PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

terça-feira, 19 de setembro de 2017

HAMILTON NOGUEIRA – DOSTOIÉVSKI – PARTE III

“quando falamos de conhecimento em Dostoiévski estamos nos referindo a uma realidade carnal, viva, pulsante”

DOSTOIÉVSKI EM FACE DO RACIONALISMO EUROPEU

Temos uma abordagem do romance de Dostoiévski na sua relação com o conhecimento, o que nos leva a dizer que tal forma de expressar questões que envolvem a compreensão humana e suas formas de conhecer a realidade aparece em Dostoiévski ainda com um caráter tão intenso como foi em suas tragédias passionais, pois quando falamos de conhecimento em Dostoiévski estamos nos referindo a uma realidade carnal, viva, pulsante, de um homem visto como ser integral, e não como um método frio em que se fundamenta uma abstração da inteligência pura. Como nos diz Hamilton Nogueira : “O problema desloca-se do plano puramente especulativo para o plano integral da vida. Ele está intimamente ligado ao destino dessas almas dilaceradas pela incerteza e pela angústia.”
Em Dostoiévski, quando nos voltamos a seus personagens, damos com uma realidade viva em que as questões ultrapassam o terreno conceitual e no qual o homem luta contra seus próprios limites, estas barreiras inseridas na sua natureza finita e débil. E tal luta fica numa sujeição a estes limites naturais, diante de aspirações e ambições maiores e ousadas, em que o desenvolvimento normal da vida passa por estes limites intoleráveis da consciência comum, e é neste momento que Dostoiévski nos apresenta tais personagens com este tal temperamento mais ambicioso e profundo, um mundo de intuição universal que lutará o tempo todo contra o mundo medíocre da natureza decaída da simplicidade sensorial de obviedades, do mundo real e prático, da sociabilidade preestabelecida, no que tais personagens de certo modo atormentados colocam a condição humana à prova, numa luta renhida contra o fracasso da natureza comumente partilhada num mundo oco e previsível.
Como nos diz Hamilton Nogueira : “O grande esforço metafísico de Dostoiévski consiste em ultrapassar os limites da razão secundária e transpor a esfera das harmonias eternas. Ele procura sobrepor-se ao tempo, viver fora e acima dele, como se o homem já tivesse sofrido aquela transformação física assinalada no Apocalipse.” E é aqui que é apresentada a ideia de razão principal, que significa este mundo intuitivo de uma essência universal e profunda, numa ausência de limites entre o mundo real e o fantástico, em que o normal e o anormal se tornam indistintos, produto de um tipo mais intenso de inteligência capaz de realizar uma síntese potente que conserva de forma integral as faculdades psíquicas que fazem este grupo específico de personagens que lutam no romance dostoievskiano.
Dostoiévski faz esta realização de tal ideia da “razão principal” no romance O Idiota, em que Muischine é um exemplar concreto e humano desta ideia, como um ser despojado dos limites que poderiam refrear a sua natureza, como um tipo raro da bondade natural do homem selvagem de Rousseau, um exemplar que não foi corrompido pelo pecado original. Mas temos também o fato de que não basta este privilégio de uma natureza específica da razão principal para safar tal personagem dos limites naturais que são o itinerário comum que impedem este exemplar raro como era Muischine de avançar, pois não lhe bastaria esta intuição que desvela os mistérios todos para absolvê-lo de um mundo geralmente decaído.
E como nos lembra Hamilton Nogueira : “Se ao Homem Ridículo ela trouxe uma solução definitiva para o seu caso, por isso que se tratava de uma natureza essencialmente contemplativa e que renunciara por completo a qualquer experiência terrena, para Muischine a razão principal foi ao mesmo tempo a causa da sua grandeza e da sua miséria. (...) É que ele, se bem que já tivesse a intuição do insucesso das suas aventuras, não renunciaria a viver entre os homens.”
E temos diante deste confronto das personagens dostoievskianas com a consciência comum a revelação do temperamento de Dostoiévski como um homem e escritor em conflito contra a utopia moderna do racionalismo técnico e científico de seu tempo, e que ganhava o status de único conhecimento possível da realidade do mundo, uma vez que Dostoiévski se verá logo adiante com questões de profundidades abissais em que tal forma oficial de abordagem do mundo não lhe trará nenhum lenitivo, e então temos um romance dostoievskiano de camadas psíquicas que se debatem em posições desconhecidas pelo racionalismo objetivo e científico, uma realidade psicológica que, no seu extremo, vai se deparar na crença da salvação do mundo pelo mandamento do amor, a questão da fé, e o amor como leitmotiv da obra dostoievskiana.
E como nos diz Hamilton Nogueira : “Quase todos esses pensamentos admiráveis, ditos de outra maneira, Dostoiévski coloca em O Sonho de Um Homem Ridículo. Ele quer demonstrar, por meio deles, o primado da vida contemplativa sobre o exercício da razão pura. A primeira, para atingir a plenitude, ajoelha-se humildemente diante da Verdade Suprema, a segunda, no seu esforço de conhecimento puramente natural, desgarra-se a cada instante do caminho da verdade, choca-se de encontro ao muro sensorial que impede a mobilidade do espírito, sendo tantas vezes a causa do desespero e do desencanto de viver. (...) Essa consciência da vida que o Homem Ridículo adquire durante o seu sonho é o desafio de Dostoiévski ao racionalismo cientificista que dominava o espírito europeu no século XIX, e que através das culturas francesa e alemã, se refletia sobre a intelectualidade russa do seu tempo.”
E Dostoiévski se depara com a realidade do sofrimento humano como algo que aponta para um sentido transcendente em que há a luta de uma natureza decaída, em que o sentido universal das coisas é revelado, pois não há como, nesta visão metafísica e transcendental, limitar tal fenômeno com o plano restrito da natureza comum, e quando esta realidade do sofrimento humano ganha camadas de absurdo e de dor alucinante, temos aí a necessidade de um sentido universal que possa dar conta destas contingências incompreensíveis a olho nu.
E como nos diz Hamilton Nogueira : “Os próprios progressos científicos que aprimoraram a técnica, tornando possível a multiplicidade e a repetição das experiências, não trouxeram, e mesmo não poderiam trazer, a menor claridade aos problemas de ordem moral. (...) O homem contemporâneo continua a sofrer as mesmas angústias dos seus antepassados. E em face dos problemas eternos, em face do mal e do sofrimento só a verdade revelada traz uma solução satisfatória.”
E com Ivan Karamazov, por sua vez, Dostoiévski mostra uma face trevosa de ruptura da ordem moral, pois esta personagem é o exemplo mais bem acabado no romance dostoievskiano da inserção do racionalismo europeu na cosmovisão russa, e que em Ivan revela um racionalismo, que no seu extremo, como diz Hamilton Nogueira : “negando o Espírito desencadeou as forças telúricas, demoníacas, que iriam preparar o terreno para o advento do comunismo.” Ivan Karamazov tem então uma postura de negação da ordem moral, e que se consolida com a sua máxima de que “nada é verdadeiro, tudo é permitido”. E Hamilton Nogueira arremata : “Aquele que não tem nenhuma crença não tem a menor razão para viver de acordo com a consciência comum. O sentido da culpa desaparece. O crime deixa de ser crime.”
Tal negação da ordem moral também aparece em forma bem acabada com Raskolnikov no romance Crime e Castigo, numa trama íntima desta personagem que atinge uma intensidade trágica, que é um marco quase nunca atingido pela literatura universal de todos os tempos, e que tem na inspiração de Dostoiévski uma trama de confronto com a ordem moral que é emblemática e que entra para a História da literatura mundial, e que sobre tal fenômeno, Hamilton Nogueira nos diz : “todas as forças imanentes, próprias à natureza humana, reagem com extraordinária violência contra uma concepção negativista dos valores morais, que conduz ao crime, como se esse fosse um ato normal, às vezes inevitável, e sem a menor repercussão na consciência daqueles que o cometem.”
Ivan Karamazov, por sua vez, não terá a sensação de culpa que acometerá Raskolnikov diante do crime, a tragédia em Ivan é que ele não responde favoravelmente às iluminações da consciência e não adere aos apelos da verdade, ele enfrenta uma dispersão e desagregação interior que não encontra mais sentido para a ordem moral, seu racionalismo é degenerado sob a forma violenta de uma inteligência apartada do ser, da essência das coisas, e será o caminho de Ivan na sua ruptura moral que o levará ao limiar da loucura, numa realidade alucinada. E como nos diz Hamilton Nogueira : “De Ivan, pode-se dizer que concretiza o racionalismo puro, isto é, a inteligência audaciosamente posta ao serviço de uma lógica estéril, que se não apoia sobre os primeiros princípios do conhecimento, mas que atuando sobre seres de razão, sem o menor fundamento na realidade, orientam o espírito humano para as diversas expressões do erro”.
Como disse Chestov, a verdadeira crítica da razão pura está em Dostoiévski e não no filósofo Kant, pois este, como nos diz Hamilton Nogueira : “ao invés de se apoiar no real, como fizeram Aristóteles e Santo Tomás, Kant desenvolveu toda a sua exaustiva dialética sobre fantasmas inexistentes – os julgamentos sintéticos a priori.” Por sua vez, temos Dostoiévski como crítico da razão pura, pois ele se apoiava no mundo real, e não há nele nenhuma teoria do conhecimento ou filosofia conceitual e formal.
Pois a realidade da vida, na sua face trágica e psíquica, realidade pulsante de contradições, era a matéria bruta do romance dostoievskiano, o que era também reflexo de sua negação dos sistemas de pensamento, não havendo nele uma inflexão conceitual que leve a um terreno de abstração, de um mundo racional, formal, calcado no espírito de sistema, comum à filosofia como conhecimento estruturado e lógico. Dostoiévski está voltado a uma humanidade que está inserida em fenômenos mais concretos como o sofrimento e o amor, a trágica realidade da vida é a matéria do romance dostoievskiano, o que o coloca em oposição à inflexão conceitual de esbanjamento lógico e abstrativo.
O romance dostoievskiano tem um alcance psicológico muito mais intenso do que o da psicologia experimental, da técnica do naturalismo científico, pois a vida humana autêntica em toda a sua força e intensidade é que é a matéria de que é feito o trabalho literário de Dostoiévski, e é o romancista um dos que mais contribuíram na literatura para o conhecimento do homem como ele é, e que é tanto o homem russo como o homem de todos os tempos, numa universalidade que vai, ao fim, nos revelar a inteligência divina que governa o todo da realidade humana e universal. E este alcance psicológico que desbancou qualquer inserção feita pela psicologia experimental está presente também no cânon do romance moderno, que tem figuras como Stendhal, Balzac, Tolstói e Proust, além do próprio Dostoiévski.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/35807/17/conhecimento-em-dostoievski-remete-para-uma-realidade-carnal-viva-pulsante






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