“o herói romântico tem a sua nêmesis plantada por si mesmo
ao, no prazer do amor, traduzi-lo em puro sofrimento”
INTRODUÇÃO
Para Goethe, o amor por Charlotte fora breve, mas
inspirou-lhe um romance, “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, publicado
anonimamente em 1774. A história de Werther comoveu uma geração inteira. A
juventude imitava o sôfrego personagem, vestindo calças amarelas e coletes
azuis, e suicidando-se por amor, como o herói. A infelicidade tomou os
corações, e o amor e a morte, temas da poesia, do teatro e da vida,
converteram-se no binômio mais corrente da época. Goethe ficou conhecido
internacionalmente como o “autor de Werther”, epíteto que o acompanhou durante
muitos anos, até ele se tornar o “autor de Fausto”.
“Os Sofrimentos do Jovem Werther” é um retrato perfeito da
era pré-romântica alemã na literatura e na arte, e que já era uma anunciação do
que viria a ser o manifesto artístico Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) que
era sobretudo o movimento literário que abriria o caminho para o que viria a
ser o romantismo alemão logo a seguir. Tal epíteto vinha da obra de Maximilian
von Klinger, Tempestade e Ímpeto, um drama, e que exprimiria de maneira exemplar
a nova mentalidade entre os jovens literatos alemães, os quais se libertariam
das amarras do classicismo reinante, sobretudo nas dimensões estanques do tempo
e do espaço do teatro, com um cheiro de liberdade criativa que teria amplitude
semelhante ao que fora, em tempos atrás, o teatro elisabetano.
ESTÓRIAS DE AMOR E DE
PAIXÃO
A estória de paixão, amor e decadência perpassam o ímpeto e
sofreguidão do jovem Werther ao ser acometido de um amor impossível por sua
adorada Carlota, percurso que começará no céu do amor novo e que logo cairá no
desespero final de um inferno que Werther cava com as próprias mãos ao se
obsedar por algo que já estava como ruína, ao ver que Carlota tinha um noivo.
Werther tinha uma amplitude intelectual, era, de certo modo,
um literato, lia muito Homero, cairia de amores por Ossian, mas seu amor fatal
seria Carlota, que o tinha por estima, mas que era aquela espécie brutal para
um apaixonado, a clássica relação fraternal em que o jovem vê nela sua atenção,
energia e vida inteiras, o impulso do amor eterno que, quando dá errado, é o
inferno eterno, e isto como disse se dá de maneira muito previsível, pois,
adivinhem, Carlota só poderia considerar Werther como a um irmão, ruína maior e
mais brutal do enamorado clássico, aqui no contexto pré-romântico alemão, mas
já podendo se dizer que Werther já era da cepa do herói romântico, vítima da
desdita, e feitor de sua própria tragédia.
No início do romance podemos ver que o jovem Werther ainda
carregava em si uma doce iluminação, o que levaria ao seu amor eterno, mas que
seria, por outro lado, tal iluminação a fonte de seu desespero. Posteriormente,
podemos ver nas suas primeiras cartas deste romance epistolar, no qual ele se
dirige ao seu amigo e irmão Wilhelm: “A vida humana não passa de um sonho.
(...) Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades
ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso labor visa apenas a
satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo
senão prolongar nossa mesquinha existência (...) Concentro-me e encontro um
mundo em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos
obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas.” Aqui Werther dá a sua imagem
de ser iluminado, quase extático, admirador da natureza, espírito romântico,
ainda de bem com a vida, mas já presente no seu conflito com os hábitos
humanos, natureza espiritual sem senso prático, como é comum aos iluminados, e
que de luz e céu constantes, ainda não sabia que flertava com o abismo.
O CÉU E O INFERNO
Tal céu de abismo podemos ver nas suas primeiras impressões
em relação ao seu novo amor, Carlota: “Sinto-me contente, feliz (...) É um
anjo! (...) é-me impossível dizer a você o quanto ela é perfeita (...) Só isto
basta: ela tomou conta de todo o meu ser. (...) (E a prima dela avisa) : _ Não
vá apaixonar-se. __ Por quê? __ Porque ela já está prometida a um belo rapaz.
Ele está de viagem, a fim de regularizar os seus negócios, pois acaba de perder
o pai. E também para arranjar um bom emprego.
E Werther apenas diz: Tudo isso deixou-me indiferente.
(Carlota era a moça). E prossegue: “Enquanto ela falava, como eu me deleitei em
fitar os seus olhos negros! Como toda a minha alma era atraída pelos seus
lábios cheios de vida, suas faces frescas e animadas! Quantas vezes, absorvido
em minha admiração pelo sentido das suas frases, sequer cheguei a ouvir as
palavras de que ela se servia!”. Aqui temos um Werther hipnotizado, sem senso
crítico, todo seu ardor, toda a sua alma, agora tinha uma ocupação
exclusivamente romântica, sua idealização de seu objeto de amor será a fonte de
sua felicidade inicial, mas que terá um preço, já anunciado na presença do
noivo de Carlota, o contido e sóbrio Alberto.
Numa dança, Werther já delira, simulando seu ciúme, com tais
ideias: “jurei a mim mesmo que, se amasse uma jovem e tivesse qualquer direito
sobre ela, preferia fazer-me matar a consentir que ela valsasse com outro”. E
Carlota se dirige a Werther: “Alberto, um belo rapaz, é meu noivo faz pouco
tempo.” E Werther volta-se ao seu interlocutor epistolar: “Meu caro Wilhelm,
arquitetei toda sorte de reflexões a respeito do desejo que o homem sente de
dilatar o seu horizonte, fazendo novas descobertas, errando a aventura e, além
disso, a respeito do sentimento que o leva a acomodar-se numa existência
limitada, e a caminhar com os antolhos do hábito”, e diz de Carlota: Ela me
censurou o interesse apaixonado que tomo por todas as coisas e que acabará –
disse – por me consumir!” De fato, um espírito demasiado impressionável como o
de Werther poderia ter um futuro brilhante ou um fim trágico, dependendo de sua
evolução, e do andar de sua natureza excessiva para um tipo de austeridade ou
pelo caminho oposto da autodestruição, em que seu excesso de ser curioso e
impressionável volta-se contra si mesmo como uma nêmesis pelo seu descuido dos
sentidos, isto é, a morte ou a loucura.
WERTHER E SUA OBSESSÃO
E a obsessão de Werther já era clara, todas as suas reflexões
refinadas tinham um endereço único, e o perigo já se avizinhava, como podemos
ver na continuação de suas cartas: “Ali estava sem outro pensamento que não
fosse para ela! (...) Não, meu coração não é assim tão corrompido! Ele é fraco,
sim, bem fraco! (...) Ela me é sagrada. Todo desejo emudece em sua presença.
Não sei o que sinto quando estou junto dela; é como se toda a minha alma
estivesse subvertida.”
E segue, diante da visão de sua musa: “Nada do que os antigos
contam sobre o poder sobrenatural da música me parece inverossímil. Como esse
pequeno canto toma conta de mim. E como ela sabe fazer-se ouvir a propósito,
sempre no momento em que me vem vontade de meter uma bala na cabeça! ... O
delírio e as trevas se dissipam na minha alma e respiro mais livremente.”
Nestes trechos já podemos ver os ecos sutis de seu fim trágico, de forma que
suas cartas já demonstram, nesta altura, seu pendor de coração fraco e
impressionável, mas que está num prazer quase místico na sua adoração de
Carlota como a uma deusa, ou melhor, como um anjo ao qual ele deve toda a sua
alma e devoção, sua natureza, como ele mesmo diz, está subvertida, e a música é
mais um pretexto para a sua idealização que ganha agora contornos visionários.
E segue o romance epistolar, e a febre de Werther só aumenta,
seu temperamento joga contra ele mesmo, e a presença de Alberto seria sua ruína
terrível: “Vou vê-la! Foi esta a minha primeira exclamação desta manhã, quando
me levantei e meus olhos procuraram alegremente o sol. Vou vê-la! E, durante o
dia inteiro, não tive outro desejo. Tudo, tudo foi absorvido por essa
perspectiva.” Dá para ver que Werther não tem mais outra ocupação para o seu
coração, sua vida prática, por sinal, passava por uma experiência de trabalho
com um embaixador, mas Werther pede exoneração depois de ser discriminado pela
alta sociedade.
E Alberto aparece como uma verdadeira senha que o infortunado
Werther era, àquela altura, incapaz de decifrar: “Todavia, não posso recusar
minha estima a Alberto. Sua calma exterior contrasta vivamente com o meu
caráter inquieto (...) Eis o que você me disse (dirigindo-se a Wilhelm): ‘Ou
você tem alguma esperança de obter Carlota, ou não tem. Assim, no primeiro
caso, faça todo o esforço para realizar essa esperança e chegar ao cumprimento
dos seus votos; no segundo, tome uma resolução viril, procurando livrar-se de
um sentimento funesto que consumirá inevitavelmente todas as suas forças’
WERTHER E SUA ARMADILHA
E segue Werther nas cartas, se enredando na sua própria teia:
“Não compreendo que outro a ame, que outro tenha o direito de amar essa
criatura, quando eu a amo, eu somente, de um amor tão ardente, tão completo!
Quando não conheço ninguém, não sei nada, não possuo outra coisa a não ser
Carlota! (...) Ai de mim! Que vazio horrível sinto em meu peito! Quantas vezes
digo a mim mesmo: Se você pudesse uma vez, ao menos uma vez, apertá-la contra o
coração, esse vazio seria preenchido. (...) Quantas vezes tenho vontade de
rasgar o peito e estourar o crânio vendo que somos tão pouca coisa uns para os
outros! Ah! O que trago em mim de amor, alegria, calor e embriaguez só de mim
depende, não me poderá ser dado por outrem, e o coração transbordando de
felicidade, não poderei fazer feliz esse outrem, se ele permanece frio e sem
força diante de mim. (...) Tenho-a toda em mim, e o sentimento que experimento
por ela absorve tudo. Tenho-a toda em mim, e sem ela tudo é para mim como se
não existisse.”
E Werther, aqui, cai na armadilha mais que conhecida de ser o
único no mundo capaz de amar Carlota como ele (por suposto) poderia amá-la, e a
senha principal do enamorado, de que ele queria fazê-la feliz, código
apaixonado que não reconhece, por estar com os sentidos comprometidos, de que o
egoísmo da felicidade sempre parte do apaixonado e não para o objeto da paixão,
no caso.
E já no final do
processo desta paixão de Werther, ele já não se sente tão bem como no começo,
já dá sinais de fadiga, e parte para o seu fim trágico: “sinto-me profundamente
infeliz. Oh! Se eu pudesse mudar de humor, entregar-me ao tempo, a isto ou
aquilo, ao insucesso de uma inciativa qualquer, ao menos o fardo dos meus
aborrecimentos não pesaria tanto. Que desgraçado que sou! Sinto-me
perfeitamente o único culpado”. Werther não tem mais tempo para outra coisa, e
talvez esta sua obsessão lhe roubara o tempo útil em que ele poderia, como a
própria Carlota advertiu, por exemplo, de buscar outra moça para os seus
préstimos românticos. O que não ocorreria neste romance de Goethe, cujo final
deixo em aberto, mas que já deve estar subentendido pelo leitor.
TRAGÉDIA
Werther entra então em sua filosofia do desespero: “Não, não
sou culpado, mas é em mim que está a fonte de todos os meus males, como outrora
a fonte de toda a minha felicidade. Não serei mais o homem que então nadava num
mar de rosas, e a cada passo via surgir um paraíso, e cujo amor era capaz de
abranger o mundo inteiro? Mas o coração que assim pulsava está morto, não
produz mais os arrebatamentos de outros tempos; (...) Como a sua imagem me
persegue! Quer vele, quer sonhe, ela enche a minha alma inteira!” Werther, por
fim, não é vítima de Carlota, ele é presa de seu pendor desmedido, o herói
romântico tem a sua nêmesis plantada por si mesmo ao, no prazer do amor,
traduzi-lo em puro sofrimento, os sofrimentos do jovem Werther.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/28915/17/os-sofrimentos-do-jovem-werther-romance-epistolar-de-goethe
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