúnio.
7 . Das grutas de sua Coluna
Precipitou-se apavorado, caindo ao fundo
De um globo purpúreo e incandescente,
No vertiginoso Abismo;
Esférico, Trêmulo & Palpitante,
Expelindo dez milhares de fibras
Ao redor de sua compacta ossatura.
E assim se passou a segunda Era,
E o sombrio estado de infortúnio.
8 . Tomado pelo pavor, atormentado,
Seu cérebro irritado arrojou fibras
Que envolveram as fibras de seu coração,
E no interior das minúsculas cavidades;
Ocultos cuidadosamente dos ventos,
Seus Olhos contemplaram os abismos.
E assim se passou a terceira Era,
E o sombrio estado de infortúnio.
9 . Começaram os tormentos da esperança.
Lutavam arduamente contra as dores,
Duas Orelhas de cerradas volutas,
E sob as suas órbitas da visão,
Em espiral abriam-se, petrificando-se
ao crescer. E assim se passou a quarta Era,
E o sombrio estado de infortúnio.
10 . Abatidas pelos terríveis males;
Duas narinas inclinaram-se às profundezas
Suspensas na brisa
E assim se passou a quinta Era,
E o sombrio estado de infortúnio.
11 . Padecendo a terrível moléstia,
Escavava-se no fulcro de suas costelas,
Uma Gruta esférica & Ávida
De onde erguia-se o canal de sua Garganta,
E qual purpúrea flama, uma língua
Sedenta e faminta projetava-se.
E assim se passou a sexta Era,
E o sombrio estado de infortúnio.
12 . Colérico & sufocado entre tormentos,
Arrojou ao norte seu Braço direito,
E ao sul o esquerdo,
Imerso em intensa angústia,
Seus Pés sulcaram os Vértices Abissais,
Uivantes, Trepidantes & Aterradores.
E assim se passou a sétima Era,
E o sombrio estado de infortúnio.
CAPÍTULO VIII
1 . Urizen sondou suas grutas,
Montes, pântanos & desertos,
Alumiando com um globo de fogo.
A viagem terrível e atormentado
Por cruéis atrocidades & formas
De vida em suas desoladas cordilheiras.
2 . Seu mundo gerava contínuas aberrações;
Bizarras, incrédulas e aduladoras
Fragmentos de vida, miragens
De pés, mãos ou cabeças,
De corações ou olhos. Pérfidos terrores,
Rondavam deliciando-se no sangue.
3 . E Urizen, enojado, viu eclodir
Nas montanhas, suas eternas criações,
Filhos & filhas do pesar
Em prantos! Primeiro Thirel apareceu,
Surpreso com sua própria existência,
Qual ser surgido da nuvem & Utha,
Das águas arfante emergiu.
Godna rasgou a face da terra gritando
E seus imensos céus estilhaçaram-se
Como os solos sob o sol; Então Fuzon
Irrompeu rápido como a flama
Primeiro concebido e último a nascer.
Da mesma forma que seus filhos eternos,
Suas filhas nasceram das verdejantes ervas,
Do gado, monstros & vermes abissais.
4 . Prisioneiro das trevas, sua raça observou,
E sua alma adoeceu; Amaldiçoou
Seus filhos & filhas pois constatou
Que nem a Carne ou o Espírito seguiam,
Por um instante sequer, suas férreas leis.
5 . Pois notou que a vida nutria-se de morte:
O Boi geme no matadouro,
O Cão no frio umbral.
Em prantos chorou & isto denominou Piedade,
E suas lágrimas aos ventos espargiram-se.
6 . Gélido, errou pelos cimos de suas aldeias,
Entre prantos, dores & desilusões;
E por onde quer que vagasse,
Pelos estratos feéricos dos céus,
Uma sombra o perseguia,
Qual teia de aranha úmida e fria,
Saindo de sua alma cheia de mágoa,
E o céu qual cárcere dividindo,
Por onde os passos de Urizen
Caminharam sobre as tristes cidades;
7 . Até que a Teia fria & escura alastrou-se
Enredando os tormentados elementos,
Surgidos do pranto de Urizen;
Esta Rede era um Embrião de Mulher
E ninguém conseguia desatar a Teia,
Nem mesmo as flamejantes asas.
8 . Bem amarrados estavam os fios,
Bem entrelaçadas as tramas,
Tecidas como se fossem feitas
Para o cérebro dos homens.
9 . E todos a chamaram:
“Rede da Religião”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/34743/17/william-blake-o-livro-de-urizen-1974
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