“As Flores do Mal, seu único livro de poesia, possui apenas
166 poemas”
CHARLES BAUDELAIRE
SENTIDO MODERNO DE AS
FLORES DO MAL
CONTEXTO HISTÓRICO E
CRÍTICO
Baudelaire tinha cerca de 20 anos quando começou a escrever
os primeiros poemas de As Flores do Mal, só que o poeta não teve pressa em
publicar seus poemas, os quais passaram por um processo exigente de escrita e
reescrita, com poemas provavelmente destruídos, fundidos, refundidos, e
sobretudo esmerilhados. Tudo isso num espaço de tempo de 27 anos, no qual
Baudelaire fez sua concepção estética amadurecer, tornando-se um artista com
alto grau de lucidez e consciência poética. Tal era a entrega e a exigência de seu
trabalho, que Baudelaire, de suas cartas, no entanto, podia inferir a ideia de
que sua obra não seria reconhecida rapidamente, pois Baudelaire se via num
contexto de uma sociedade e de uma época que tinha apego por certos juízos
oficiais e que tinha nas palavras de Victor Hugo uma lei, este que, consagrado,
reconheceu de pronto o gênio de Baudelaire, pois sabia das coisas.
No entanto, como poderia a França de sua época e tal espírito
francês da primeira metade do século XIX tolerar o que deles dizia Baudelaire? Num
contexto histórico de uma época contaminada pela agonia do romantismo, como As
Flores do Mal seriam bem recebidas pelo austero e discricionário regime de
Napoleão III, levando até mesmo a entidade que era Victor Hugo ao exílio? Baudelaire
poderia ser encarado então como um poeta já escolhido pela posteridade, aonde
de fato morava, pois não estava inserido na hipocrisia e no irrespirável
prosaísmo do espírito francês de sua época.
Contudo, é com As Flores do Mal que Baudelaire antecipa tanto
os temas como também todo o processo estético da poesia moderna. Baudelaire
seguia com certa fidelidade as ideias expostas por Poe no Poetic principle, no
que se via que Baudelaire, à exceção de uma meia dúzia de composições, expurgou
o poema longo, que era um tipo de afetação cara ao gosto dos românticos. Mas,
para além do Poetic principle de Poe, o verso baudelairiano tem outras fontes
de inspiração e reflexão como nos textos dos escritores latinos, nas propostas
estéticas da Pléiade, na Ars poetica de Boileau e, sobretudo, na obra de
Racine, este que tem por uma das bases o mesmo citado Boileau. Mesmo sendo um
poeta que antecipou a poesia moderna e como contemporâneo da febre romântica,
Baudelaire, contudo, é um escritor de linhagem clássica, pois tem uma lucidez
na expressão, com sua sintaxe sem floreios e um estilo conciso que são reflexo
do que há de melhor nas tradições da língua francesa, revelando no poeta um
diálogo criativo frutífero com muito do que houve no século XVII, daí advindo
sua negação estética dos transbordamentos retóricos e do desleixo de estilo
visto nos românticos.
E podemos ter uma medida da exigência baudelairiana se vermos
que o poeta cuidou com afinco até da própria extensão de seu cânon poético: As
Flores do Mal, seu único livro de poesia, possui apenas 166 poemas, aos quais
se poderiam ajuntar, se quiser, o legado talvez irrelevante dos primeiros
versos, ou ainda das Amoenitates Belgicae, que reúnem a poesia epigramática e
os versos de circunstância que nos deixou o autor. E vem a questão de se de
fato Baudelaire escreveu pouco, já que isso seria uma insinuação, por exemplo,
de Jean-Paul Sartre, que em sua súmula idiossincrática e irritada sobre o poeta
levanta tal polêmica. Mas se Baudelaire foi exigente com o próprio trabalho,
pode-se inferir também o contrário, de que escreveu muito, já que uma obra do
quilate de As Flores do Mal não nasce da noite para o dia, lembrando aqui os 27
anos que o poeta maturou para vir à luz, podendo então ter como objeto o fato
de que os poemas de Baudelaire são produto de alguém que escreveu e reescreveu
incontáveis vezes esses 166 poemas da arte final, obra que lhe custou sua vida
inteira de poeta e como escritor. Então, ao contrário da visão sartreana,
pode-se ver que Baudelaire escreveu muitíssimo, mas somente publicou o que lhe
parecia digno de seu gênio. E então acertou em cheio, independente, e muito!, da
crítica reducionista de que era um escritor breve.
O verso baudelairiano revela tal exigência de uma vida
inteira no que se pode ver em seu alexandrino impecável e infinito, numa senda ondulante
de duração que rompe até mesmo os limites físicos da palavra, num jogo verbal
que tem no mistério do processo criativo a sua fonte original. E tal sortilégio
resultante das tensões que se polarizam em seu verso seria produto de uma
imaginação na qual o significado das palavras não seria o bastante, pois era
produto de uma intuição poderosa animada por entidades como as “opérations
magiques” e a “sorcellerie évocatoire”, como o próprio Baudelaire sugere em
suas notas, com o fito de explorar os sons, as formas e as cores.
Assim como o verso baudelairiano não pode ser confundido com
o dos românticos, este tampouco pode ser incluído entre os parnasianos e no
modo como Baudelaire concebia a tão controversa teoria da “arte pela arte”, que
tem em seus poemas uma operação criativa diversa da rigidez ortodoxa de um
Gautier ou de um Banville, causando espanto, para quem está bem informado, esta
associação que alguns críticos fazem de Baudelaire com o parnasianismo. Tal distinção
entre Baudelaire e os parnasianos se dá sobretudo por ter o soneto
baudelairiano se fundado nas “imperfeições” que são o caráter essencial de sua
versificação e da poesia do autor, que passa ao largo de exigências formais tanto
da Pléiade quanto do próprio Parnaso, com tal herança, guardadas as proporções,
presentes apenas em cinco poemas. Pois toda a obra de Baudelaire será uma transgressão
em relação a fôrmas, numa luta constante contra reduções paralisantes.
Quanto ao conceito da “arte pela arte”, portanto, também
causa espanto que se haja tentado colocar Baudelaire como seu defensor, uma vez
que as “defeituosas perfeições” da poesia baudelairiana lutavam contra
escaninhos em que estavam entidades como Gautier e Banville, por exemplo. Com Baudelaire,
por sua vez, fazendo uma inversão de princípios em que a feiura era também
poesia, e não a ideia metafísica e da tradição filosófica da Estética que tinha
no Belo com maiúscula o fundamento exclusivo
da sensação e aqui, no caso de Baudelaire, como fonte única para a inspiração
poética. E foi exatamente com esta ruptura que Baudelaire abriu caminho para o
que viria a ser a poesia moderna. E Baudelaire, por sua vez, foi quem conferiu
todo o sentido metafísico que faltava à poesia musical e muitas vezes vazia de
Poe, abrindo caminho para uma concepção de verso que seria livre de todos os
elementos narrativos e didáticos que até então povoavam a poesia, lançando então
os novos fundamentos da poesia moderna.
Embora o verso baudelairiano se expresse sobretudo em termos
de estrita consumação sintático-verbal, este deve, contudo, muito à música, e ainda mais à pintura. E então não é por
acaso que Baudelaire tenha se destacado como o maior crítico musical e de artes
plásticas de sua época. Como poeta, Baudelaire certamente tinha essa
preocupação musical na sua relação às exigências do ritmo, que é, como se sabe,
o elemento que faz a distinção estrutural entre a poesia e a prosa, mais do que
a conhecida distinção formal. Há, pois, em Baudelaire, como se veria com Eliot
bem depois, este interesse dinâmico pelo que era a “music of the poetry”, numa
espécie de visão de herança pitagórica e matemática.
Baudelaire, por outro lado, não permitia que a música pudesse
subverter ou adulterar os elementos discursivos do poema, pois a base do poema
eram as palavras, e não as ideias, e então Baudelaire teve esta percepção de
entender a ameaça da música aos fundamentos estéticos de sua poesia, mantendo-a
sob controle crítico. Tal descaminho que ficaria, por sua vez, por conta de
dois de seus herdeiros: Verlaine, cuja poesia se reduz a uma verdadeira orgia e
embriaguez musical, e Mallarmé, com sua “musique des silences”.
Os textos baudelairianos são claros quanto a imagens, e ao
contrário de Rimbaud, que iria colorir as vogais em célebre soneto, Baudelaire
pretendia estabelecer uma forma de percepção como analogia entre as distintas
manifestações do gênio artístico, numa sensibilidade espiritual, que era, ao
fim, uma faculdade suprema da imaginação, com Baudelaire colocando a beleza para
além dos elementos plásticos ou musicais que inspirava muitas vezes a sua
escrita poética.
A inovação do verso baudelairiano não se dará, contudo, no
nível da língua, pois a linguagem de Baudelaire segue critérios canônicos de
clareza, não obstando nada para o plano da leitura, pois que tem como fonte
histórica os poetas latinos e os grandes autores franceses do século XVII, principalmente
Racine, mas observando-se no poeta, todavia, uma preocupação musical que faltava
ao verso clássico, quase sempre comprometido com a eloquência e o afã
analítico. O verso de Baudelaire é sempre lento, grave, solene, um alexandrino infindável
ondulando com um ritmo próprio e original, tendo semelhanças, por vezes, com as
litanias da decadência latina.
Fiel à cesura, esse alexandrino baudelairiano possui um vasto
cabedal de recursos técnicos e estilísticos, como as rimas internas, o jogo habilidoso
de rimas graves e agudas, típico da ordem clássica francesa, as aliterações,
além das insólitas “perfeições defeituosas” das quais Baudelaire foi intenso
praticante em seus versos. E mesmo quando Baudelaire recorre aos metros curtos,
como as redondilhas maior e menor – o que é raríssimo -, pode-se perceber essa
duração infindável, e no que tange ao octossílabo, metro muito frequente em As
Flores do Mal, este é característico da língua francesa e, como no caso do
alexandrino, Baudelaire o levou à perfeição.
POEMAS:
O CISNE : O poema do cisne é belo, mesmo
vertido ao português, vem com música, em sentido de som e de fundo, como se vê:
“Andrômaca, só penso em ti!” (...) “Fecundou-me de súbito a fértil memória,/Quando
eu cruzava a passo o novo Carrossel./Foi-se a velha Paris”. Há um quê de
nostalgia, a velha Paris se evoca, mas o poeta tem então uma visão: “Ali eu vi,
certa manhã,” (...) “Um cisne que escapara enfim ao cativeiro/E, nas ásperas
lajes os seus pés ferindo,/As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro./Junto a
um regato seco, a ave, o bico abrindo,/No pó banhava as asas cheias de aflição,/E
dizia, a evocar o seu lago natal:/“Água, quando cairás? quando soarás, trovão?””.
A visão do cisne e sua fuga do cativeiro ainda possui um misto de esperança e
sofrimento, a água é sentida como fonte redentora, no que Baudelaire continua: “Paris
muda! mas nada em minha nostalgia/Mudou!” (...) “Também diante do Louvre uma
imagem me oprime:/Penso em meu grande cisne, quando em fúria o vi,/Qual
exilado, tão ridículo e sublime,/Roído de um desejo infindo!”. Aqui a velha
Paris é o cisne outrora visto, a visão nostálgica funde a beleza do animal à da
cidade, e os ventos da mudança como uma dor que quer se ver extirpada: “Andrômaca,
às carícias do esposo arrancada,/De Pirro a escrava, gado vil, trapo terreno,/Ao
pé de ermo sepulcro em êxtase curvada,/Triste viúva de Heitor e, após, mulher
de Heleno!” (..) “Assim, a alma exilada à sombra de uma faia,/Uma lembrança
antiga me ressoa infinda!”. A memória, por infinda, ressoa o infinito, que pode
ser esperança ou lembrança. Pode-se ver o futuro e ao mesmo tempo evocar do
passado algo que da memória não se esgota. O poema é o cisne e é Paris.
A UMA PASSANTE : O poema nos aparece com a sua musa
em fuga, uma musa rarefeita, uma passante: “A rua em torno era um frenético
alarido./Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,/Uma mulher passou,” (...) “Qual
bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia/No olhar, céu lívido onde aflora a
ventania,/A doçura que envolve e o prazer que assassina.” (..) “Não mais hei de
te ver senão na eternidade?/Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!/Pois de ti
já me fui, de mim tu já fugiste,/Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!”.
A visão é tão fugaz quanto os passos rápidos da passante, e com a mesma
velocidade o poema se encerra, como algo que tenta captar a fuga.
SONHO PARISIENSE : O poema abre com sua visão da paisagem,
o sonho parisiense se abre: “Desta fantástica paisagem,/Que ninguém viu jamais
um dia,/Esta manhã ainda a imagem,/Vaga e longínqua, me extasia.” (...) “E,
artista cônscio do que cria,/Eu saboreava em minha tela/A pertinaz monotonia/Do
metal, do óleo e da aquarela.”. O poeta diante de Paris atua aqui tal pintor,
pictórica figura se delineia, o poema vê a cidade como em pinceladas, no que
Baudelaire prossegue: “Demiurgo de ébrias fantasias,/Fazia eu mesmo, ao meu
agrado,/Sob um túnel de pedrarias,/Correr um mar enclausurado;” (...) “E sobre
tais sonhos vividos/Pairava” (...) “Uma mudez de eternidade.”. O sonho
parisiense tenta abarcar então o silêncio da eternidade, este ser da totalidade
que muitas vezes se dá muito mais na meditação e na oração silenciosa do que no
esforço do pensamento, no que o poema segue: “Quando meus olhos eu reabri,/O
horror surgiu numa visão,/E na minha alma eis que senti/O gume agudo da
aflição;/Funéreo pêndulo anunciava/Em dobre atroz o meio-dia,/E o céu as trevas
derramava/Sobre este mundo em agonia.”. Mas do silêncio da eternidade,
alvissareiro, o poeta se vê na verdade diante de sua finitude, e o mundo real é
um mundo em agonia.
A ALMA DO VINHO : Na série famosa de Baudelaire em que
ele, em As Flores do Mal, ele tem como o tema o vinho, o poeta coloca toda a
riqueza poética que tal imagem possui, e tenta, de saída, captar a alma do
vinho: “A alma do vinho, certa tarde, nas garrafas/Cantava: “Homem, elevo a ti,
que me és tão caro,/No cárcere de vidro e lacre em que me abafas,/Um cântico de
luz e de fraterno amparo!”. O vinho aparece aqui como amigo do homem, e dá as
suas boas-vindas, como se vê: “sinto uma alegria imensa quando desço/Pela goela
de quem ao trabalho se entrega,/E seu tépido peito é a tumba onde me aqueço/E
onde me agrada mais estar do que na adega.”. O vinho foi feito para o homem e
não para a adega, e a alegria do vinho é alegrar o homem, vindo da labuta, e
aqui o vinho nos consola com sua alma ébria: “Repousarei em ti, vegetal
ambrosia,/Grão atirado pelo eterno Semeador,/Para que assim de nosso amor nasça
a poesia/Que rumo a Deus há de subir qual rara flor!””. E no fim está a poesia,
a alma do vinho, que em Baudelaire, portanto, desperta a poesia, a qual ruma a
Deus como flor rara.
O VINHO DOS TRAPEIROS :
O vinho aqui aparece
como lenitivo da labuta, esta ideia corrente entre operários, camponeses e
demais trabalhadores que estão na hora do ócio entregues às seduções da bebida,
e o vinho como este ser mais refinado entre várias outras bebidas, no que
Baudelaire segue em poesia: “Muitas vezes, à luz de um lampião sonolento,/Do
qual a chama e o vidro estalam sob o vento,/Num antigo arrabalde, informe
labirinto,/Onde fervilha o povo anônimo e indistinto,/Vê-se um trapeiro
cambaleante, a fronte inquieta,/Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,”
. O trapeiro aqui também é poeta, e o vinho sua alma de poeta, no que o poema
segue: “E sob o azul do céu, como um dossel suspenso,/Embriaga-se na luz de seu
talento imenso.” (...) “Assim é que através da ingênua raça humana/O vinho,
esplêndido Pactolo, do ouro emana;/Pela garganta do homem canta ele os seus
feitos/E reina por seus dons tal como os reis perfeitos.”. O vinho e seus dons
depende do homem, a poesia que do vinho temos a noção vem do homem embriagado,
o vinho só tem alma com esta alma que é a do homem, e os dons de ambos são um
só, exatamente nesta interação de virtude, no que Baudelaire dá a coda
magistral, concluindo esta invenção sagrada: “O Homem o Vinho fez, do Sol filho
sagrado!”
O VINHO DO ASSASSINO : O poema é visceral, e se abre
violentamente: “Livre, afinal! ela está morta!/Posso beber o tempo inteiro.” O
vinho virtuoso aparece aqui em sua face de vício, tal o assassino que bebe o
tempo inteiro: “Sou tão feliz quanto é um rei;/O ar é puro, o céu adorável .../Era
um verão incomparável/Quando por ela me encantei!” (...) “Atirei-a ao fundo de
um poço,/E eu mesmo pus, para cobri-la,/De suas bordas toda a argila./_ Hei de
esquecê-la, se é que posso!” (...) “Eu lhe implorei uma entrevista,/À noite,
numa estrada escura./Ela veio! – a louca criatura!/Talvez em nós um louco
exista!”. Diante da louca criatura, a loucura é descoberta pelo poeta como
habitante da alma humana, e aqui possuída dos miasmas do assassínio: “Quanto eu
a amava! e foi por isso/Que lhe ordenei: Sai desta vida!” (...) “_ Eis-me
liberto e a sós comigo!/Serei à noite um ébrio morto;/Sem nenhum medo ou
desconforto,/Farei da terra o meu abrigo,” (...) “Eu zombo de tudo, do Diabo,/De
Deus ou da Ceia Sagrada!”. O assassino é um zombeteiro, que não reconhece
autoridade e não deve obediência, desertou de Deus e até mesmo do Diabo.
O VINHO DOS AMANTES : O poema é um caminho, uma cavalgada
de dois amantes, é um poema belo, com astral positivo, e se sucede bem como
imagem de amor: “O espaço hoje esplende de vida!/Livres de esporas, freio ou
brida,/Cavalguemos no vinho:”. A vida aparece aqui como afirmativa e
alvissareira, no que os amantes se juntam, nesta imagem poética de Baudelaire,
o poeta do vinho: “Como dois anjos que tortura/Uma implacável calentura,/No
límpido azul da paisagem/Sigamos a fugaz miragem!” (...) “Chegaremos enfim,
risonhos,/Ao paraíso de meus sonhos!”. O paraíso da poesia que é o do vinho e,
por fim, o do amor. Fim sonhador do poema no sonho do vinho e do amor, o vinho
dos amantes, poema bem semeado, poesia linda.
POEMAS:
O CISNE
A Victor Hugo
I
Andrômaca, só penso em ti! O fio d`água
Soturno e pobre espelho onde esplendeu outrora
De tua solidão de viúva a imensa mágoa,
Este mendaz Simeonte em que teu pranto aflora,
Fecundou-me de súbito a fértil memória,
Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel.
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história
Depressa muda mais que um coração infiel);
Só na lembrança vejo esse campo de tendas,
Capitéis e cornijas de esboço indeciso,
A relva, os pedregulhos com musgo nas fendas,
E a miuçalha a brilhar nos ladrilhos do piso.
Ali havia outrora os bichos de uma feira;
Ali eu vi, certa manhã, quando ao céu frio
E límpido o Trabalho acorda, quando a poeira
Levanta no ar silente um furacão sombrio,
Um cisne que escapara enfim ao cativeiro
E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo,
As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro.
Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo,
No pó banhava as asas cheias de aflição,
E dizia, a evocar o seu lago natal:
“Água, quando cairás? quando soarás, trovão?”
Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal,
Tal qual o homem de Ovídio, às vezes num impulso,
Erguer-se para o céu cruelmente azul e irônico,
A cabeça a emergir do pescoço convulso,
Como se a Deus lançasse um desafio agônico!
II
Paris muda! mas nada em minha nostalgia
Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
E essas lembranças pesam mais do que rochedos.
Também diante do Louvre uma imagem me oprime:
Penso em meu grande cisne, quando em fúria o vi,
Qual exilado, tão ridículo e sublime,
Roído de um desejo infindo! e logo em ti,
Andrômaca, às carícias do esposo arrancada,
De Pirro a escrava, gado vil, trapo terreno,
Ao pé de ermo sepulcro em êxtase curvada,
Triste viúva de Heitor e, após, mulher de Heleno!
E penso nessa negra, enferma e emagrecida,
Pés sob a lama, procurando, o olhar febril,
Os velhos coqueirais de uma África esquecida
Por detrás das muralhas do nevoeiro hostil;
Em alguém que perdeu o que o tempo não traz
Nunca mais, nunca mais! nos que mamam da Dor
E das lágrimas bebem qual loba voraz!
Nos órfãos que definham mais do que uma flor!
Assim, a alma exilada à sombra de uma faia,
Uma lembrança antiga me ressoa infinda!
Penso em marujos esquecidos numa praia,
Nos párias, nos galés ... e em outros mais ainda!
(Andrômaca: em grego Andromákhë, esposa de Heitor e mãe de
Astíanax. Após a tomada de Troia, tornou-se escrava de Pirro, filho de Aquiles,
com quem teve três filhos e que depois a repudiou, dando-a a Heleno, irmão de
Heitor/ Simeonte: em grego Simóeis, rio da Tróade no qual outrora desembocava o
rio Escamandro/Pirro: em grego Pýrros, em latim, Pyrrhus (c.318-272 a.C.), rei
de Epiro (295-272), célebre pela dura vitória (por isso conhecida como ‘vitória
de Pirro’) que obteve sobre os romanos em Heracleia (280). Morreu em Argos,
após invadir o Peloponeso, durante uma batalha/Heitor: em grego Héktör, herói
troiano, filho de Príamo e Hécuba, esposo de Andrômaca e pai de Astíanax. Após
realizar várias proezas militares, foi morto por Aquiles, que o arrastou ao
redor das muralhas de Troia amarrado a seu carro/Heleno: em grego, Hélenos, em
latim, Helenus, guerreiro e adivinho troiano, filho de Príamo e Hécuba, irmão
de Heitor e esposo de Andrômaca, que lhe foi dada em casamento por Pirro).
A UMA PASSANTE
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz ... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
SONHO PARISIENSE
A Constantin Guys
I
Desta fantástica paisagem,
Que ninguém viu jamais um dia,
Esta manhã ainda a imagem,
Vaga e longínqua, me extasia.
O sono engendra assombros vários!
Por um capricho singular,
Banira eu já desses cenários
O vegetal irregular,
E, artista cônscio do que cria,
Eu saboreava em minha tela
A pertinaz monotonia
Do metal, do óleo e da aquarela.
Babel de umbrais e colunatas,
Era um palácio ilimitado,
Cheio de fontes e cascatas
Sobre ouro fosco ou cinzelado;
E cataratas vagarosas,
Como cortinas de cristal,
Se despenhavam, luminosas,
Pelas muralhas de metal.
Colunas (árvores, jamais)
Os tanques quietos circundavam,
Onde náiades colossais,
Como donzelas, se miravam;
Azuis lençóis de água fluíam
Por entre os cais de tom diverso,
E por milhões de léguas iam
Rumo às origens do universo;
Havia seixos nunca olhados
E vagas mágicas havia;
Grandes espelhos deslumbrados
Pelo que ali se refletia!
Apáticas e taciturnas,
As torrentes, no azul distante,
Vertiam todo ouro das urnas
Sobre penhascos de diamante.
Demiurgo de ébrias fantasias,
Fazia eu mesmo, ao meu agrado,
Sob um túnel de pedrarias,
Correr um mar enclausurado;
E tudo, a cor mais merencória,
Era solar, claro, irisado;
A água engastava a sua glória
Num raio em si cristalizado.
Além, nem astros nem vestígios
Do sol, sequer nos céus mais baixos,
Para clarear esses prodígios
Ardendo à luz dos próprios fachos!
E sobre tais sonhos vividos
Pairava (hedionda novidade,
Não aos olhos, mas aos ouvidos!)
Uma mudez de eternidade.
II
Quando meus olhos eu reabri,
O horror surgiu numa visão,
E na minha alma eis que senti
O gume agudo da aflição;
Funéreo pêndulo anunciava
Em dobre atroz o meio-dia,
E o céu as trevas derramava
Sobre este mundo em agonia.
A ALMA DO VINHO
A alma do vinho, certa tarde, nas garrafas
Cantava: “Homem, elevo a ti, que me és tão caro,
No cárcere de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico de luz e de fraterno amparo!
Bem sei quanto custou, na tórrida montanha,
De causticante sol, de suor e de mau trato
Para forjar-me a vida e enfim a alma ter ganha.
Mas não serei jamais perverso nem ingrato,
Pois sinto uma alegria imensa quando desço
Pela goela de quem ao trabalho se entrega,
E seu tépido peito é a tumba onde me aqueço
E onde me agrada mais estar do que na adega.
Não ouves os refrãos da domingueira toada
E a esperança que me unge o seio palpitante?
Cotovelos na mesa e a manga arregaçada,
Tu me honrarás e o riso há de ter constante;
Hei de acender-te o olhar à esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e as cores,
E serei para tão tíbio atleta da vida
O óleo que os músculos enrija aos lutadores.
Repousarei em ti, vegetal ambrosia,
Grão atirado pelo eterno Semeador,
Para que assim de nosso amor nasça a poesia
Que rumo a Deus há de subir qual rara flor!”
O VINHO DOS TRAPEIROS
Muitas vezes, à luz de um lampião sonolento,
Do qual a chama e o vidro estalam sob o vento,
Num antigo arrabalde, informe labirinto,
Onde fervilha o povo anônimo e indistinto,
Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,
Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,
E, alheio aos guardas e alcaguetes mais abjetos,
Abrir seu coração em gloriosos projetos.
Juramentos profere e dita leis sublimes,
Derruba os maus, perdoa as vítimas dos crimes,
E sob o azul do céu, como um dossel suspenso,
Embriaga-se na luz de seu talento imenso.
Toda essa gente afeita às aflições caseiras,
Derreada pela idade e farta de canseiras,
Trôpega e curva ao peso atroz do asco infinito,
Vômito escuro de um Paris enorme e aflito,
Retorna, a trescalar do vinho as escorralhas,
Junto aos comparsas fatigados das batalhas,
Os bigodes lembrando insígnias espectrais.
Os estandartes, os pendões e arcos triunfais
Erguem-se ante essa gente, ó solene magia!
E na ensurdecedora e luminosa orgia
Dos gritos, dos clarins, do sol e do tambor,
Trazem eles a glória ao povo ébrio de amor!
Assim é que através da ingênua raça humana
O vinho, esplêndido Pactolo, do ouro emana;
Pela garganta do homem canta ele os seus feitos
E reina por seus dons tal como os reis perfeitos.
E para o ódio afogar e o ócio ir entretendo
Desses malditos que em silêncio vão morrendo,
Em seu remorso Deus o sono havia criado;
O Homem o Vinho fez, do Sol filho sagrado!
(Pactolo: Em grego Paktolós, pequeno rio da Lídia, afluente
do Hermo, célebre pelas pepitas de ouro que abundavam em suas águas, origem da
riqueza de Midas e Creso.)
O VINHO DO ASSASSINO
Livre, afinal! ela está morta!
Posso beber o tempo inteiro.
Quando eu voltava sem dinheiro,
Se ouviam gritos logo à porta.
Sou tão feliz quanto é um rei;
O ar é puro, o céu adorável ...
Era um verão incomparável
Quando por ela me encantei!
A sede atroz que me põe louco
Para saciá-la exigiria
O que de vinho caberia
Em sua tumba. E não é pouco:
Atirei-a ao fundo de um poço,
E eu mesmo pus, para cobri-la,
De suas bordas toda a argila.
_ Hei de esquecê-la, se é que posso!
Em nome das eternas juras,
Pois nada nos pode afastar,
E para nos reconciliar
Como no tempo das venturas,
Eu lhe implorei uma entrevista,
À noite, numa estrada escura.
Ela veio! – a louca criatura!
Talvez em nós um louco exista!
Ela era então ainda garrida,
Embora exausta e já sem viço!
Quanto eu a amava! e foi por isso
Que lhe ordenei: Sai desta vida!
Ninguém me entende. Algum canalha,
Dentre esses ébrios enfadonhos,
Conceberia em seus maus sonhos
Fazer do vinho uma mortalha?
Essa devassa indiferente,
Como qualquer engenho hodierno,
Jamais, no verão ou no inverno,
Sentiu do amor o apelo ardente,
Com suas negras seduções,
Seu cortejo infernal de horrores,
Seus venenos e dissabores,
Seus timbres de ossos e grilhões!
_ Eis-me liberto e a sós comigo!
Serei à noite um ébrio morto;
Sem nenhum medo ou desconforto,
Farei da terra o meu abrigo,
E ali dormirei como um cão!
Podem as rodas da carroça,
Cheia de entulho e lama grossa,
Ou um colérico vagão
Esmagar-me a fronte culpada
Ou cortar-me ao meio, que ao cabo
Eu zombo de tudo, do Diabo,
De Deus ou da Ceia Sagrada!
O VINHO DOS AMANTES
O espaço hoje esplende de vida!
Livres de esporas, freio ou brida,
Cavalguemos no vinho: adiante
Se abre um céu puro e fulgurante!
Como dois anjos que tortura
Uma implacável calentura,
No límpido azul da paisagem
Sigamos a fugaz miragem!
Embalados no íntimo anelo
De um lúcido e febril afã,
Qual num delírio paralelo,
Lado a lado nadando, irmã,
Chegaremos enfim, risonhos,
Ao paraíso de meus sonhos!
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/32258/17/charles-baudelaire-e-as-flores-do-mal-parte-4
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