"A lírica grega não tinha o caráter intimista da poesia moderna, mas sim se apresentava numa situação de diálogo entre o performer e a audiência."
Safo de Lesbos nasceu de família aristocrática em Êresos, na costa ocidental da ilha de Lesbos (mar Egeu), em torno de 630 a .C. A poeta viveu numa cidade da costa oriental, a próspera Mitilene, onde teria morrido em cerca de 580 a .C. Seu nome figura desde seu tempo entre os expoentes da poesia grega e de um de seus gêneros mais importantes, a mélica ou lírica. Safo é o único nome feminino no conjunto de poetas da Grécia arcaica (c. 800-480 a .C). A mélica sáfica eram canções para performance ao som da lira, em solo ou em coro. A poesia da Grécia arcaica, e sáfica, por sua vez, fazem parte de um tipo de poesia de tradição oral. Safo, ao lado do poeta e guerreiro Alceu, são os primeiros poetas lésbios dos quais sobreviveram, para cada um, corpos de obra substanciosos.
Safo e Alceu serão nomes notáveis na poesia denominada mélica. A mélica, canção destinada à performance, tanto em solo como em coral, se insere na tradição oral que será chamada de “cultura da canção”. Tal poesia se revestirá, recitada ou cantada na performance, de ideias morais, políticas e sociais. Além disso, a lírica grega, uma vez que era ligada à comunidade de que fazia parte, não tinha o caráter intimista muitas vezes visto na poesia moderna, mas sim se apresentava numa situação de diálogo entre o performer e a audiência. O diálogo, por sua vez, marcou toda a tradição de poesia oral da Grécia, desde a épica homérica e seus poemas monumentais, a Ilíada e a Odisseia (onde havia uma divisão entre narrativa de ação e diálogo), como na lírica grega por todo o período arcaico e antigo.
A oralidade da composição lírica se vale de estruturas e procedimentos estilísticos de caráter mnemônico. A transcrição de tais poemas orais, portanto, não eram para salvaguardar o poema e torná-lo duradouro e famoso, pois a tradição oral fazia isto pela mnemônica. A escrita servia, então, apenas como transcrição de algo já bem estabelecido pela oralidade e que mantinha a sua tradição protegida pela memória, numa existência socialmente bem reconhecida.
A lírica, como nome tardio, deriva do modo de performance, é a referência moderna ao corpo de textos que não são nem poesia hexamétrica (como a épica), nem dramática (tragédia e comédia). Na era arcaica, o nome lírica servirá à mélica, à elegia e ao jambo. E a mélica, como lírica, era a identificação da canção para a lira, daí lírica. A composição dessa poesia antiga é pragmática, não serve à explosão da individualidade da lírica moderna, a poesia antiga, por ser oral, não se fixa em regras escritas, não há na poesia arcaica e clássica, leis fixas, tudo passa pela demanda da oralidade que confluirá no encontro entre o poeta e sua audiência. O conceito de literatura moderno, com sua preocupação pela originalidade e criatividade, não servem à análise da poesia dos antigos, uma vez que nesta (a poesia elegíaca, jâmbica e mélica da Grécia arcaica, sobretudo, e clássica) temos mais engenho e menos paixão, mais convenções e menos individualidade. A poesia antiga, essencialmente oral, está submetida à vida social da pólis grega arcaica, é composta, por ser oral, como discurso.
Quanto à questão do acesso a esta poesia antiga pelos modernos, temos grandes e intransponíveis dificuldades, uma vez que só sobraram poucos fragmentos de tal período. No caso de Safo, só temos um poema completo dela, soma-se a isto a falta quase absoluta de conhecimento da biografia destes poetas, muitas vezes misturadas num amálgama de lendas e anedotários. Pode-se falar então, não em obra de Safo, mas em fragmentos de Safo. Quanto aos outros poetas da lírica antiga, a poesia jâmbica, a elegíaca e a mélica, a situação do que restou é similar ou pior do que o caso de Safo.
A lírica grega, portanto, torna-se quase que totalmente inacessível, temos que esmiuçar os fragmentos para deles tirar um ínfimo néctar do que sobrou, e aí nos contentarmos com inumeráveis interpretações desses despojos que, modernamente, são quase inaudíveis, a oralidade antiga só sobrevive nos nossos tempos pela escrita presente em raros fragmentos. Portanto, aos que buscam Safo, por sua vez, restam os fragmentos, estes ainda pulsam vida, desafiam os que neles se debruçam, só não temos a própria Safo com sua lira, a parte material é o fragmento quase que totalmente destruído. Resta aproveitar o que temos, e não se fundar tanto nas lendas que cercam o nome de Safo, a mulher, a lésbica, pois os mitos sempre rondaram as biografias, e os biografados nada puderam dizer de suas contradições, o que ocorre até hoje com os vivos, que dirá com os mortos de ontem e com os que desapareceram já há milênios.
Safo, vivente ainda numa Grécia da oralidade, onde a escrita não era ainda uma prática consolidada na produção artística, possui, no entanto, um corpus extenso: São cerca de 200 fragmentos, um dos quais uma canção completa, o “Hino a Afrodite”. Mas, Safo, embora não seja a única poetisa grega antiga, é a única do período arcaico. Safo pode muito bem ser considerada, então, como a primeira poetisa grega. Pois a questão de se os fragmentos de todos os poetas antigos que sobreviveram, revelam uma proeminência ou não necessariamente dos mesmos, em relação aos seus contemporâneos, não contradiz, contudo, o epíteto dado à Safo da poetisa que abriu caminho, numa poesia madura, para outras poetisas percorrerem, uma vez que na tradição Safo obteve, com sua poesia, ainda na sua época, uma grande reputação. Da poesia antiga, não temos nenhuma outra além de Safo com o tamanho dela, ninguém a superou, dentre as poetas mulheres, em sua época e também na Grécia clássica.
A condição de mulher poeta, para Safo, que tem em suas canções uma temática onde predomina o erótico e o amoroso, e que tem no universo feminino a sua força, donde se tem tentativas de retirar de tais canções ilações biográficas possíveis, e donde se tem o mito de Safo ser lésbica, culminam na questão da sexualidade feminina e de seu exercício a partir da figura de Safo, que pretendem explicar a poesia e a vida de Safo, mas que não têm nenhuma credibilidade histórica. Contudo, livres desta necessidade da historicidade, podemos nos remeter aos relatos que se formaram pelo século IV a .C. em diante. Neles, temos uma Safo com um marido, uma filha, muitos irmãos, numerosas amigas e companheiras, com as quais, segundo alguns relatos, manteve relações sexuais, além de um incrível salto suicida de um penhasco.
O que se sabe, é que, nos diferentes períodos históricos que se sucederam, tivemos várias imagens de Safo, desde a idealização do período romântico no século XIX, que é tão fantasiosa quanto os relatos antigos, e uma variada gama de imagens que não passam de idealizações de desejos, uma vez que a idealização nunca se refere a dados objetivos, fazendo de sua fantasia a imagem que lhe convir, um sonho evanescente que carece de conhecimento consistente sobre quem foi realmente Safo. O problema nevrálgico dos “maus” biógrafos, como tentei fazer entender antes. Mas, contudo, a imagem que temos, certa ou errada, é a da Safo lésbica, o que é uma imagem que já não pode ser mais apagada, o mito se entronizou e os parcos registros históricos se calaram, por falta de material legítimo.
O grande problema, no entanto, quando temos uma força do mito da Safo lésbica mais forte do que os seus próprios fragmentos, é que podemos estar num caminho de erro irreversível, uma vez que nada prova em favor ou contra, partindo de tais fragmentos objetivamente, que haja como saber, indubitavelmente, qualquer coisa da biografia de Safo senão fantasias de antigos, românticos e modernos, nada mais que isso. E esta questão, se Safo era lésbica ou não, se tornou, infelizmente, a grande questão sáfica, e não a sua poesia. Na verdade, o que temos de dados da questão sáfica, além de seus fragmentos, é um emaranhado de assunções que vêm desde comédias gregas, até romances italianos, culminando em pornografia francesa.
Como dito anteriormente, a poesia de Safo se encaixa no chamado à época gênero mélico, que se liga à canção, que era nada mais que a performance ao som da lira, o termo lírica, tardio, é datado do período helenístico (c.323-31 a .C.) em diante. Mélica ou lírica designava o verso que era cantado para a música e a dança, com mélos sendo, na literatura grega arcaica, o poema lírico, e o poeta, o melopoiós, o “fazedor de canções”. Na performance a canção podia ser entoada em solo e com acompanhamento da lira, ou em coro, com a inclusão de outros instrumentos e da dança, tendo então um espetáculo.
O que fica claro é que a poesia mélica ou lírica grega arcaica era sempre vinculada à voz, uma vez que era na canção e na música que tal poesia se realizava, havendo aí, fundamentalmente, a interação geral entre o poeta, sujeito da enunciação, e seus destinatários, provocando um efeito lírico e estético que nós, modernos, não podemos imaginar, uma vez que só o espólio escrito deste período é o que resta para as análises e interpretações modernas.
As composições de Safo, por sua vez, são fundamentalmente canções, fragmentos que demonstram que a melodia antiga era serva das palavras, numa obediência à pronúncia quantitativa da fala, sendo a poesia grega, então, não orientada por uma escansão dos versos por acento, mas por duração breve ou longa de pronúncia da sílaba, o que confere uma sonoridade bem ritmada.
E, quando pensamos na mélica grega, voltamos às suas origens pré-literárias, como os cantos de culto aos deuses, de lamento ou de celebração de vida e morte, cantos que acompanhavam os trabalhos, como na colheita de uva. Portanto, a mélica tem profundas raízes populares, refletindo toda uma tradição.
Quanto ao “Eu poético”, trata-se de lembrar que, ao contrário da poesia moderna, em que pode haver ou não relação da primeira pessoa do verso e um eu do poeta empírico que insere algo de sua biografia nos seus poemas, não podemos elucidar com precisão esta questão no que se refere à poesia grega antiga, pois neste caso temos o caráter de performance de tais poemas, e que uma vez direcionados a uma audiência, e na entoação da voz com métrica, pode ser que haja uma grande despersonalização do poeta antigo que está mais vinculado às tradições e sua mnemônica do que a um eu biografado em tais poemas, sem falar nas exigências do canto, do metro e do diálogo, que foram enumerados anteriormente. O que nos resta, é estudar os fragmentos da poesia arcaica e antiga com afinco, para que possamos tirar deles algo da essência daqueles tempos, sem muita interferência de nossos conceitos modernos.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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