“ali não tinha pose, era a performance da vida, um cara
vivido ali falava”
Em minhas andanças pelas ruas, tenho o hábito de observar
quem, por todas as vias que passo, pode se tornar personagem de uma boa
crônica, ou de uma má crônica, por que não? Não se trata exatamente de achar em
qualquer um o "Santo Graal das ideias", e nem a busca de um surto de
criatividade em meio ao caos urbano, não, mas de pinçar em meio de tudo, algo
singular, fora dos padrões.
Numa madrugada de quinta-feira, depois de eu ter tomado três
doses de conhaque, depois de ter passado pela beira da praia e visto mulheres e
travestis sendo exploradas por rufiões do submundo, e passando por um quiosque,
no qual resolvi tomar um suco de laranja e fumar um cigarro, vi ao longe, na
areia, um grupo de pessoas, me aproximei deste grupo, vi que eram jovens que
escutavam um recital de um velho com cabelo rasta, e que tinha todo um tom
teatral, cheio de meneios, uma coisa realmente vigorosa, aquilo me encantou, me
tirou do lugar comum daquelas doses rotineiras de conhaque, nas quais estava
muito habituado.
Entrei num mundo paralelo, ali, e já deveria ser bem umas
três horas da madrugada, até porque trabalho só de noite, como cronista maldito
de panfletos, de jornais clandestinos, passo flyers também, não tenho vínculos
com o sistema, e por isso me identifiquei logo de cara com aquele senhor rasta
que era pura ousadia, e que tinha o poder de hipnotizar um grupo de uns dez
jovens, que estavam ali, admirando a performance do velho style rasta.
Ouvia-se da sua performance (peguei o bonde andando):
"Tenho tudo do sabor, sabor do vento, sabor da praia, gosto da madrugada e
de cerveja, gosto da juventude, tenho tesão de tudo, e tudo me pertence, tal
como a água do mar!". Fiquei extasiado com aquelas palavras que eram puro
oráculo e pura sabedoria de rua, e com erudição de inteligência universal.
"Me visto do jeito que quero, faço o que quero, pois Jah Rastafari é meu
pêndulo, meu relógio, tenho minhas horas ao vento, sou poeta ao relento."
Que noite! Pensei em acompanhar aquilo até o fim, via naquele
velho rasta um vigor raro de quem tem a coragem de romper, e na ruptura estar
mais dentro de tudo que todos os outros. "Venha juventude, temos o tempo
do universo, o eterno universo, do qual faço verso e canto pela noite sem
fim." Nada mais restaria para mim naquela madrugada, senão travar um lero
com aquela figura fascinante que me acordou de um transe de conhaque em plena
madrugada urbana.
"Passei pela Jamaica sim, minha cabeça vai aonde eu
quero e como eu quero, sou músico, cantor e poeta. Dou a seta, dou a flecha,
sei da queda." Encantamento puro, êxtase divino e místico, iria
entrevistar aquele cara, não poderia sair dali mais, sem saber um pouco de sua
história, este rasta provavelmente já deveria ter passado por muita coisa,
coisa que ninguém nunca viu. Logo vieram os urras daquela juventude que fazia
um círculo em volta do rasta, parecia um culto, era um culto, o pastor daquelas
ovelhas era o velho rasta, que derramava seus versos de sapiência de um lugar
único, sua alma que rodava pela noite, não teria realmente mais nada para
fazer, e mesmo se tivesse, cancelaria tudo só para ver como aquele evento
terminaria.
Eu, Guilherme Thompson, cronista e outsider profissional,
reconheci ali um outsider muito mais profundo que eu, era o extremo, eu ainda
cantarolava no meio, o rasta já tinha passado do meio, estava na estrada
paralela total, ali vivia, e como vivia, não sei, só sei que estava ali, vivo,
e declamando no meio da praia, em plena madrugada de quinta para sexta, no meio
de uma cidade em que metade de tudo dormia, naquela hora de plenitude e amor. O
rasta certamente era muito mais outsider que metade destes que posam por aí,
pois ali não tinha pose, era a performance da vida, um cara vivido ali falava,
e sabia que jovem é o que vale a pena, pois são eles que ouvem os "malucos
da rua".
Ali continuava a performance mais vigorosa que já tinha
visto: "Eu penso através do encanto, tudo o que canto eu falo do coração,
poesia é tudo de canção, não rima com não, tem tudo de si, pois é sim, sim pra
vida." Na lata! Tinha acabado de ver um golaço. E os urras dos jovens não
paravam, e eram urras de respeito total, nada irônicos, a galera ali realmente estava
curtindo de montão, e eu, com uma curiosidade infinita. Guilherme Thompson, the
observer, tinha dado um furo, já tinha pauta, yes!
E, depois de mais uns quinze minutos de improvisação (sabia
que o rasta improvisava tudo ali, no momento, on the spot), então veio a coda
máxima: "Eu só como vegetais e frutas, tudo é planta, a planta marginal
das ideias, e tudo que é ideia vem da alma, vai para o corpo e vira palavra,
vira canto e é sinal da estrada, vida da estrada, vida de cantor, vida de quem
bate tambor e toca violão, vida de quem bateu de cara, levantou e virou lenda,
é a lenda de cada um, folclore da realidade, vida em atividade, ação direta de
amor, vida incerta que o rumo deu." Fechou a coda. Vivas e bravos. Decidi
me aproximar, discretamente, do velho rasta.
Cheguei até a ele, entre os dez jovens que conversavam com
ele. Pedi licença, educadamente, e travei o lero que precisava: "Caramba
cara! Gostei muito de tudo que você disse, foi tudo de improviso, man?"
"Ah, eu sempre faço o que dá na telha, sempre foi assim, desde que fugi de
casa com dez anos de idade, lá no Nordeste, e resolvi viver por aí. Conheci um
velho hippie, isso era lá pelas bandas dos anos 60, e ele me ensinou
artesanato, e depois mandou eu me virar. Foi bom, passei a viver na estrada,
conheço a América do Sul na palma da minha mão, e tenho tudo escrito em
diários, não sei se passo isso para a frente, mas desencanei e resolvi dar uma
de desapego bicho, sabe como é?!"
"Puxa, sua vida é fascinante, desculpe, não me
apresentei, sou cronista de panfletos, de jornais marginais, meu nome é
Guilherme Thompson, e isso que você fez, aqui agora, foi a melhor coisa do meu
dia, muito obrigado cara, posso citá-lo num texto? Seria uma honra, qual a sua
graça?" "Meu nome de batismo é Francisco, mas, meu nome de guerra, em
meio aos rastas, é Billy Moon. Bem doido, né bicho?" "Incrível."
"Ah, e pode escrever o que tu quiser bicho, não tem
grilo de nada não, nem peço nada, me viro bem por aí, e boa sorte aí nos seus
trampos, a vida não é fácil, mas com poesia e música tudo fica bom, bicho. Nem
sabia que tinha um jornalista aqui por estas bandas, me vendo nessa doideira
improvisada, muito legal bicho, e a juventude nem se fala, são os únicos que
nos ouvem por aqui nesse lugar maluco, já já volto para a mata, que é lá o meu
lugar." "Que bom cara, vou escrever a matéria hoje, o dia em que
conheci Billy Moon, inesquecível, muito obrigado bicho." "Não foi
nada, é isso aí!" "Valeu cara, a gente se vê por aí." "Paz
de Jah." "Paz de Jah".
Guilherme Thompson, cronista e outsider.
(obs 1 : Guilherme Thompson é um pseudônimo que usarei uma
vez ao mês com crônicas fictícias, os outros assuntos gerais e culturais
continuarão sendo abordados na coluna)
(obs 2 : Guilherme Thompson é um cronista outsider,
documentarista eventual, jornalista autodidata, nascido em 01/01/1974 na cidade
do Rio de Janeiro, ganha a vida em jornais diversos, trabalha por demanda
própria, vive nas ruas caçando pauta, meio como um antropólogo intuitivo,
estuda literatura e filosofia por conta própria, gosta de se vestir com camisas
de bandas de rock clássico).
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36768/14/o-dia-em-que-conheci-billy-moon
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