“A poesia de Baudelaire terá a revelação de um extraordinário
senso plástico e visual”
CHARLES BAUDELAIRE
Das diversas abordagens que se pode ter da poesia de Charles Baudelaire,
estas não podem se furtar, contudo, de algumas das imposições de natureza biográfica
e literária. Por conseguinte, a face dupla de biografia e literatura estão, portanto,
entretecidas com fenômenos de importância crucial para o entendimento do
escritor e do homem Charles Baudelaire, que são: a primeira, o fato de não
podermos desvencilhar o legado, à época, revolucionário de seu livro de poesia
As Flores do Mal, da tortuosa e dolorosa existência que levou seu autor, tendo
consubstanciado ainda, antes mesmo do que vultos como Rimbaud, Rilke ou Yeats,
aquele trânsito do lirismo pessoal ao lirismo da persona; a segunda, a de que
Baudelaire, já muito bem resgatado e erguido em definitivo pela posteridade,
deve ser visto não somente ao lume de sua época, a da agonia romântica, como
também alguém que, mesmo a partir de outras tradições, foi um precursor de uma
forma nova de poesia, antecipando em muito os vultos aqui supracitados, e que
terá, Baudelaire, muitas e cruciais influências que lhe inspirarão sua produção
em poesia e todo o seu ideário estético.
A poesia de Baudelaire terá a revelação de um extraordinário
senso plástico e visual, o que também irá refletir em seu trabalho como o maior
crítico de arte do seu tempo, e que será o responsável, por sua bela intuição,
pelo reconhecimento definitivo de artistas como Delacroix, Manet, Constantin
Guys ou Daumier. Há ainda uma outra visão que demonstra uma das configurações possíveis da poesia
baudelairiana, que é quando Baudelaire, no fragmento XVII de Mon coeur mis à
nu, nos relata a sua funda impressão que lhe causou (e lhe causaria pela vida
afora) o rigor estrutural de um lustre de teatro. E a quem porventura se haja
familiarizado com a arte de Baudelaire se lembrará desta sugestão de uma
analogia entre a arquitetura e feitura de seus poemas e a desse lustre.
O poema baudelairiano é então este “belo objeto luminoso,
cristalino, complicado, circular e simétrico”, no qual se refletirá a conjunção
harmônica entre a emoção e o rigor formal, num conflito espiritual entre
ascensão e queda, carne e espírito, num pólemos heraclitiano que entranhará
toda a tessitura de sua poesia. Tal visão desse lustre será, portanto, uma
antevisão estética de um conceito de poema que irá encontrar eco nas teses
levantadas, posteriormente, pelo Poetic principle de Edgar Poe, do qual
Baudelaire será tributário, guardadas as proporções.
A infância de Baudelaire será, por sua vez, o início da chamada
Queda, à definitiva expulsão do Paraíso, aos sinais de um abismo que não mais
cessará de aprofundar-se e no qual a alma de Baudelaire jamais encontrará
nenhum repouso, num tipo de infinito que não se dará como algo místico, e sim como
o desconhecido no qual se precipita o poeta, como lemos em “Horreur sympatique”,
dor que também será deplorada em “Moesta et errabunda”, que é a da extinção da
ventura paradisíaca.
Aos 20 anos, por sua vez, Baudelaire já é um artista e homem
maduro, embora sua produção poética permaneça ainda quase desconhecida dos
grandes autores da época. E tal momento é o de seu primeiro encontro com a
mulata Jeanne Duval, a Vênus negra, que será a figurante malograda de uma
medíocre féerie levada à cena no Théâtre du Pantheón. A ela Baudelaire se unirá
por quase toda a sua vida, num turbilhão de voluptuosa paixão; e para ela serão
escritos alguns dos mais belos e comovidos poemas de que já teve notícia a
literatura de língua francesa.
Mas tal volúpia de Baudelaire se configurará também de outro
modo: a do observador que se oculta sob as máscaras, como a do dândi estoico e
aristocrático que recorre à “disciplina”, à “higiene” e à “toalete” para
corromper sua espontaneidade, para mortificar o corpo numa ascese do
artificial. Baudelaire, neste momento, já se vê distante do romantismo, já
percebendo esta pálida luz de um mundo em agonia.
Pois para Baudelaire, muitas vezes romântico por seus gostos
e origens, não mais lhe interessava prolongar os abusos e contradições do
romantismo, como tampouco reavivar um movimento literário já em flagrante processo
de dissolução e decomposição. Pois Baudelaire, então, tinha uma sensibilidade
estética e um senso crítico que não se via em seus companheiros de sua época, e
então ele não mais poderia tolerar os transbordamentos líricos e elegíacos dos
agônicos românticos de sua época, já que ele antevia uma nova concepção de romantismo
que diferia em tudo da empostação retórica de um Hugo ou das lamentações
clangorosas de um Musset, além de George Sand lhe repugnar em demasia. E nessa nova
vertente romântica a qual Baudelaire fará parte, já se poderia ver no que o
próprio observará em algumas passagens do Salon de 1846, num tipo de nova pedra
angular fundada na sinceridade.
A formação intelectual e literária de Baudelaire, contudo, estava
muito distante de uma simples restrição ao âmbito do romantismo francês, pois
ele tinha várias outras influências que vão de seus vínculos iniciais com a
Escola Normanda, onde pontificavam Gustave Le Vavasseur e Ernest Prarond – este
o primeiro dos biógrafos do poeta -, bem como suas admirações por Saint-Beuve,
pelo próprio Vigny, cuja nobreza de sentimentos e de linguagem Baudelaire apreciava.
Tendo ainda herdado algo do grande Chateaubriand, do pessimismo filosófico de
Joseph de Maistre, sobretudo o de Les soirées de Saint-Pétersbourg, de
Théophile Gautier, em particular o de La comédie de la mort, de Albertus e de
España, de Aloÿsius Bertrand, cujo Gaspard de la nuit lhe impregna os Petit
poèmes em prose, do Charles Nodier da Inès de las sierras, do Frédéric Soulier
das Mémoires du diable, do Pétrus Borel de Madame Putiphar, ou ainda as suas
grandes admirações da maturidade, que contam com nomes como Flaubert, Balzac e
Stendhal.
E ainda temos as fontes desta formação de Baudelaire devendo
seu tributo a autores de outras épocas, pois seu amor à clareza, à lucidez, à
correção da linguagem, à concisão do estilo estão em lugares distintos do
espírito predominantemente romântico do cenário poético e literário francês de
sua época. E aqui seria o caso de referir as leituras que fez o poeta dos
latinos da decadência, como Marcial, Juvenal, Petrônio, Lucano; dos poetas da
primeira Plêiade, entre os quais Ronsard, du Belay e Belleau; das Satyres e de
L`art poétique de Boileau; de Racine, Pascal e Bossuet; e ainda dos padres da
Igreja latina e dos escritores cristãos, se destacando aqui Tertuliano e Santo
Agostinho, de quem lhe virá o seu platonismo. Há, de outro lado, a influência
que Baudelaire também receberá dos escritores de língua inglesa, onde figuram Coleridge,
Byron, Keats, Maturin, Walpole, Lewis, Thomas Gray, Anne Radcliffe e De
Quincey, bem como os contos de Hoffmann e a mística de Swendeborg, a cujas
obras o romantismo francês – e muito particularmente Baudelaire – deverá em
grande parte o seu satanismo e a sua fantasmagoria gótica. E há, por fim, o seu
encontro crucial com Edgar Poe.
Com Poe haverá uma convergência de pontos de vista e de teses
literárias, muito mais do que um tributo direto de Baudelaire, como autor de As
Flores do Mal, deverá ao gênio de Baltimore. Pois o principal culpado por essa
controvérsia é, aliás, o próprio Baudelaire, não somente pelo fato de ter sido tradutor
de praticamente toda a prosa de Poe, mas também por Baudelaire se referir ao
poeta norte-americano no sentido de ser sua grande influência. Já que ao nos
debruçarmos sobre a obra de ambos, há uma espécie de comunhão conceitual no que
respeita às exigências estético-doutrinárias contidas no Poetic principle. No
entanto, muito do que está em Poe já estava no pré-romantismo de Gray e de
Young, cujos acentos fúnebres e sombrios não eram estranhos a Baudelaire, que
intertextualizou aquele primeiro no poema “Le guignon”.
Por fim, Baudelaire só toma conhecimento da obra de Poe por
volta de 1846, numa época em que, segundo o depoimento de Prarond, de
Champfleury, de Asselineau e de Banville, sua concepção de poesia já se achava bem
definida. Muitos dos poemas de As Flores do Mal, por sua vez, já haviam sido
escritos e alguns deles até mesmo publicados em L`artiste, já tendo Baudelaire alcançado
a valência de poeta original. Não há dúvida de que Baudelaire meditou
longamente sobre o Poetic principle, que ademais traduziu e em parte reproduziu
em suas Notes sur Edgar Poe, mas a influência de Poe em Baudelaire é
conceitual, é de teses e ideias, e não na forma de fazer poesia do autor
célebre de As Flores do Mal.
Pois, neste sentido de um ideário geral, de um espírito
estético, Baudelaire toma em Poe algumas noções que remontam à gênese do que
viria a ser a poesia moderna, tais como as de sua autonomia em relação à
filosofia, a moral, a história, ou a política, das possibilidades de análise
psicológica que oferece um poema, e da economia geral quanto aos meios de
expressão e a própria duração do discurso poético, no que se sabe que Poe
entenderia o poema longo nos termos de “uma contradição pura e simples” ou da
música como dado essencial da linguagem poética. Portanto, mesmo com o fato de
Baudelaire ter se aproveitado e apropriado do sentimento e da substância de
alguns dos poemas de Poe, isto não diz que seja uma submissão literária ao
trabalho de Poe, mas antes o fenômeno de uma prática intertextual que, embora
muito mal vista pelos românticos, foi prática comum pelos antigos, uma vez que até
o século XVI imitar os clássicos era prova de elegância e de bom gosto,
intertextualidade que também veremos nos modernos, sobretudo a partir de The
waste land, de Eliot.
O êxtase hierático de Poe, por sua vez, não terá nada a ver
com o sensualismo dos impulsos místicos de Baudelaire, pois não haverá nenhum
repouso na angústia do abismo baudelairiano, cujas fontes residem em Pascal e na
própria noção cristã da Queda. E o horror de Baudelaire à democracia ou ao
julgamento popular, não é também em Poe que ele colhe, mas sim nas teorias
reacionárias que Joseph de Maistre expõe em Les soirées de Saint-Pétersbourg. E
serão Poe e Maistre, por sua vez, que o levarão também a um outro ponto da
concepção estética, donde se terá o conhecido gosto de Baudelaire pelo difícil,
o seu esforço de evasão, a sua mística da concentração e da lucidez, tal como o
herói emersoniano, com Baudelaire aspirando à condição de um ser “immovably
centred”, culminando em seu espiritualismo e em seu estoicismo de santo e de
esteta, e seu ódio a tudo o que fosse natural, com a sua necessidade de
intermediação e do distanciamento criados pelas máscaras, artifício que irá lhe
conferir, por fim, seu trânsito da pessoa à persona, com a mais visceral e
característica dessas máscaras, que será a do dândi, sem a qual, enfim, Baudelaire
não poderá ser compreendido.
POEMAS:
AO LEITOR: O poema mais que clássico da abertura
de As Flores do Mal, temos o Baudelaire gótico e satanista, com toda a noção do
abismo em suas entranhas, o pecado e a queda, cujas letras e versos aparecem
como numa descarga maligna, e temos: “A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez/Habitam
nosso espírito e o corpo viciam,/E adoráveis remorsos sempre nos saciam,”. Aqui
temos a tragédia dos erros, todo o logro que herdamos e repetimos, o vício
sendo não só algo tóxico, externo, mas também sendo a própria alma confessa de
alguém que está perdido, e com remorsos esta alma da tortura se sacia, no
entanto, no que Baudelaire segue: “Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;/Impomos
alto preço à infâmia confessada,”. A confissão é um peso e uma mordaça, e seu
satanismo aparece, pois um tal Mephisto sempre está à espreita, a nos perturbar
os sentidos e nos dar ideias infames, e Baudelaire continua, impassível: “Na
almofada do mal é Satã Trismegisto/Quem docemente nosso espírito consola,”
(...) “É o Diabo que nos move e até nos manuseia!/Em tudo o que repugna uma
joia encontramos;/Dia após dia, para o Inferno caminhamos,”. O caminho para o
inferno, por fim, é ver o mundo manipulado pelo maligno, como nos faz crer
Baudelaire, neste poema insano: “Espesso, a fervilhar, qual um milhão de
helmintos,/Em nosso crânio um povo de demônios cresce,”. A obsessão aqui é
mental, e que aparece como uma multidão de vermes crescendo no infortunado
crânio humano, joguete deste Mal: “Se o veneno, a paixão, o estupro, a
punhalada/Não bordaram ainda com desenhos finos/A trama vã de nossos míseros
destinos,/É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.”. E o destino aparece
aqui como um ato de ousadia, temos ainda que viver mais, é ao que nos convida
Baudelaire, em seu diabolismo em forma de poema: “Em meio às hienas, às
serpentes, aos chacais,/Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,/Aos
monstros ululantes e às viscosas feras,/No lodaçal de nossos vícios imortais,/Um
há mais feio, mais iníquo, mais imundo!/Sem grandes gestos ou sequer lançar um
grito,/Da Terra, por prazer, faria um só detrito/E num bocejo imenso engoliria
o mundo;/É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,/Com patíbulos sonha, ao
cachimbo agarrado./Tu conheces, leitor, o monstro delicado/- Hipócrita leitor,
meu igual, meu irmão!”. E o contraponto é o demônio que domina o mundo, como
num grande bocejo, o Tédio, este ser indesejável, como a mítica penúria, que
nos rouba a luz, e nos joga no inferno bem conhecido que é o nada, o vazio, e
que tal nada e vazio é tudo o que chamamos de hipocrisia, pois por fim o
companheiro fiel deste demônio do tédio é a hipocrisia, e desta ninguém se
salva, o poeta está irmanado neste abraço de afogados com seu leitor e com a
humanidade.
O ALBATROZ: Eis um dos mais belos poemas de
Baudelaire e de As Flores do Mal, que nos abre ao prazer do voo: “Às vezes, por
prazer, os homens da equipagem/Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,/Que
acompanha, indolente parceiro de viagem,/O navio a singrar por glaucos
patamares./Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,/O monarca do azul,
canhestro e envergonhado,/Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,/As
asas em que fulge um branco imaculado.” E a fusão do albatroz, em seu longo
voo, com a do poeta das alturas, se dá como grande e infindável ventura, esta
ideia cara do poeta como pássaro e voo: “O Poeta se compara ao príncipe da
altura/Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;/Exilado no chão, em meio à
turba obscura,/As asas de gigante impedem-no de andar.”. O sonho que o poeta
tem com o albatroz talvez seja este cume paradisíaco que todo poema tenta
alcançar, o voo como verso, o poema como as asas.
CORRESPONDÊNCIAS: O poema, de bela feitura, nos honra
e orna a vivência, com tal viço natural, no que temos: “A Natureza é um templo
onde vivos pilares/Deixam filtrar não raro insólitos enredos;/O homem o cruza
em meio a um bosque de segredos” (...) “Como ecos longos que à distância se
matizam/Numa vertiginosa e lúgubre unidade,/Tão vasta quanto a noite e quanto a
claridade,/Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.” (...) “Como o
almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,/Que a glória exaltam dos sentidos
e da mente.”. A ideia de totalidade aqui se torna um tipo de sinestesia em que
o poeta com seus sentidos e sua mente tenta captar este todo de que são feitos
os sons, as cores e os perfumes.
O HOMEM E O MAR: O poema tem como temática uma das
concepções mais caras à poesia, a sua relação com o mar, e este poema honra
toda esta música oceânica, no que nos dá tais sons e visões: “Homem liberto,
hás de estar sempre aos pés do mar!/O mar é o teu espelho;” (...) “Apraz-te
mergulhar bem fundo em tua imagem;” (...) “Sois todos esses deuses turvos e
discretos:/Homem, ninguém sondou-te as furnas mais estranhas;/Ó mar, ninguém
tocou-te as íntimas entranhas,” (...) “E todavia há séculos inumeráveis/Combateis
sem nenhum remorso nem piedade,/Tamanho amor guardais à morte e à crueldade,/Ó
meus irmãos, ó gladiadores implacáveis!”. A imagem do homem está no mar, o
espelho deste imenso mar que abraça a poesia e o poeta, e nos dá também a face
do mundo natural.
A BELEZA: O poema evoca a beleza, e ela
aparece toda vaidosa e dona de si: “Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de
pedra,/E meu seio, onde todos vêm buscar a dor,/É feito para ao poeta inspirar
esse amor” (...) “No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;”. Aqui a
beleza também dá as caras como esfinge, a indecifrada, nada mais chamativo do
que um enigma, e a beleza então se dirige aos poetas: “Os poetas, diante de
meus gestos de eloquência,/Aos das estátuas mais altivas semelhantes,/Terminarão
seus dias sob o pó da ciência;/Pois que disponho, para tais dóceis amantes,/De
um puro espelho que idealiza a realidade:/O olhar, meu largo olhar de eterna
claridade!”. A beleza atua enfim aqui como lume aos poetas, estes que podem
aqui ter seu idílio no puro espelho do ideal, a esfinge, bela e vaidosa, e que é
o espelho do poema e no qual o poeta alcança uma realidade mais clara, com a
feição da eternidade.
XXV – SEM TÍTULO: O poema se inicia aqui com um toque
nada sutil e brusco: “Porias o universo inteiro em teu bordel,/Mulher impura! O
tédio é que te torna cruel./Para teus dentes neste jogo exercitar,/A cada dia
um coração tens que sangrar./Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos/E dos
rútilos teixos que ardem nos festejos,/Exibem arrogantes uma vã nobreza,/Sem
conhecer jamais a lei de sua beleza.”. A mulher deste poema aparece em gestos
de versos violentos, numa arrogância que não deixa ao poeta ver as tais leis de
sua beleza, no que o poema segue: “A grandeza do mal de que crês saber tanto/Não
te obriga jamais a vacilar de espanto/Quando a mãe natureza, em desígnios
velados,/Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados/- A ti, vil animal -, para
um gênio forjar?/Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar!”. O gênio é forjado
neste gesto forte que o poema engrandece como um soco, o espanto é do poeta,
pois tal mulher impura está impassível, e o poeta aqui é o elo fraco, e que
tenta, no solavanco, entender tal peça que escreve.
XXXII – SEM TÍTULO: O poema é dirigido a Louchette, no
que temos: “Certa noite bem junto a uma horrenda judia,” (...) “Pus-me a pensar
ao pé desse corpo vendido/Na beleza infeliz que aos olhos me fugia.” (...) “Pois
com fervor teu nobre corpo eu beijaria/E dos teus frescos pés às tuas negras
tranças/Abriria o tesouro das carícias mansas,/Se uma noite, ao rolar de uma
lágrima esguia,/Pudesses, tu, que apenas esse fel destilas,/Ofuscar o esplendor
de tuas frias pupilas.”. A frieza das pupilas desta judia exaspera o poeta e o
poema, num golpe surdo ele tem o fervor do beijo, das carícias mansas, e que no
poema é um esplendor de tais frias pupilas.
POEMAS:
AO LEITOR
A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez
Habitam nosso espírito e o corpo viciam,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam,
Como o mendigo exibe a sua sordidez.
Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;
Impomos alto preço à infâmia confessada,
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.
Na almofada do mal é Satã Trismegisto
Quem docemente nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade então se evola
Por obra deste sábio que age sem ser visto.
É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma joia encontramos;
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum, dentro da treva que nauseia.
Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para espremê-la qual laranja que se enruga.
Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce,
Rio invisível, com lamentos indistintos.
Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.
Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vícios imortais,
Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo!
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra, por prazer, faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;
É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!
(obs: AO LEITOR: Este poema foi publicado pela primeira vez a
1° de junho de 1855 na Revue des deux mondes, acompanhado de 17 outros e sob o
título coletivo de Les fleurs du mal. 9-12: Toda esta estrofe encontra-se
infiltrada de referências alquímicas, ainda em voga na época, sobretudo em
razão da herança que o romantismo francês recebeu da literatura gótica. O tema
reaparecerá em outros poemas, como “Alquimia da dor”, o terceiro “Spleen” e “O
relógio”. 13 et seq: É o Diabo que nos move e até nos manuseia: O satanismo
baudelairiano, já manifesto neste primeiro poema, tem suas raízes não apenas no
maniqueísmo cristão, mas também no legado gótico. A propósito do assunto,
Baudelaire disse em carta a Flaubert: “Sempre me obcecou a impossibilidade de
compreender certas ações ou pensamentos súbitos do homem sem cogitar da
hipótese da intervenção de uma força perversa e que lhe é alheia.” 38: Com patíbulos
sonha, ao cachimbo agarrado: O autor grafa no original a palavra houka, espécie
de narguilé persa.)
O ALBATROZ
Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.
Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.
Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!
O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
(obs: Este poema foi publicado a 10 de abril de 1859 na Revue
française. É provável que Baudelaire o tenha escrito, ou pelo menos concebido,
durante a viagem que fez à ilha Bourbon (hoje ilhas Maurício) em 1841-42.
Entretanto, outros testemunhos o dão como do período de 1843-46. A essas
impressões pessoais se podem acrescentar ainda algumas fontes literárias, como
certa passagem de L`oiseau, de Michelet, publicado em 1856. Só não há dúvida
quanto à terceira estrofe: ela é de 1859 e foi acrescentada ao poema por
sugestão de Charles Asselineau (carta a Baudelaire datada de 20 de fevereiro de
1859). Prova-o ainda o fato de que a estrofe, manuscrita por Baudelaire, figura
à margem do texto do exemplar que o poeta enviou a Flaubert, no qual “O
albatroz” se segue imediatamente à composição que leva o título de “A viagem”.
6-10: O monarca azul, canhestro e envergonhado,/Deixa pender, qual par de remos
junto aos pés,/As asas em que fulge um branco imaculado. // Antes tão belo,
como é feio a desgraça/Esse viajante agora flácido e acanhado!: Cf. “O cisne”,
I, 17-21: “Um cisne que escapara enfim ao cativeiro/ E, nas ásperas lajes os
seus pés ferindo,/ As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro./ Junto a um
regato seco, a ave, o bico abrindo, // No pó banhava as asas cheias de
aflição”; e II, 34-35: “Penso em meu cisne, quando em fúria o vi,/Qual exilado,
tão ridículo e sublime.” A imagem do pássaro “exilado no chão” é recorrente na
obra de Baudelaire, que o compara ao poeta, ou seja, o “príncipe da altura”,
como se lê em “O albatroz”, 13-16: “O Poeta se compara ao príncipe da altura/
Que habita os vendavais e ri da seta no ar;/ Exilado no chão, em meio à turba
obscura,/ As asas de gigante impedem-no de andar.”)
CORRESPONDÊNCIAS
A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.
Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.
Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,
Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
(obs: Este soneto foi também publicado na primeira edição de
As Flores do Mal. O tema é caro a Baudelaire, que a ele se refere já no Salon
de 1846, onde está transcrita a seguinte passagem da Kreisleriana, de Hoffmann:
“Não é apenas quando sonho, mas também quando estou acordado, que descubro uma
analogia e uma íntima comunhão entre as cores, os sons e os perfumes.” Os dois
quartetos, por sua vez, estão transcritos no longo ensaio “Richard Wagner e
Tannhäuser em Paris”, em A arte romântica, onde nos diz Baudelaire: “ ... é que
o som não pode sugerir a cor, as cores não podem dar a ideia de uma melodia, e
o som e a cor são impróprios para traduzir as ideias; e as coisas são sempre
expressas por uma analogia recíproca, desde o dia em que Deus proclamou o mundo
como uma complexa e indivisível totalidade.” Alguns comentaristas consideram
este soneto como uma espécie de definição da estética baudelairiana, que, por
sua vez, irá servir de matriz à estética do simbolismo. A teoria das
correspondências é, todavia, muito anterior a Baudelaire, já estando latente em
textos de autores como Pascal, Malebranche, Spinoza, Hegel, Schelling, Novalis,
São Boaventura e São João da Cruz. Baudelaire a recebe diretamente de Edgar
Poe, mas não se podem esquecer, entre os precursores imediatos, Lavater, Joseph
de Maistre e, acima de qualquer outro, Swedenborg, que nos fala de uma
“tenebrosa e profunda unidade”. 8: Os sons, as cores e os perfumes se
harmonizam. Cf. Baudelaire, “O bobo e a Vênus”, Pequenos poemas em prosa, VII:
“Dir-se-ia que uma luz cada vez mais intensa faz brotar dos objetos cintilações
cada vez mais vívidas, que as flores excitadas ardem no desejo de rivalizar com
o azul do céu pela energia das suas cores, e que o calor, tornando visíveis os
perfumes, os faz subir para o Sol como foguetes.”)
O HOMEM E O MAR
Homem liberto, hás de estar sempre aos pés do mar!
O mar é o teu espelho; a tua alma aprecias
No infinito ir e vir de suas ondas frias,
E nem teu ser é menos acre ao se abismar.
Apraz-te mergulhar bem fundo em tua imagem;
Em teus braços a estreitas, e teu coração
Às vezes se distrai na própria pulsação
Ao rumor dessa queixa indômita e selvagem.
Sois todos esses deuses turvos e discretos:
Homem, ninguém sondou-te as furnas mais estranhas;
Ó mar, ninguém tocou-te as íntimas entranhas,
Tão ciumento que sois de vossos bens secretos!
E todavia há séculos inumeráveis
Combateis sem nenhum remorso nem piedade,
Tamanho amor guardais à morte e à crueldade,
Ó meus irmãos, ó gladiadores implacáveis!
(obs: O poema foi publicado em outubro de 1852 na Revue de
Paris e seu primeiro título era “O homem livre e o mar”. Pode-se associá-lo ao
poema em prosa “Já!” (Pequenos poemas em prosa, XXXIV). O tema é típico do
romantismo.)
A BELEZA
Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vêm buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar esse amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra.
No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;
Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve;
Odeio o movimento e a linha que o descreve,
E nunca choro nem jamais sorrio a nada.
Os poetas, diante de meus gestos de eloquência,
Aos das estátuas mais altivas semelhantes,
Terminarão seus dias sob o pó da ciência;
Pois que disponho, para tais dóceis amantes,
De um puro espelho que idealiza a realidade:
O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!
(obs: Soneto publicado em abril de 1857 na Revue française.
Segundo a concepção sempre dilemática e tensional da estética baudelairiana, a
beleza aparece aqui sob um duplo aspecto: escultural (a pedra) e ideal (o
sonho). 2: Em meu seio, onde todos vêm buscar a dor. Cf. “O confiteor do
artista”, Pequenos poemas em prosa, III: “Ah! terei de sofrer eternamente, ou
eternamente fugir ao belo?”)
XXV – SEM TÍTULO
Porias o universo inteiro em teu bordel,
Mulher impura! O tédio é que te torna cruel.
Para teus dentes neste jogo exercitar,
A cada dia um coração tens que sangrar.
Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos
E dos rútilos teixos que ardem nos festejos,
Exibem arrogantes uma vã nobreza,
Sem conhecer jamais a lei de sua beleza.
Ó monstro cego e surdo, em cruezas fecundo!
Salutar instrumento, vampiro do mundo,
Como não te envergonhas ou não vês sequer
Murchar no espelho teu fascínio de mulher?
A grandeza do mal de que crês saber tanto
Não te obriga jamais a vacilar de espanto
Quando a mãe natureza, em desígnios velados,
Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados
- A ti, vil animal -, para um gênio forjar?
Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar!
XXXII – SEM TÍTULO
Certa noite bem junto a uma horrenda judia,
Como ao longo de um morto outro morto estendido,
Pus-me a pensar ao pé desse corpo vendido
Na beleza infeliz que aos olhos me fugia.
Eu lhe evocava a esplêndida altivez nativa,
O olhar de intensa luz e de graças armado,
O cabelo a servir-lhe de elmo perfumado
E a cuja súbita lembrança o amor se aviva.
Pois com fervor teu nobre corpo eu beijaria
E dos teus frescos pés às tuas negras tranças
Abriria o tesouro das carícias mansas,
Se uma noite, ao rolar de uma lágrima esguia,
Pudesses, tu, que apenas esse fel destilas,
Ofuscar o esplendor de tuas frias pupilas.
(obs: Baudelaire alude aqui à judia de nome Sara, dita
Louchette, com quem manteve ligações amorosas e que lhe inspirou um truculento
poema, em certas passagens bastante original, incluído nas Obras póstumas.)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31763/17/charles-baudelaire-e-as-flores-do-mal-parte-1
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