“A palavra déjà vu
significa, literalmente, “já visto”. O termo foi primeiramente utilizado pelo
filósofo e metapsiquista francês Emile Boirac (1851-1917) no livro L`Avenir des
Sciences Psychique (O Futuro das Ciências Psíquicas).”
Lembrar ou ver de novo, eis que George tinha uma mania de
estudar tudo profundamente, mas não como um intelectual, ou um acadêmico, seu
conhecimento era muito mais uma coisa mundana, sensorial, ele tinha duas
namoradas e vivia às turras com as duas, e uma não sabia da outra. Sua mãe,
Helena, era psiquiatra de um instituto público, com tratamentos modernos de
novas medicações e de um novo modo de abordar a doença mental.
Helena já tinha estudado a fundo Jung, e toda esta ideia de
sincronicidade que muitas vezes virava uma obsessão sua por desvendar se as
coincidências eram obra de Deus, do Diabo, ou de um jogo cruel ou virtuoso do
que comumente chamamos de acaso. O pai de George era o Jorge, advogado que
tinha seu próprio escritório de advocacia, e que resolvia casos escabrosos,
também envolvendo coincidências estranhas, muitas vezes entre os diversos casos
que tinha enfrentado, e vencido dois terços e perdido outro terço, uma vez que,
longe da conciliação moderna, ele se via volta e meia com litígios
intermináveis, mas faturava cada vez mais com pro-labore e honorários.
Os estudos sobre sincronicidade de Helena eram testados na
prática com seus pacientes, e ela começava a identificar uma continuidade entre
os casos de doença mental, o que ia da sincronicidade como uma manifestação
quase racional do que Jung chamava de inconsciente coletivo, pois padrões se
repetiam, e numa maneira herdada de Nise da Silveira, Helena começava a
perceber nos trabalhos de arte de seus pacientes um padrão que muitas vezes se
repetia, o aleatório e o acaso se tornavam cada vez mais insuficientes e
subvertidos empiricamente com o que ela via como arte psíquica, em que os
pacientes, longe de serem indiferentes, como é comum entender dos loucos, eles
tinham o inconsciente aflorado de tal maneira que o ego se dissipava e se
despersonalizava, mas o padrão resistia ali, naqueles trabalhos de escultura e
de pintura, intactos, como se houvesse uma essência desconhecida atuando
coletivamente, desde os poros da pele, até aos fundos da psiquê. A alma, se
Helena poderia assim chamar, tinha uma possível estrutura regular, e esta se
manifestava com maior contundência e evidência na arte.
George também tinha uma irmã mais nova, também filha de Jorge
e Helena, que se chamava Lorena, e que seguia os passos da mãe, fazendo uma
faculdade de psicologia, mas seguindo já a linha lacaniana, de maior entrada no
mundo acadêmico atual, e que fascina tanto Lorena, que ela tenta dissuadir a
mãe Helena de suas teses espirituais e místicas do orientalismo junguiano. As
duas se dão muito bem, George, no entanto, é uma presença espectral no meio familiar,
mas uma bomba em expansão no meio de seus amigos. George está inserido no caso
de boêmia e dissipação, apesar de ter passado num concurso público para técnico
judiciário no tribunal regional eleitoral, depois de muito sacrifício, pois
nunca quis fazer faculdade, ele era prático, apesar da vida desregrada, pois
ele sabia separar a hora do trabalho da hora da bebida, o que, no entanto, ele
consumia com cada vez mais frequência, agora diariamente, de preferência
cerveja, sempre com os amigos, e sempre balançando num esquema temerário de
gerir as duas namoradas que, por sua vez, eram duas personalidades
completamente opostas, Bruna, com um caráter trabalhador e de classe média
baixa, e Sayonara, rica e sem trabalhar, recebendo uma mesada polpuda do pai
enquanto faz faculdade de moda.
No entanto, George tinha uma obsessão particular, uma menina
que tinha conhecido na infância, aos cinco anos, que era de sua mesma classe,
Leila, que ele sempre tentou imaginar com que aspecto estaria na vida adulta, o
que estava fazendo, o que sabia da vida, quais eram seus sonhos, se estava
casada, se tinha filhos, se era solteira, se era religiosa ou ateísta, se tinha
ido para o convento ou se até tinha morrido. George tinha esta monomania, de
forma controlada, mas era um de seus planos reencontrar aquela menina que tanto
havia lhe fascinado a vida infantil. Leila era o seu enigma favorito e de
estimação, e ele sabia, na sua intuição, que algo ainda poderia acontecer nesta
ligação quase mística, pois se divertia com Bruna, e muito, e saboreava os
devaneios de Sayonara, mas ainda se sentia incompleto, seu trabalho de técnico
judiciário lhe dava um salário que ele gastava tudo em bebida e festas, pois
ainda estava na casa dos pais, e Helena preferia que ele estivesse perto mesmo,
pois sabia das tendências de boêmia do filho, igual ao pai Jorge, mas este, por
sua vez, reunia seus amigos em casa regado a uísque escocês ou um bom vinho
francês, português ou chileno.
Helena, por sua vez, estava prestes a se tornar a diretora
geral do instituto psiquiátrico em que trabalhava, e tinha, dentre vários casos
de doença mental que estudava, alguns com peculiaridades extremas: um era de
Carlos Henrique, um refratário contumaz das medicações, e que tinha na pintura
e na escultura sua válvula de escape daquele mundo fechado em que vivia desde
os 19 anos, estava no instituto já há cinco anos, e a família o havia
abandonado, portanto, ele passou a preferir ficar dentro do quarto no qual ele
estava hospedado no instituto, pintando, esculpindo e até costurando, pois os
instrumentos cortantes eram esterilizados e utilizados pelos internos sob a
vigília dos enfermeiros, os quais recolhiam tais instrumentos quando tocava o
sinal de que era hora do refeitório ou de dormir. Carlos Henrique chamou a
atenção de Helena por uma doce obsessão, os padrões em espiral e os olhos
lacrimejantes nas pinturas, mesmo que o próprio Carlos Henrique não chorasse
nunca, pois tinha sofrido um impacto emocional inicial quando entrou no
instituto, e depois disso ficou com o afeto aplainado talvez para sempre, mas
paradoxalmente tal afeto explodia na forma expressionista de suas pinturas, com
cores vivas e símbolos perturbadores.
Helena se aprofundou no estudo de Carlos Henrique e
descobriu, nas entrevistas que fazia com ele, que havia histórias mal contadas
por trás daquelas aparentes alucinações, pois ele se referia a pessoas do seu
convívio que não apareciam no seu prontuário, na anamnese que teve a
participação da família, ele falava de dois amigos gêmeos, que eram denominados
por apelidos: Panda e Duda. Ele dizia que os dois tinham sido seus amigos de infância
e que apareciam em seus sonhos quando dormia e que os mesmos o orientava através de seus ouvidos quando ele pintava, Panda no ouvido direito e Duda no
esquerdo, e que os dois também apareciam em forma espectral com foices e caras
pintadas de caveira quando ele surtava novamente. Carlos Henrique dizia que
eles diziam quase sempre as mesmas coisas o tempo todo, tais como “pinte com
alma” ou ainda “faça esta escultura antes de morrer”. Duda era mais espevitado,
Panda o mais calmo, e Helena encarava aquilo tanto como amigos imaginários, o
que está na anamnese bem definido clinicamente, embora se abrisse para a “realidade”
daquele relato, meio que suspendendo o próprio juízo.
Jorge, por sua vez, enfrentava um caso de disputa de guarda
de uma maior de idade que era declarada temporariamente incapaz, pois o casal a
havia internado, e que Jorge havia informado isto a Helena, pois a moça estava
no instituto em que Helena trabalhava há um ano. O casal estava separado desde
a internação da moça, eles se chamavam Roberto e Lílian, e a única filha do
casal se chamava Leila. Jorge encaminhou o casal para a terapia que Helena
oferecia aos familiares dos pacientes em seu instituto, mas a situação entre
Roberto e Lílian, que sempre fora o céu, se convertera no mais cruel inferno
desde a internação de Helena, pois um culpava o outro pelo fato, tanto como
educação dada e questões financeiras que passaram a assoberbar o ex-casal em
luta. Lílian estava com ganho de causa, mas Roberto recorreu, não havia
qualquer chance de acordo, e Jorge trabalhava de um lado com Roberto, e Helena
pedia a constante presença de Lílian no caso em que ela cuidava da filha dela, Leila.
George, enquanto isso, ainda sonhava com uma Leila da
infância, vai atrás de sua escola antiga para levantar os arquivos para saber
os sobrenomes da menina que tinha conhecido na infância, mas a escola tinha
falido e os arquivos só Deus sabia aonde estavam. Portanto, George só poderia
contar com uma sorte improvável de encontrar a tal Leila num lance do acaso, no
qual acreditava piamente, pois era um ateísta determinado, sua crença em
encontrar Leila contrastava com sua fé no acaso, que do aleatório das situações
também prega surpresas, boas e ruins. E a batalha do acaso agora de George era
entre as duas namoradas, pois queria terminar com aquela situação temerária de
mentir e dissimular o tempo todo, escolhendo uma das duas para ficar e terminar
com a outra, mas ainda estava dividido.
Levaria um mês até ele dizer tchau para Sayonara, que sempre
lhe parecera fútil, ao contrário de Bruna, que era pobre e batalhadora, trabalhando
em lojas sem parar. Quando isto ocorreu, Sayonara ficou revoltada, e George
disse a verdade e que estava já há um tempo com Bruna, no que Sayonara surtou
de raiva e começou a infernizar a vida de George, dizendo que ele era galinha e
difamando ele para seus conhecidos, o que foi um golpe na reputação de George,
até entre os próprios amigos. E também Sayonara começou a perseguir George,
ligando para o telefone dele a cada meia hora todos os dias, com ele às vezes
atendendo e brigando com ela, e muitas vezes atendendo e desligando na cara de
Sayonara, que no minuto seguinte ligava outra vez, e o inferno recomeçava. E
quando Sayonara cruzou com Bruna, ela avançou e tentou bater em Bruna, mas
apanhou feio dela, que já tinha feito judô na infância e era mais vivida que
Sayonara em todos os sentidos.
Helena passa a estudar também o caso de Leila, a qual era de
um caráter tão sui generis quanto ao que ela encarava com Carlos Henrique, pois
no instituto ela passou a pintar compulsivamente, sempre o rosto de meninos, às
vezes vermelhos, rosas, amarelos e verdes, espectros azuis muitas vezes, um sol
e uma lua, uma escola destruída, cenas dantescas de um menino cercado por
demônios, luzes que explodem como numa descrição lacaniana, e vozes que ela ouvia,
assim como Carlos Henrique. Leila, apesar de estar na ala feminina, conhece
Carlos Henrique no refeitório e se apaixona, mas tinha uma monomania estranha
de um tal menino que conhecera quando criança, cujo nome ela não se lembrava e
o apelidou de “gino”. Esta figura a acompanhava em seus desenhos constantes de
rostos de menino, todos com a mesma feição e os olhos faiscantes como os de um
surto psicótico. Carlos Henrique, por sua vez, apresentou suas “vozes” para
Leila, que também passou a ouvi-las, como numa sugestão, e se deu, com isso, algo
inédito e inusitado para a psicóloga Helena, que naquela semana se tornara,
então, diretora geral de saúde mental do instituto.
Jorge, que defendera Roberto no litígio, perdera a causa para
Lílian, que agora tinha a seus cuidados Leila, e ainda nutria a esperança de
que ela se recuperasse, pois muitas vezes Leila ficava completamente sóbria,
embora caísse logo em seguida em delírios renovados e cada vez mais extravagantes.
Leila, que dizia ouvir seu “gino” nas pinturas, nos sonhos e nos delírios,
julgava que ele voltaria, como num retorno triunfante de Jesus para salvá-la do
fogo do inferno. Jorge, por sua vez, sensibilizado com o caso, tinha decidido
dissuadir Roberto de sua guerra contra Lílian, decidira, portanto, perder
aquela causa de propósito, e a pedidos discretos de Helena, que sabia que Leila
tinha mais afinidade com a mãe, enquanto Roberto era frio e estava naquela briga
só pelo prazer da contenda, numa disputa mais contra Lílian do que a favor de
Leila.
George, por sua vez, agora decidira se apaixonar por Bruna,
mas era um sentimento postiço que era mais uma maneira de afastar Sayonara, que
vivia cada vez mais louca na sua perseguição e difamação implacável contra ele.
George agora só podia contar com o primo, Rodrigo, que ele convencera de tentar
dar uns pegas em Sayonara para ver se ela esqueceria aquela obsessão, mas tudo em
vão. Sayonara descobriu o acordo e tentou esfaquear Rodrigo e George numa
boate, no que foi contida e levada à delegacia, onde pagou uma fiança. E,
depois desse susto, ela resolvera dar um tempo de ir atrás dos telefones e da
casa de George. Na verdade, ela tinha feito um recuo estratégico, vendo um novo
modo de infernizá-lo e botá-lo na cadeia, num recalque contra Bruna e contra todos,
que da difamação inicial levada em conta, desta vez, depois do episódio da
boate, passaram a defender George de seus ataques. Neste momento, George e
Bruna entram de férias e vão para um balneário, já com George com um novo
número de celular para despistar Sayonara.
Leila, em uma semana, volta a ficar lúcida, e diz que “gino”
só mora na sua imaginação, em mais três semanas ela tem alta e passa a se tratar
em casa com medicação. Lílian fica com ela, e passa a sonhar que Leila agora
faria uma faculdade e iria trabalhar, mas era um ledo engano, pois Leila não
queria saber de nada, só em pintar e esculpir, no que Lílian colocou ela numa escola
de artes, só que um mês depois, em novo surto, Leila se vira revoltada em ser
doutrinada, de que era uma gênia incompreendida e que o mundo não a
reconhecera, e botava a culpa nos professores, que diziam que ela era muito
boa, mas era resistente ao ensino acadêmico, e que sua personalidade
intransigente poderia destruir o seu próprio esforço, depois disso, Leila passa
mais um mês no instituto, agora com a voz de “gino” dizendo que ele voltaria
para buscá-la para uma “grande viagem”.
Enquanto isso, Bruna e George voltam do balneário brigados,
pois George enchera a cara todos os dias o dia todo, e os dois terminam o
relacionamento, e George toma uma decisão temerária, pois vai procurar
Sayonara, que tenta arranhá-lo, mas, quando este diz que havia terminado com
Bruna, o agarra e beija. Os dois, Sayonara e George, agora estavam juntos de
novo. Bruna se sente aliviada, nunca mais fala com George, pois queria alguém
mais sóbrio para viver junto, e Sayonara tenta fazer intriga dizendo que Bruna
era má perdedora, mas era justamente o contrário, Bruna queria agora se ver
livre tanto de George quanto de Sayonara, pois para ela, neste momento, os
dois, com suas loucuras, se combinavam, e Bruna, em seu realismo de quem teve
que se virar a vida inteira, não via mais chance nenhuma de enfrentar sua
paixão por George, se o mesmo era uma esponja titânica que vivia absorvendo
álcool como se vivesse constantemente numa festa sem hora para terminar.
Sayonara, por sua vez, com George de volta, foi contar a novidade para todo
mundo, e as pessoas ficaram perplexas com os extremos dela de amor, indo para o
ódio, e voltando para o amor.
Nas conversas entre Leila e Carlos Henrique no refeitório do
instituto, os dois passam, novamente, a compartilhar as suas “vozes”, numa
contaminação mútua cheia de vibriões astrais, no jargão espírita, e que
Helena, que tinha lido algo sobre isso, decidiu não relatar o caso para os
demais psicólogos, e ainda tentou uma linha racional de relação com aquela
contaminação mútua, tentando dissuadi-los, finalmente, daquelas “vozes”, e não
mais alimentando as ilusões de ambos, pois as pinturas dos dois estavam ficando
parecidas, com exceção de que os rostos de menino de Leila ganhavam cada vez
mais nitidez, até que apareceu o rosto de um homem adulto, com os mesmos olhos
faiscantes de surto psicótico, tão comuns nos casos de contenção.
Agora, as espirais também apareciam em torno dos rostos, numa
mimética do estilo de pintura de Carlos Henrique, e “gino” agora dialogava com
os gêmeos Panda e Duda nas tintas visionárias de Leila. “Gino” ganhava
contornos e contextos, ele aparecia tanto como personagem, como companheiro dos
delírios românticos de Leila que, mesmo apaixonada por Carlos Henrique,
alimentava uma relação platônica com seu gino imaginário. E Helena dizia a
Lílian que Leila tinha grandes chances de se recuperar, que aquilo tudo era um
momento espontâneo, apesar do fundo biológico e químico envolvido, pois ela
sabia, de acordo com Jung, que a consciência, no seu todo, também não era
pertencente exclusivamente ao fundo biológico, e esta era sua esperança,
trabalhar a cosmovisão de Leila, ao passo que ela sabia que no caso de Carlos
Henrique, como refratário, isso era impossível e já era uma tese descartada
empiricamente. Quanto às “vozes” de Carlos Henrique, a dissuasão toda não lhe
retiraria as suas ilusões, mas poderia torná-lo um pouco mais funcional, pois,
mesmo sendo o melhor pintor e escultor do instituto, ele era um dos mais
disfuncionais do lugar, e os cuidados com ele eram sempre mais especiais e
específicos.
“Gino” ganhava vida, e Leila, mesmo se recuperando, voltando
novamente para a casa da mãe, decidiu, para não ser mal interpretada, guardar
agora aquele segredo, e começou a conversar com seu gino imaginário, como numa
dispersão necessária das novas cobranças de Lílian para ela sair de suas
ilusões e trabalhar para viver, que aquele papel de louquinha dela já estava
fora de contexto, e de que não iria mais aguentar seus rompantes e dissipações,
ela teria que tanto tomar a medicação diariamente como se tornar responsável
por suas atividades cotidianas, ainda que Lílian patrocinasse suas pinturas
expressionistas, com gino participando daquilo como um grande jogo e com Leila alimentando
seus sonhos da tal prometida “grande viagem”. O que poderia ser, na verdade,
uma premonição simbólica, e não algo literal, como poderia, porventura,
entender o senso comum, e Helena já sabia disso, e portanto, ficava tranquila,
e a própria já tinha orientado Lílian de botar pressão em Leila para ela não
mais se dispersar indefinidamente na vida.
Sayonara, agora, era só amores com George, e não havia um dia
em que ela não fosse para a casa dele, os telefonemas não eram mais tão
irritantes, pois agora ela estava segura de que seu território estava novamente
dominado, mas ainda ficava num recalque explícito em relação a Bruna, na mesma
situação de dizer que Bruna havia “perdido” a batalha, o que era mentira, pois
tinha sido Bruna a abandonar o barco, com balneário e tudo, na relação tortuosa
com George, no que Bruna, neste momento, já havia desligado a “chavinha”. E,
então, Sayonara tinha tal manha mais por sua personalidade e tendências
belicistas, pois a sua natureza era a do combate, ao passo que o combate de
Bruna era pela vida e não para brigar com as pessoas.
Na verdade, Bruna não estava mais nem aí, tanto para Sayonara
como para George, mas Sayonara dizia para todos que via que Bruna havia “perdido
a guerra”. Bruna, então, num dia que cruzou com Sayonara na rua, tentou fazer entender
que ela não tinha mais nada a ver com aquilo, que Sayonara já havia levado uma
coça dela, e que não era mais para difamá-la por aí, pois Sayonara, na verdade,
era uma criancinha mimada estudando corte e costura para ser madame. Bruna não
queria mais saber, e encerrou a conversa, mas, mesmo assim, Sayonara não se convenceu
dos argumentos de Bruna, e continuou a fazer saraivadas de críticas a sua
adversária, a esta altura uma contenda e uma adversária que só morava na sua
imaginação fértil e em seu ímpeto belicista.
Helena, por sua vez, tentava entender a origem de gino na
imaginação de Leila que, mesmo agora, com alta da internação, tinha
acompanhamento semanal, medicação e terapia, e Helena queria saber se aquilo
era mesmo algo de sua imaginação ou algo de sua infância, como ela dizia o
tempo todo. Não sabia por onde começar, propôs jogos para Leila, que se saiu
bem em todos, pois, apesar de Leila ser um tanto disfuncional, tinha uma
inteligência específica para algumas coisas, e Helena descobriu que ela adorava
jogos, além de pintura.
Helena não sabia ainda o que faria com aquilo, e resolveu
trabalhar de maneira cifrada com Leila naqueles jogos, com palavras chaves como
“rosto” e “espiral”, até propor a “busca da origem”, e nisto fez uma saraivada
de sugestões a Leila, todas relacionadas ao gino. Helena agora parecia começar
a saber que a infância de Leila era lúcida, o tal gino não poderia ser só uma
imaginação, tinha algo real e que era uma ferida biográfica de Leila, que
aflorava na pintura do rosto de menino. Ela propôs, então, a Leila, a desenhar
um rosto masculino adulto para compará-lo aos padrões do rosto de menino, para
ver se havia continuidade entre ambos, e na sua ideia fixa de sincronicidade,
ela tentou e conseguiu, pois os padrões eram iguais entre o menino e o adulto,
e portanto, havia um enigma que começava a ser desvendado naquelas pinturas
expressionistas de rostos, e então Helena propôs a Leila tentar desenhar e
pintar o gino com cabeça e corpo, no que suas suspeitas de realismo contra
imaginação se confirmaram, gino tinha sido um menino que Leila conhecera na
infância, pois a carga simbólica não poderia mais dar conta do fenômeno, era
uma fratura biográfica, com elementos que Helena agora sabia que eram reais, e
mais do que isso, ainda bem vivos na percepção de Leila.
George, por sua vez, começava a se sentir sufocado entre a
presença de Sayonara e sua infância de uma Leila que desaparecera para sempre. Sayonara,
numa noite, pegou George falando dormindo, e nesta conversa onírica ouviu o
nome Leila, e ela ficou apavorada e acordou George no susto perguntando quem
era aquela biscate de Leila, e George, ainda bêbado de sono, deu um esporro em
Sayonara, de que não tinha Leila, nenhuma, para Sayonara parar com aquilo, de
que ele não iria fugir dela, mas, no dia seguinte, George viajou sozinho e
passou a não atender novamente os telefonemas de Sayonara, que agora trocara
sua contenda com Bruna por uma Leila que ela acreditava piamente ser uma amante
de George.
Sayonara, no entanto, não sabia o paradeiro de George, e ele
estava novamente no mesmo balneário em que estivera com Bruna, e ele decidiu
ligar para Bruna pedindo desculpas, no que Bruna aceitou e disse para ele ser
feliz, mas que não mais a procurasse, pois estava sobrecarregada de trabalho, e
não queria mais saber de alcoólatras como ele. Bruna gostava de George, mas não
tinha mais paixão por ele, tinha se desligado completamente desta história, e
somente não queria mais ser importunada, e via Sayonara com pena e George com
compaixão, porém com desdém de quem tinha se livrado de um cara que trabalhava,
mas ainda assim permanecia num mundo ilusório de cerveja e festas.
George volta, procura Sayonara, e diz que estava tudo
terminado, e novamente disse que não havia nenhuma Leila. Porém, logo as coisas
iriam mudar, logo apareceria uma Leila, e era o que ele menos esperava, pois
seria numa situação inusitada, a qual mudaria a sua vida, talvez na confirmação
de uma ideia que ele perseguira. Neste ínterim, ele tem uns namoricos que não
vão para a frente, e uma sensação de pesar em relação a Bruna, que ele sabia
que era bem melhor do que ele, e torcia muito por ela, mesmo sabendo que Bruna
não precisava de ninguém, e que era uma pessoa safa e que conseguiria tudo na
vida. A tal Leila, que ele passou a sonhar em suas noites já na figura de uma
mulher adulta, com os mesmos padrões de sua versão criança, que era a memória
de George criança, tinha agora cada vez mais nitidez, aparecia com cabeça,
corpo e voz, e os dois conversavam quase todas as noites, fazendo com que
George, apesar de ateu e um crente do acaso, passar a entender aqueles sonhos
como premonitórios.
Foi então que, numa noite, em um bar, no meio de várias
garrafas de cerveja, com os amigos, que ele conhece uma Leila, e que tinha todo
o aspecto físico e voz do que ele vira em sonho, começa a entabular uma
conversa com a mesma, tentando identificar algo da sua infância, e que se ela
se lembrava de quando tinha cinco anos, no que esta Leila responde que sua
memória ia dos seis anos em diante, e começou a achar muito estranha aquela
curiosidade toda de George por ela, portanto, Leila não gostou da abordagem de
George, e ele percebeu que poderia ter encontrado a Leila de sua infância, só
que agora a liga desandara, poderia ser que ele estivesse enganado, que esta
Leila não era a mesma do seu sonho ou de sua infância, mas ele insistiu, e
depois de duas horas de conversa, começou a receber um gelo de Leila, que
desconversou e foi atrás de outras pessoas do bar, e naquela noite George ficou
intrigado se não tinha perdido a Leila verdadeira ou se tinha apenas se
enganado de Leila. Na verdade, ele não tinha sido competente na sua abordagem e
exagerara na sua curiosidade sobre uma pessoa que acabara de conhecer, e que
agora sabia que seria difícil de ver novamente ou que nunca mais veria, e bateu
um certo desespero, ele então passou a acreditar que os seus sonhos não tinham
sido premonitórios e que deveria a partir dali esquecer toda essa história, mas
não conseguiu, pois os sonhos persistiram, e o aspecto era parecido ainda com a
Leila real do bar, no que George ficou mais perturbado ainda, mas sabia que era
uma batalha perdida, a moça não tinha ido com a sua cara, definitivamente.
Enquanto isso, Helena prossegue na pesquisa de Carlos
Henrique e de Leila, e faz associações livres ao extremo para, no meio do caos,
encontrar padrões para confirmar a sincronicidade junguiana, tanto nas entrevistas
como nas pinturas de seus pacientes, e Leila volta a ficar obcecada por gino,
que ganha cada vez mais nitidez nas pinturas e nos desenhos, e não havia como
Helena encarar mais aquilo como imaginação, Leila havia tido um gino em sua
vida, e isso retornava como “voz” e como metáfora, Leila estava controlada,
tinha arrumado um emprego de faxineira, pois não tinha curso superior, e Lílian
teve o dia mais feliz de sua vida ao ver que Leila, apesar de suas estórias
malucas, estava se tornando finalmente funcional, não entrava mais em surto,
mas seu acompanhamento com Helena se tornava cada vez mais intricado.
Leila dizia que conhecia gino na palma de sua mão, que ele
era real, era o seu amiguinho de infância, e que teria a tal “grande viagem”
com ele. Leila via gino com cada vez mais realismo, até em suas pinturas sumiam
os tons expressionistas e simbólicos como as espirais, e o realismo e nitidez
dos traços evoluíam freneticamente, gino se tornara o centro daquela memória
que se expandia e se renovava, pois agora Helena já tinha a percepção de que
aquilo jamais poderia ser somente a imaginação de Leila, aquela atividade
psíquica era real, e fundada em alicerces firmes da percepção de Leila.
Enquanto isso, George procurava uma solução para o fora que
tinha recebido de Leila, ele tinha a sensação de que havia perdido a sua chance
de decifrar seu enigma, e que ficaria com aquela equação em aberto para sempre,
ele perdia as esperanças e ficou cada vez mais perdido, afundando na cerveja,
pois todo dia, depois de seu trabalho, bebia e virava as noites nos bares, num
périplo por encontrar novamente esta Leila do bar, e de ser menos impetuoso na
sua entrevista, e causar uma outra impressão na mesma. Pois demora três meses
até ele encontrar novamente a moça, que lhe dera um gelo, e desta vez ele foi
mais discreto, e desta vez Leila gostou dele e o convidou para seu aniversário
que seria na próxima semana, numa sexta, e ele vai na esperança de decifrar o
tal enigma, com uma alegria no coração que havia muito tempo ele não sentia. O
que ele não sabia, é que na rede de amigos do aniversário, também estariam
Sayonara e Bruna, já que o mundo é pequeno, do tamanho de uma noz.
Chega o dia do aniversário de Leila, George está ansioso, não
se contém de alegria, parecia para ele de que se tratava da Leila de sua
infância, e na noite, chegando na festa, dá logo de cara com Leila, a
aniversariante, com outro homem de mãos dadas, e ela apresenta aquele que seria
o seu futuro marido, e que também tinha o nome de George, no que o George que
imaginava sua Leila de infância fica desconcertado e seu mundo desaba em uma fração
de segundos. Ali, ele percebeu que o jogo estava perdido, e para um seu xará.
No entanto, pela recepção calorosa de Leila para ele, George
mantém a aparência impassível, mas estava com seu enigma para sempre perdido, e
começou a pensar se a Leila de infância não poderia ser a aniversariante, no
que encontra Sayonara se atracando com outro homem, e Bruna com seu namorado
novo, ele se vê sozinho e derrotado, bebe horrores na festa, mas não causa
escândalo, pois ele era um bebedor voraz, mas nunca fazia cenas ou chatices
comuns a bêbados contumazes. Pois agora ele sabia que teria que desencanar de
desvendar seu enigma, mas volta para casa, completamente bêbado, tem náuseas e
vomita, e quando dorme e sonha, tudo recomeça, Leila, a aniversariante, aparece
em seu sonho, que agora não era só premonitório como recorrente, ele acorda
pesado e desiludido e na segunda vai ao trabalho como um rebotalho que perdera
na festa todas as suas ilusões, não havia mais escapatória, ele teria de
arrumar um jeito de esquecer tudo aquilo, que a Leila não era a Leila, e que o
George da Leila que não era a Leila era outro George que não era ele.
Nesta semana, em que George estava se recuperando do tranco
com muito trabalho, Helena, sua mãe, se aprofundava também em seu enigma que
tinha também uma Leila como objeto e sujeito de ação, e agora com Helena
fazendo um trabalho primoroso de esclarecimento de Leila para que gino
terminasse a sua missão, de que a “grande viagem” de Leila com ele deveria ser
colocada de lado, que Leila deveria ter outro tema dominante em sua pintura. Helena
consegue, um pouco, com um fenômeno de Leila voltar a seu expressionismo
original e uma progressiva abstração, chegando às raias da loucura de uma
action painting de Jackson Pollock, só que com forma própria e original, e parecia
que naquele momento Helena conseguira dissuadir Leila de seu gino, a “voz”. No
entanto, gino volta meses depois, com mais força, e Leila é mais uma vez
internada, desta vez ela diz que gino aparece já adulto em seus sonhos, e diz
que “o leite de minha mãe está contigo”, no que Helena tenta interpretar tais
sonhos, mas não chega a nenhuma conclusão além da tese do sonho recorrente como
desejo sublimado, aplicando agora Freud ao invés de Jung, e tornando a questão
menos metafísica e mais prática, pois ela sabia que naquele momento deveria
reforçar seus ataques contra a presença de gino na percepção de Leila, em vão.
Leila entra em novo surto, no qual tem que ser contida, e começa a gritar: “Gino!
Gino! Gino!”.
George, por sua vez, agora enfrentava uma depressão branda,
como a velha melancolia, e agora, neste “spleen” poético, começava a beber
mais, sua degradação era progressiva, ele sabia que teria que procurar pelo fim
de seu enigma, dando um fim a ele bem no meio, sem chegar na linha de
conclusão. Ele liga para Bruna novamente, que não atende os telefonemas, faz o
mesmo com Sayonara, que atende, mas lhe dá um fora. Agora, ele tinha a Leila do
aniversário em seu sonho, mas não tinha contato com ela, e o outro George seria
o seu marido, ele leva então em conta a a percepção de que se esborrachara no
chão, de que deveria ser forte, e afogar as mágoas na bebida, ao mesmo tempo
dando um fim provisório a elas no trabalho.
Ele começa a ter o sonho recorrente de que vê Leila criança e
depois adulta, a aniversariante, e ela dá tchauzinho para ele e some numa nuvem
rosa, ele grita pelo nome dela, mas se vê afogando num rio também de aspecto
rosa, que, segundo alguns pretos velhos, é a cor do amor, ele se debate no
sonho, mas se afoga e acorda sempre suando frio, ele vai até sua mãe Helena e
conta que não está bem, mas não diz o porquê, tenta dissimular que estava
estressado, e Helena diz na lata que ele tinha que ir para uma clínica para
parar de beber, e ele faz isso, fica um mês na rehab, e sonha, sonha muito, com
a mesma Leila, no mesmo rio rosa, na mesma nuvem rosa, e numa certa manhã, num ataque
de sonambulismo, sai para o pátio da clínica gritando: Leila! Leila! Leila!
11/11/2016 Leite com Carne (livro de contos) – Gustavo Bastos
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