“Eu amo o realismo, um realismo tangenciando o fantástico –
diz Dostoiévski”
O ESPÍRITO DO MAL EM OS
POSSESSOS
Dostoiévski faz com alguns de seus personagens uma ligação
entre características humanas e angélicas, mais exatamente no aspecto de anjos
caídos, isto é, demônios. Tais personagens demoníacos se imiscuem na trama dos
atos humanos para provocar a desordem, num movimento de desagregação
sistemática, sutil, e muitas vezes manhosa, que revela como a inteligência
voltada ao mal ganha caráter demoníaco por arte do ardil que reina em ações de
manipulação como são próprias aos demônios encarnados.
Tais movimentos desses personagens na trama aparecem como
provocadoras de certas atmosferas angustiosas e de pavor, e que na inspiração e
no trabalho literário dostoievskianos ganham uma intensidade sui generis pela
mão deste grande romancista, um dos melhores que já surgiu na literatura
mundial. Dostoiévski consegue, segundo Hamilton Nogueira “comunicar-nos as
maiores vibrações de ordem espiritual e afetiva, em poucas palavras, em traços
rápidos, o suficiente para conter o máximo de energia de ideias e de
sentimentos”.
Portanto, o poder psíquico de Dostoiévski está na condensação
máxima de intenções num plano muitas vezes violento e bem medido, em que as
artes humanas nos aparecem no romance dostoievskiano como exemplos bem acabados
da natureza humana muitas vezes vista e descrita em experiências extremas, tal
como é próprio a todos nós sermos autênticos quando nos vemos em
situações-limite, no que em Os Possessos isto aparece em tramas que envolvem
manipulação, suicídio e assassinato.
Stefan Trofimovitch, em Os Possessos, recebe uma visita
enigmática de Liputine, mas, ao vê-lo, tem uma sensação de horror ou de
desgraça próxima, mas, contudo, Liputine representa ainda um tipo inferior de
possesso, isto se este for comparado ao satânico Pedro Verkhovenski, a maior
figura diabólica criada por Dostoiévski. Tal personagem desliza com terrível
desenvoltura e liberdade no romance Os Possessos, e tal atuação se dá como um
agente que provoca a vaidade dos outros e que também lhes inflama desejos, e de
tal modo que estes outros se tornam manipuláveis ao extremo.
Verkhovenski é o principal agente da tempestade que se
desencadeia em Os Possessos, como o centro no qual se ligam os fios das
relações e como o grande responsável por vários destinos que vão afundar nas
sombras, em tramas alucinantes que colocam tais personagens como seres
subjugados pela força demoníaca de Verkhovenski. Este então atua como uma força
irresistível de aniquilamento com um tipo de ação dissolvente e corrosiva.
Verkhovenski tem em suas mãos almas dominadas que se tornam peças inúteis e
descartadas depois que este endemoninhado consegue seu intento.
O realismo dostoievskiano tem um tanto de um movimento que é
de ascensão do real ao fantástico neste romance Os Possessos, no que temos o
próprio Dostoiévski nos dizendo: “Eu amo o realismo, um realismo tangenciando o
fantástico – diz Dostoiévski. – O que para os outros é o fantástico, para mim
constitui a essência mesma do real”. Dostoiévski traz em seus personagens um
drama humano que é uma luta destes para sair de uma zona subterrânea, vencer o
mundo dos sentidos que nestes atua como um tipo de prisão, e que é a luta do
homem autêntico contra a mediocridade, um terreno buscado na área do sonho
contra o homem de ação, o que é também um terreno escorregadio em que se perdem
tais personagens.
Temos então que tais personagens em sonhos fora do terreno da
ação acabam por ser dominados por outros que são centros atuantes de
manipulação e ardil, a prática do mal atravessa outras almas desprevenidas, e
temos então uma junção na trama entre lutas contra a ação cotidiana pelo sonho
do fantástico e a invasão demoníaca dentro destas almas que sucumbem depois de
ver-lhes atiçadas as vaidades e os delírios de grandeza e glória, como presas
perfeitas para a arte do mal destes demônios em forma de gente, como é o caso
do satânico Verkhovenski.
Verkhovenski envolve de tal modo os outros personagens que
estes aparecem como presas em tramas ocultas de caráter diabólico, em que a
salvação pelas forças humanas se perde em meio ao sombrio e malicioso autor de
tramas manipuladoras que é Verkhovenski, com vítimas tais como Kirilov e
Chatov. Kirilov que, por sua vez, vive um sonho suicida em que tal ato capital
é de um tipo de alucinado que ele representa na sua utopia insensata, pois
associa isto com uma ideação de renovação da humanidade pelo suicídio,
quebrando o limite humano feito pela crença em Deus ou de um sofrimento
infernal em decorrência de tal ato, que seriam possíveis meios de evitar esta
ideia de morte total.
Verkhovenski, então, manipula Kirilov ao bel-prazer e
consegue dele o compromisso suicida junto com a confissão falsa do mesmo por
carta do assassinato de Chatov. Pois é Verkhovenski que mata Chatov com um tiro
na testa, pois ele e seu bando consumam a cena, confirmando este assassino frio
tanto como o centro das ações como a figura demoníaca que tem no ardil seu
leitmotiv. Verkhovenski é a figura demoníaca principal do romance
dostoievskiano, tanto em seu poder de manipulação e ardil como em seu ato
extremo de violência, pois age e faz agir com a desenvoltura própria de um
demônio encarnado.
O único personagem que reconhece em Verkhovenski uma figura
demoníaca, contudo, é Stavroguine, e mesmo assim este sofre o seu assédio, tal
como sofreram por esta mesma manha os personagens Kirilov e Chatov, e este
demônio atua, então, obsessivamente sobre Stavroguine, começando pela lisonja
em que lhe inflama a vaidade revolucionária com sonhos de grandeza, e que neste
lugar lhe demonstra a fragilidade humana, invariavelmente presas fáceis tanto
da sensualidade como do orgulho. Da ascensão de Stavroguine resta ao fim a
destruição dos laços sociais deste por obra de Verkhovenski, e isto até levá-lo
a um estado de tortura extrema que causará o seu suicídio.
O romance Os Possessos é uma das mais fulminantes obras de
Dostoiévski, a qual figura como obra-prima da literatura universal. Neste
romance em que o real ganha ares de fantástico temos personagens imortais como
Kirilov, Verkhovenski e Stavroguine. E os demônios que Dostoiévski nos
apresenta são o lado obscuro da natureza humana, com formas de manipulação
revoltantes e alucinadas, demônios estes que representam o interior dos
personagens dostoievskianos mais ardilosos de que se tem notícia, imagem do
inferno consumada de forma magistral em sua invenção máxima do mal que é o
personagem Verkhovenski.
A presença dos demônios na tragédia de Dostoiévski é esta que
confere a universalidade humana em que se misturam as luzes espirituais e da
razão com o lado tenebroso em que se fundam a dor e o desespero, os atos
alucinados no limite e no extremo do sofrimento, as torturas manhosas e o
conflito que busca o esplendor do enigma da vida, a vida atormentada e a
loucura, o aniquilamento e a luz de uma última salvação, a veia do mal e o
sentimento religioso de uma ascensão espiritual, neste paradoxo de céu e
inferno na terra, de demônios como homens que vão do real ao fantástico neste
romance Os Possessos.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/35513/17/dostoievski-eu-amo-o-realismo-um-realismo-tangenciando-o-fantastico
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