“Artaud como poeta em busca da alma, e Van Gogh no seu
inferno e céu particulares de cores, entrando na essência da luz em sua
paranoia, são o grito suicida que ambos carregam”
ANTONIN ARTAUD
Antonin Artaud, uma força vital do teatro, que tem em seu
signo as palavras manicômio e drogas, foi ator, escritor, poeta, roteirista e
diretor de teatro, nascido na França, viveu o século XX com aspirações
anarquistas, na sua filiação ao surrealismo, entrou em conflito com o
movimento, devido a ligação desta corrente com o partido comunista.
Com a sua obra “O Teatro e seu Duplo”, conseguiu alcançar a
verdadeira expressão do que foi o teatro do século XX, sendo esta uma das
maiores obras sobre o teatro moderno, com todas as suas transformações,
conceitos e novos elementos, pois Artaud buscava um teatro novo. Tal livro
influenciou vários vultos do teatro, como Jerzy Grotowski.
Depois de passar por vários manicômios franceses, num espaço
de 6 anos, com tratamentos hoje vistos como duvidosos, ele vai para o hospital
psiquiátrico de Rodez, onde fica três anos, e estabelece uma relação ambígua
com o Dr. Ferdière, médico-responsável do manicômio. O que pode ser constatado
na intensa correspondência tida como o documento desta dialética que alternava
com incentivos de Ferdière à arte de Artaud, entre tratamentos intensivos de
eletrochoque, com a memória, corpo e pensamento de Artaud se esvaindo
progressivamente.
Seu Teatro da Crueldade, esboçado sobretudo na sua grande
obra “O Teatro e seu Duplo”, vai contra o teatro de texto, calcado em palavras,
e quer atingir a respiração, a expressão corporal como mais teatrais que o
simples teatro falado. O Teatro da Crueldade era um modelo novo de fazer peças
que aproximava ator e plateia.
Falando novamente de sua biografia, Artaud volta a Paris em
1946, onde dois anos depois é encontrado morto em seu quarto no hospício do
bairro de Ivry-sur-Seine. Neste período, em meio a uma intensa produção
literária, da qual resultará um livro seu que será tematizado aqui, o “Van
Gogh, o suicidado pela sociedade”, ele fará desenhos, e também conferências, além
de uma intervenção histórica, com a transmissão radiofônica "Para acabar
com o juízo de Deus", em que sua vontade expressiva é conjugada com o
esmero da forma.
A sua obra, por sua vez, além de incluir seu trabalho
pioneiro como diretor de teatro, contém ainda ensaios, roteiros de cinema,
pintura e literatura, escrevendo também peças de teatro, inclusive uma ópera,
notas e manifestos polêmicos sobre teatro, ensaios sobre o ritual do cacto
mexicano peyote entre os índios Tarahumara, e também trabalhou como ator em
dois grandes filmes e outros de menor dimensão. Um bom livro que pode nos
situar na obra de Artaud é o “Linguagem e Vida” (SP: Perspectiva, 2011), que
foi material para uma das resenhas que realizei aqui na Século Diário há um
tempo atrás.
VINCENT VAN GOGH
Vincent Willem van Gogh, pintor pós-impressionista holandês,
a maior influência para o que viria a ser o expressionismo na pintura, tem uma
produção que inclui retratos, autorretratos, paisagens e naturezas-mortas de
ciprestes, além de campos de trigo e girassóis, e cenas prosaicas em que as
cores explodiam, sobretudo o amarelo. Desenhava desde criança, mas sua
atividade como pintor se dará já quase quando Van Gogh tinha 30 anos. Muitos de
seus trabalhos mais conhecidos foram finalizados durante os dois últimos anos
de vida. Em pouco mais de uma década de produção, sua obra como pintor e desenhista
reuniu mais de 2 100 obras de arte, incluindo 860 telas a óleo e cerca de 1 300
aquarelas, desenhos, esboços e gravuras.
Van Gogh, durante o início de sua vida adulta, trabalhou para
uma firma de negociantes de arte. Neste ínterim, passou por Haia, Londres e
Paris, lecionado depois em Isleworth e Ramsgate. Profundamente religioso na sua
juventude, chegou a intentar ser um pastor. A partir de 1879, serviu como
missionário numa região de mineração na Bélgica, onde começou a esboçar
representações de pessoas da comunidade local.
Quando começou a sua carreira como pintor, sua paleta ainda
tinha uma carga de tons terrosos sombrios, pois só viria a atingir sinais da coloração
vívida que seria a sua marca como pintor, posteriormente. Em março de 1886,
mudou-se para Paris, onde conheceu os impressionistas franceses, mas não se
adequou ao movimento, recebendo então uma primeira influência do pontilhista
Georges Seurat. Mais tarde, migrou para o sul daquele país, onde passou a ser
influenciado pela forte incidência solar da região, algo que se refletiu na sua
pintura com obras de uma maior expressão cromática. Essa mudança nas cores de
sua pintura veio a se tornar o seu estilo mais característico e reconhecido
como a parte mais importante de sua obra, num estilo único que seria uma das
assinaturas mais sui generis da História da pintura e das artes como um todo, a
qual teve o seu ápice durante sua estadia em Arles, em 1888.
Na sua biografia, também são conhecidas as suas crises de ansiedade
e desequilíbrio mental, com Van Gogh vindo a se suicidar aos 37 anos, em
decorrência de uma ferida de bala auto-infligida. Suas últimas pinturas,
contudo, são a imagem do auge de suas habilidades, fase na qual chegou a
produzir um quadro por dia. Van Gogh é considerado na crítica artística um dos elos
de ligação entre a pintura impressionista e as tendências modernistas que viriam a
surgir no século XX. Sua fama póstuma começou a se estabelecer a partir da
exibição das suas telas em Paris, em 17 de março de 1901. Com uma obra vasta e
original, o pintor Van Gogh é considerado um dos mais importantes da história.
Em sua homenagem, foi fundado o Museu Van Gogh, em Amsterdã, lugar em que se
concentra a difusão de seu legado.
LIVRO DE ARTAUD (VAN
GOGH, O SUICIDADO PELA SOCIEDADE)
Esta obra será o elo que se dará entre Antonin Artaud, o
autor, e sua inspiração, Van Gogh, o pintor, na sua coincidência terrível que
tem por temas arte e loucura. Como produto interdisciplinar tal obra é
colocada, sendo um dos estertores de Artaud, que viria a se suicidar, este
também, logo em seguida, encerrado num manicômio, na sua relação de
incompreensões mútuas com o mundo. O caráter interdisciplinar se dá na
conjugação que este trabalho tem entre as artes plásticas, a música e a
palavra, e entre o homem essencialmente de teatro que foi Artaud e de pintura
que foi Van Gogh.
O tema da criação através da loucura, atravessada pela cisão,
esta ruptura entre dois mundos, o da instituição psiquiátrica, e o da arte, em
seus desesperos, tendo Artaud como poeta em busca da alma, e Van Gogh no seu
inferno e céu particulares de cores, entrando na essência da luz em sua
paranoia, são o grito suicida que ambos carregam. A obsessão onírica é o
produto de Van Gogh por Artaud, com os dois se fundindo neste universo
simbólico, em que sua supressão se dá pela palavra manicômio. O homem possuído
pelos seus símbolos é artista e louco, e o combate deste mundo simbólico, de
sentidos explodindo, pela psiquiatria até então praticada, é o canto do cisne
de Artaud, buscando as motivações da morte de Van Gogh, e já fabricando a seu
próprio fim também.
ARTAUD EM CONFLITO, VAN
GOGH TAMBÉM
O pequeno livro de Artaud, meio em seu início, temos: “É assim que se mantém a vida presente, na
sua velha atmosfera de estupro, de anarquia, de desordem, de desvario, de
descalabro, de loucura crônica, de inércia burguesa, de anomalia psíquica
(porque não é o homem, mas o mundo que se tornou anormal), de desonestidade
deliberada e insigne hipocrisia, de sujo desprezo por tudo que cheira à
nobreza, de reivindicação de uma ordem inteiramente baseada no cumprimento de
uma primitiva injustiça”. Aqui a injustiça do mundo logo se chocaria com a
psiquiatria, aonde todos os incautos que se chocam com o mundo geralmente, por
incautos, num primeiro momento, podem parar. A definição de abertura de Artaud
começa pela estrutura do mundo, este ser duro e injusto, armadilha para os
revoltados, prêmio para os dissimulados, este mundo cruel de seu Teatro da
Crueldade, este mundo que, ele dirá logo em seguida, suicidara Van Gogh, seu
duplo contra a psiquiatria, que será então Van Gogh a sua tese contra esta
suposta ciência, num conflito de seu intento anarquista, ainda com, julgo eu,
uma infantilidade diante da desdita de ser incompreendido. E seu avatar de
“gênio incompreendido” será Van Gogh, portanto.
“Desta maneira, uma sociedade deteriorada inventou a
psiquiatria para defender-se das investigações de alguns iluminados superiores,
cujas faculdades de adivinhação a incomodavam.” Aqui está o conflito clássico
entre o místico e a psiquiatria, o que tomará grande parte deste trabalho e se fará
de matéria para toda a sua reflexão, leitmotiv da revolta, da incompreensão.
Nada mais que negar a loucura de Van Gogh, bipolar antes de existir tal
terminologia, talvez. E que vem na sua tese e defesa logo de cara: “Não, Van
Gogh não era louco”.
E segue: “Porque a pintura de Van Gogh não ataca um certo
conformismo dos costumes, mas as próprias instituições” (...) no plano social
as instituições se desagregam, e a medicina parece um cadáver inutilizado,
decomposto, que declara Van Gogh louco.” (...) Diante da lucidez de Van Gogh em
ação, a psiquiatria fica reduzida a um grupo de gorilas, (...) que dispõe de
uma ridícula terminologia, digno do produto de seus cérebros viciados.” O que
se entende por autêntico alienado? É um homem que prefere tornar-se louco (...)
a sociedade amordaça a todos aqueles de quem ela quer se livrar (...) Porque um
alienado é, na realidade, um homem ao qual a sociedade se nega a escutar, e ao
qual quer impedir que expresse certas verdades insuportáveis”.
Mais uma vez, o gênio clássico diante do seu outro ignaro,
sua iluminação sobrenatural em guerra com as instituições, o palco da pintura
como prova de que Van Gogh não foi bem assimilado em sua época, o que é
verdade, mas a inteira reflexão de que Artaud quer fazer crer é a de que Van
Gogh, ao cabo, foi induzido a se matar, o que, falando de suicidar-se, é um ato
deliberado de loucura embriagada ou desesperança de dilemas insolúveis, ou um
composto químico no cérebro que leva o vivente a se aniquilar por dor
insuportável, física e mental. Mas, penso em ato deliberado, máxima culpa das
mãos da própria pessoa, mais do que por indução maléfica, como faz crer, o
tempo todo, Artaud e sua defesa apaixonada e panegírica de Van Gogh.
O SUICÍDIO DE VAN GOGH
“Van Gogh não morreu por causa de uma definida condição
delirante, mas por ter chegado a ser corporalmente o campo de batalha de um
problema, em torno do qual se debate, desde as origens, o espírito inócuo desta
humanidade, e do predomínio da carne sobre o espírito”. “Van Gogh não se
suicidou em um ataque de loucura, pela angústia de não chegar a encontrá-lo; ao
contrário, acabava de encontrá-lo, e de descobrir o que era e quem era ele
mesmo, quando a consciência geral da sociedade, para castigá-lo, por ter
rompido as amarras, o suicidou.” “Esta sociedade apagou nele a consciência
sobrenatural que acabava de adquirir (...) submergiu-o numa última onda, e,
tomando seu lugar, o matou.” E aqui fica clara a visão extremamente mistificada
que Artaud tem por Van Gogh, e que terá em seus tiques com a palavra gênio sua
corriqueira afetação de artista em conflito com a sociedade. Será que o gênio
ou artista incompreendido não será esta vítima pelo simples fato de não se
fazer entender? E outra: a sociedade teria tal obrigação moral, dentre a
responsabilidade soteriológica de salvar um gênio de si mesmo?
A PINTURA DE VAN GOGH
“Durante muito tempo a pintura linear me apaixonou, até que
descobri Van Gogh, que pintava, em lugar de linhas e formas, coisas da natureza
como agitados por convulsões.” “São pancadas, realmente pancadas as que Van
Gogh aplica sem parar a todas as formas da natureza e aos objetos.”
“Destrinchadas pela punção de Van Gogh, as paisagens exibem sua carne hostil, o
amargo de suas entranhas arrebentadas, que não se sabe, qual força insólita
está metamorfoseando.” Quando Artaud fala da pintura de Van Gogh, que é o que
interessa mais do que a sua loucura, ele se sai melhor, e suas análises são
muito melhor balizadas do que sua defesa mística dos “gênios iluminados”.
Aqui está mais um bom momento do pensamento de Artaud sobre
Van Gogh, quando se fala da pintura em si: “Na última exposição no Palácio
L`Orangerie havia suficientes desfiles giratórios cobertos com penachos de
planta carmim, caminhos desertos coroados por um vale, sóis violetas que
giraram sobre parvas de trigo de ouro puro, e também o Tio Tranquilo, e retratos de Van Gogh por Van Gogh, para
lembrarmos de que mísera simplicidade de objetos pessoais, materiais, elementos,
Van Gogh extraiu essas qualidades de sons de órgão, esses fogos artificiais,
essas epifanias atmosféricas, essa Grande
Obra, enfim, de permanente e intempestiva transmutação.” “Os corvos
pintados dois dias antes da sua morte não lhe abriram, mais que suas outras
telas, a porta de uma certa glória póstuma, mas abrem à pintura pintada, ou
melhor, à natureza não-pintada, a porta oculta de um futuro possível, de uma
permanente realidade possível, através da porta aberta por Van Gogh para um
enigmático e pavoroso além.”
VAN GOGH E GAUGUIN
“É isso o que mais me surpreende em Van Gogh, maior pintor
entre todos os pintores, é que, sem sair do que se denomina e é pintura, sem
afastar-se do tubo, do pincel, do enquadramento do tema e da tela, sem recorrer
à sátira, ao relato, ao drama, à ação com imagens, à beleza intrínseca do tema
e do objeto, chegou a infundir paixão à natureza e aos objetos com vigor (...)
sua telas, por outro lado, quase todas de reduzidas dimensões”. “Quem estará
para chegar? Será Gauguin ou algum fantasma? A lamparina acesa, sobre a cadeira
de palha verde, parece indicar a linha luminosa que separa as duas
individualidades antagônicas de Van Gogh e Gauguin. (...) Penso que Gauguin acreditava
que o artista deveria buscar o símbolo, o mito, ampliar as coisas da vida até à
dimensão do mito, enquanto Van Gogh achava que se deve aprender a deduzir o
mito das coisas mais terrestres da vida, e ao meu ver, merda, estava certo.
(...) Pois a realidade é extraordinariamente superior a qualquer história, a
qualquer fábula, a qualquer divindade, a qualquer supra-realidade. Não é
necessário mais que a genialidade de saber interpretá-la. (...) é a própria
realidade, o mito da própria realidade, a realidade mítica, a que está em vias
de incorporar-se.”
Pronto, Artaud decifra muito melhor a pintura de Van Gogh do
que a sua psique, e sua definição de opostos entre Gauguin e Van Gogh
interpreta muito bem as impressões e significados de ambos os caminhos da
pintura, dois pintores que seriam responsáveis por abrir um caminho para
milhares de outros pintores do futuro, e em Van Gogh se concentra a realidade
prosaica, de tão densa cor e compressão, que explode, mas num mundo simples de
cenas comuns, que viram um cromático extraordinário da percepção e sentidos das
pinceladas fortes e convulsivas do gênio Van Gogh, e com Gauguin indo para
ilhas paradisíacas, abandonando sua família e emprego estáveis, para buscar um
certo mito de origem.
VAN GOGH E GACHET
Não preciso interrogar a Grande Pitonisa para que ela me diga
de quantas supremas obras-primas a pintura teria se enriquecido se Van Gogh não
tivesse morrido aos trinta e sete anos, pois não consigo acreditar que depois
dos corvos, Van Gogh viesse a pintar algum outro quadro. Creio que morreu aos
trinta e sete anos porque já havia, desgraçadamente, chegado ao término da sua
fúnebre e revoltante história de indivíduo sufocado por um espírito maléfico.
(...) Pois não foi por si próprio, por causa de sua própria loucura, que Van
Gogh abandonou a vida. (...) Foi pela pressão, dois dias antes de sua morte, desse
espírito maléfico que se chamava doutor Gachet, psiquiatra improvisado e causa
direta e suficiente da sua morte. (...) Lendo as cartas de Van Gogh a seu irmão
cheguei à firme e sincera convicção de que o doutor Gachet, “psiquiatra”, na
verdade detestava Van Gogh, pintor; detestava-o como pintor, e acima de tudo
como gênio. (...) É quase impossível ser ao mesmo tempo médico e homem honrado,
mas é vergonhosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo
marcado a fogo pela mais indiscutível insanidade; a de não poder lutar contra
esse velho reflexo atávico da multidão, que converte qualquer homem de ciência,
aprisionado na turba, numa espécie de inimigo nato e inato de todo gênio.”
Neste novo trecho acima, Artaud volta a seu conflito que
julgo “inoperável” entre arte e psiquiatria, que só mesmo uma Nise da Silveira
deu conta aqui no Brasil, e com êxito. Mas, vejo que as razões de Artaud são
bem pessoais, e isto ele projeta diretamente na dialética maldita entre Gachet
e Van Gogh, Artaud que tinha uma dialética ainda mais maldita com Ferdière, seu
vilão, e logo Gachet também ganha cores de antagonista diante de seu herói
romântico Van Gogh. Psiquiatria que Artaud define como: “uma espécie de Guarda
Suíça para extirpar na raiz o espírito de rebelião reivindicatória que está na
origem de todo gênio.” Eis a afetação clássica entre gênio e psiquiatria, que
poderá ter razão nos tempos sombrios em que viveu tal ciência, mas que não
apaga seus ares de infantilidade com seu apego à palavra gênio. No que Artaud
continua em seu périplo: “Em todo alienado existe um gênio não compreendido,
cujas ideias, brilhando na sua cabeça, apavoram as pessoas e que somente pode
encontrar no delírio uma fuga às opressões que a vida lhe preparou.”
“O doutor Gachet não chegou a dizer a Van Gogh que estava ali
para endireitar sua pintura (como ouvi o doutor Gastón Ferdière, médico-chefe
do manicômio de Rodez, dizer que estava ali para endireitar minha poesia), mas
mandava-o pintar a natureza, sepultar-se na paisagem para evitar a tortura de
pensar. (...) No entanto, assim que Van Gogh virava a cabeça, o doutor Gachet
lhe fechava o interruptor do pensamento. (...) Pois Van Gogh era de uma
sensibilidade terrível. (...) E como já disse, em todo psiquiatra vivente há um
sórdido e repugnante atavismo que lhe faz ver em cada artista, em cada gênio,
um inimigo. (...) é ao doutor Gachet, de Auverssur-Oise, que Van Gogh ficou
devendo aquele dia, o dia em que se suicidou em Auverssur-Oise; ficou devendo,
repito, o abandonar a vida, pois Van Gogh era uma dessas naturezas dotadas de
lucidez superior, o que lhes permite, em qualquer circunstância, ver mais além,
infinita e perigosamente mais além que o real imediato e aparente dos fatos;
quero dizer, mais além do que a consciência habitualmente conserva dos fatos.”
“No fundo dos seus olhos sem pestanas de açougueiro, Van
Gogh, dedicava-se incansavelmente a uma dessas operações de alquimia sombria
que veem a natureza por objeto e o corpo humano por vasilhame ou crisol. (...)
E sei que o doutor Gachet sempre achou que essas coisas cansavam Van Gogh.
(...) O que no doutor não era o resultado de uma simples preocupação médica,
mas a manifestação de uma inveja tão consciente quanto inconfessada.” E Artaud
logo conclui que Gachet tinha inveja de Van Gogh, dedução que acho fácil e
gratuita, como se todo ser humano fosse necessariamente em relação a ditos e
olhares de outros, um objeto de perseguição maníaca, a qual pode existir, mas
não é uma regra psicológica tão rotineira quanto muitos pensam, e como Artaud
quer fazer crer.
A CONSCIÊNCIA MALÉFICA
“Alguém devia a Van Gogh uma soma de dinheiro, e a propósito
disso a história nos diz que Van Gogh estava irritado há vários dias. (...) As
naturezas superiores são propensas a explicar tudo pelo influxo de uma
consciência maléfica. A acreditar que nada é devido ao acaso, e que tudo o que
acontece de ruim se deve a uma vontade maléfica, consciente, inteligente e
organizada. (...) Coisa que os psiquiatras nunca acreditam. Coisa que os gênios
acreditam sempre. (...) também Van Gogh achava que estava possuído e assim o
afirmava. (...) O doutor Gachet foi grotesco manipulador, (...) colocado diante
do pobre e desgraçado Van Gogh para arrebatar-lhe as ideais sãs.” Gachet
aparece como perverso nesta dialética, e a maldição estaria em Gachet, mais do
que em Van Gogh, pois no conflito com o acaso psiquiátrico, está o destino
irresistível de um gênio. A consciência maléfica existe, mas o acaso também faz
das suas, e a segurança está em saber que predestinação e acaso são versos e
inversos de um mesmo prisma de reflexão e ação.
VAN GOGH E A FAMÍLIA
“Van Gogh não soube livrar-se a tempo dessa espécie de
vampirismo familiar, interessada em que o gênio de Van Gogh pintor se limitasse
a pintar, sem reclamar, a revolução indispensável para o desenvolvimento
corporal e físico de sua personalidade de iluminado. (...) E entre o doutor
Gachet e Theo, o irmão, existiram muitos desses hediondos conchavos entre
familiares e médicos-chefe de asilos de alienados, concernentes ao doente que
têm em mãos. (...) “Vigie-o para que não tenha mais esse tipo de ideia. Você
não vê o que o doutor disse, acabe com esse tipo de ideia. Te faz mal pensar
sempre nelas; você vai ficar internado para toda a vida.” (...) Mas senhor Van
Gogh, convença-se de que tudo isso é mera casualidade; e ainda por cima não é
bom querer examinar desse jeito os segredos da providência. Eu conheço Fulano
de Tal, é uma excelente pessoa; seu espírito de perseguição o está levando a
achar que ele pratica mágica em segredo.” Aqui a incompreensão aparece de uma
forma mais prática, mas tal conflito nasce necessariamente nas personalidades
obcecadas, como o pensamento mágico de perseguição paranoica entre amuletos e
vodus de que a sorte e revés fazem a fortuna da moira incandescer na produção
febril de uma pintura espetacular, eis Van Gogh!
VAN GOGH, ARTAUD E A
PSIQUIATRIA
“Todas essas suaves conversas de psiquiatra bonachão, que
parecem inofensivas, mas deixam algo assim como uma marca de linguinha negra, a
linguinha negra anódina das salamandras venenosas. (...) E, às vezes, nada mais
é preciso para se induzir um gênio ao suicídio. (...) Pois foi precisamente
depois de uma conversa com o doutor Gachet que Van Gogh, como se nada tivesse
acontecido, entrou no seu quarto e suicidou-se.”
E continua Artaud: “Eu
mesmo estive nove anos num asilo de alienados e nunca tive a obsessão do
suicídio, mas sei que cada conversa com um psiquiatra de manhã, na hora da
vista dele, criava em mim o desejo de enforcar-me, ao compreender que não podia
degolá-lo. (...) Theo talvez fosse muito bom para seu irmão, do ponto de vista
material, mas isso não o impedia de considerá-lo um delirante, um iluminado, um
alucinado, e se obstinava, em vez de acompanha-lo em seu delírio, em acalmá-lo.
(...) O que mais importava a Van Gogh era sua ideia de pintor, sua terrível
ideia fanática, apocalíptica de iluminado. (...) Não existe nada que tenha sido
alguma vez escrito, ou pintado, esculpido, modelado, construído, inventado a
não ser para sair do inferno.” Aqui Artaud é mais lúcido, e realmente a indução
ainda não é comprovada, mas o conflito sim, e Van Gogh, por deliberado ato,
seja na sua depauperação de absinto, ou na sua obsessão, foi vítima de si mesmo
numa sociedade mal ajambrada como sempre foi.
VAN GOGH E A PINTURA
“Não existem fantasmas nos quadros de Van Gogh, nem visões
nem alucinações. Somente a tórrida verdade de um sol de meio-dia. (...) E do
que a natureza um dia prestará conta. Como também a sociedade prestará contas
da sua morte prematura. (...) É natureza pura e nua, vista tal como ela se
revela quando alguém sabe aproximar-se ao máximo.” “Cada pincelada de Van Gogh
sobre a tela é pior que um acontecimento. (...) Em outros momentos impressiona
como um simples amontoado esmagado por um enorme sol.” Eis que Van Gogh é pintor,
e não louco. Seu conflito vira o sublime, suas pinceladas o redimem de seu peso
infernal, e como diz Artaud, o artista faz arte para sair do inferno e ver o
céu, e a terra farta simplesmente existe, como ele dirá em seguida.
“Porque Van Gogh foi o mais autenticamente pintor entre todos
os pintores, o único que não quis rebaixar a pintura como meio estrito de sua
obra, e como marco estrito de seus meios. E, por outro lado, o único,
absolutamente o único, que rebaixou absolutamente a pintura, o ato inerte de
representar a natureza, para fazer surgir, desta representação exclusiva da
natureza, uma força giratória, um elemento arrancado diretamente do coração.
(...) Fez, sob a representação, brotar um aspecto, e nela encerrar um nervo que
é de uma natureza e um aspecto mais verdadeiro que o aspecto e o nervo da
natureza verdadeira.
“A tempestuosa luz da pintura de Van Gogh começa seu sombrio
recitativo no mesmo instante em que a deixamos de olhar. Exclusivamente pintor,
Van Gogh, e nada mais: nada de filosofia, nada de mística, nada de rito, nada
de história, nada de literatura nem poesia; esse girassóis de ouro bronzeado
são pintados; estão pintados como girassóis e nada mais, mas para entender
agora um girassol natural é indispensável passar por Van Gogh, assim como para
compreender uma tempestade natural, um céu tempestuoso, uma planície da
natureza, de agora em diante é impossível não voltar a Van Gogh. (...) Pintor,
nada mais que pintor, Van Gogh adotou os meios da pintura pura e nunca os
degradou. Quero dizer que, para pintar, não foi além de servir-se dos meios que
a pintura lhe oferecia. (...) O fardo de pintar sem saber por quê nem para quê.
Pois não é para este mundo, nunca é para esta Terra onde todos, desde sempre,
trabalhamos, lutamos, uivando de horror, de fome, miséria, ódio, escândalos e
nojo e onde fomos todos envenenados, embora com tudo isso tenhamos sido
enfeitiçados e finalmente nos suicidamos como se não fôssemos todos, como o
pobre Van Gogh, suicidados pela sociedade! (...) Pintando, Van Gogh renunciou
ao relato de histórias: mas o maravilhoso consiste em que este pintor não é
nada mais que pintor, e que é mais pintor que todos os outros pintores, por ser
aquele no qual o material, a própria pintura, assume um lugar primordial.”
VAN GOGH E A VIDA
“A humanidade não quer ter o trabalho de viver, de tomar
parte neste duelo natural entre as forças que compõem a realidade, com o
objetivo de conquistar um corpo que nenhuma tempestade possa prejudicar.
Preferiu simplesmente existir, sempre. Quanto à vida, costuma ir buscá-la no
próprio gênio do artista. Enquanto que Van Gogh nunca temeu a luta pela vida,
ou seja, separar o fato de viver da ideia de existir, (...) Tudo isto a
sociedade lhe arrebatou (...) E assim foi que Van Gogh morreu suicidado, porque
o consenso da sociedade já não pôde suportá-lo. Pois se não havia nem espírito,
nem alma, nem consciência, nem pensamento, havia matéria explosiva, vulcão
maduro, pedra em transe, paciência, ínguas, tumor cozido, e caveira descarnada.
(...) Um dia a pintura de Van Gogh armada de febre e boa saúde, retornará para
lançar ao vento o pó de um mundo enjaulado que seu coração não podia suportar.”
Sim, mais do que uma dialética perversa com Gachet, tal tensão se dava entre o
mundo real e a pintura de Van Gogh, tensão que se tornará em pressão condensada
em sua tela cromática de nervo exposto.
“Tinha razão Van Gogh; pode-se viver para o infinito, (...) e
se Van Gogh não chegou a culminar seu desejo de iluminar sua vida inteira com
ele, porque a sociedade o proibiu. (...) Além do que, ninguém se suicida
sozinho, (...) Mas no caso de suicídio, precisa-se de um exército de seres
maléficos para que o corpo decida-se pelo ato de privar-se da própria vida. (...)
No que me concerne, num caso semelhante, não suportaria sem cometer um crime
que me digam: Senhor Artaud, está delirando, como aconteceu comigo com
frequência. E Van Gogh ouviu o que lhe diziam. E esse é o nó de sangue que o
matou, apertando-lhe a garganta.”
A TESE DE ARTAUD
Artaud quer, em sua tese, dizer exatamente o que seu título
diz, que Van Gogh foi suicidado e não se suicidou, aparecem volta e meia teses
conspiratórias de que houve uma briga entre Van Gogh e jovens num campo, pois
existem várias teses, muito comuns a gênios póstumos, assim como as lendas de
Rimbaud, assim como todo humano que é extraordinário, assim como há em Artaud uma
ânsia de gênio, que também o era, mas que do abuso de tal terminologia, parece
por se perder numa mistificação desta palavra ao paroxismo, afetando
classicamente este infortúnio de que o incompreendido é um injustiçado astral,
de que o mundo é indigno de certas fortunas como Van Gogh, mas Van Gogh nos deu
um tesouro, com todas as suas angústias, e quando se fala em pintura, pensamos
logo em Van Gogh, não ocorrendo o mesmo, geralmente, com as palavras loucura e
suicídio.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/28263/17/vangogh-o-suicidado-pela-sociedade-na-versao-de-antonin-artaud
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