PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 30 de outubro de 2010

O HOMEM QUE NÃO VIVEU

De quem senão se dá somente a tristeza,

este emurcheceu, e esqueceu da alegria.

Noites em que ele desce,

não se dá a si mesmo amor e companhia.

Desvela a flor e lamenta com a dor da partida.



Este homem secou no caudaloso verão.

Dormiu na praia seu hipnótico transe

de farelos de pão e fome negra.

Este homem partiu-se em dois,

devorou a sua própria carne,

e mentiu o seu intuito de cadáver.



De quem é só tristeza,

este esqueceu toda alegria infante,

esqueceu o seu duplo no espelho

de uma felicidade dos outros,

emurcheceu e desfaleceu,

corrompeu o próprio coração

em busca de fuga.



Este homem só que foge de si mesmo,

que já não visita os amigos,

que já negou a sua família,

é o ser descampado e deserto

onde o horror floresceu,

este homem não arde mais

como na juventude,

eis que é a essência roubada da floração

em que seu nome foi esquecido

num pranto ignoto de lamentação.



14/02/2009 Gustavo Bastos

NATURAL MISTÉRIO DO POEMA

Um poema estático não existe.

A técnica com que tal poema

se afirma é uma dinâmica qualificada

de motor contínuo.



Se diz que é mero falatório,

então o poema não tem uma consequência

para a nossa vida.

Se diz que o poema é uma assertiva,

então o poema é visto pelo coração e pela razão.

Se diz que o poema é uma paixão,

então o poema lida com o irracional.

Se diz que o poema é uma expressão vital,

então o poema é a vida em palavra cantada.



Um poema estático não existe.

De acordo com a sua exegese ele é

naturalmente múltiplo e variegado.

Se quem o escreve é profícuo em produzi-los,

ele se mantém como técnica e amor pelo verso,

só não sei se o poema é talvez mecânico

ou sentimental, não sei se o poema

é um reflexo solitário e sem concretude,

ou se o poema é uma mentira travestida

de verdade universal,

não sei o que é o poema,

tampouco sabemos o que é o poeta,

somente podemos decifrar o mistério matizado

se o véu de Ísis for rasgado,

mas a natureza conserva em si mesma

o enigma de seus arcanos.



13/02/2009 Gustavo Bastos

SORTE DO DESTEMIDO

Paisagem de paz, já não a tenho

na faca cega da paixão.

Torvelinho de vingança é a febre do apanágio,

musgos e flechas iridescentes,

meu território está na palavra lema

dos incultos e dos bárbaros.



A chama recomeça o seu idílio,

uma nuvem confessa no mármore da verdade,

sou um pássaro ou uma árvore,

vivo nas sede louca dos motéis e sacristias.



Na vida esmerada pelo silêncio e pelo verso,

reúno em meu dorso os cartazes de fogo

em uma rua de prostitutas feias.



Paisagem da guerra, encanta-me o mistério

das armas deflagradas contra os inocentes.

Leva-me em teu corpo de balística

entre os reflexos da criminalística.



A bomba é a palavra mais forte

dos tempos de fome,

sou então o que vira dinamite

e explode em mil matizes,

viro explosão e alvo delineado pela

minha sombra,

deserto de feras imaculadas

e fervor de morte na paz desafiada,

aprendiz que sou da morte e do zunido

que o barulho das armas me propõem.



Que seja, então, leve o fim da minha vida,

com a certeza pura das almas dilatadas

nos campos de dor,

com a estrela náutica do mar verdejante

num fundo de escuridão,

com a flor botânica da flora

que renasce depois da bomba

e que cresce no meu espírito

de trovador de relicários.



13/02/2009 Gustavo Bastos

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

PRIMEIRAS DECLARAÇÕES

Quem vem na noite funda

entrar com as uvas do vinho

e da pátria?



Quem era o meu sangue no sonho vário?

Quem foi que pôs em meu sudário

o vil semeador das fugas?



Eu durmo encastelado no ardor da noite,

em meu solo rachado e em meu céu estrelado.

Sou a coisa primeira de minha filosofia e essência.

Sou a lógica dos sonhos corridos

em uma pira com fogo de vida

e desejos de morte.



Quem vem? Quem será que vem?

Aplaudi a nova margem das amizades eternas

e do som tétrico do arrependimento.

Não sou demônio ou Deus,

não venho dizer que sou astro nas nuvens,

nem quero morrer sem levar comigo

o dia em que fui sobrevida e exército.



Quem vem dourar o meu campo vasto?

Quem um dia virá me levar aos florilégios?

Eu acordo agora com o sentido da vida,

que é um amor frutífero

na onda do tempo,

tempo que é a minha essência

e o meu norte desafogado.



13/02/2009 Gustavo Bastos

PRAGMATISMO SEM ROMANTISMO

Sinto agora que posso correr

atrás de outro amor,

porque as dádivas que me foram dadas

se perderam num passado longínquo.



Joguei dados com a sorte,

e o que ela me disse é que sou

demasiado jovem para casar

e constituir família.



Nas pedras do caminho aprendi

a ser prático, objetivo e duro,

sem as chorosas corrosões do romantismo.



Aprendi como se dá uma volta pela cidade

vendo os diversos amores passando por mim

e eu com o olhar no futuro.



Penso que sei agora para diante

as fundações do meu ser sólido,

sem as loucuras de paixões,

sem os arroubos de antanho,

com muito o que fazer por mim

e pelos meus mais próximos,

esperando a senda de um novo amor,

que não será mais fugaz,

mas firme com os pés na terra.



10/02/2009 Gustavo Bastos

PEQUENAS DISTRAÇÕES

Sem ti posso viver?

Se não me deste o teu beijo,

eu que esperei tanto,

e de esperar tenho apenas o augúrio

de uma vida estrelada.



Se foi o teu corpo reluzindo

nos meus olhos e lamentos,

porque a tua vida não faz a minha melhor.



Eu estava fora do tempo, fora de mim,

numa loucura passional,

passando o reflexo do dia

em minhas pálpebras,

esperando no resto do dia

uma exéquia da razão,

construindo e desconstruindo

o ataque de um poema-amor,

fazendo o suspiro de um poema-corpo,

eu que me dou a você sem te ter,

e que não quero mais esperar

pela noite fatídica de nossos desejos,

porque não posso mais amar

sem o amor que me negaste,

tu que disse estar seca e lânguida,

tu que eu quis e não tive

no resultado da hora derradeira,

e que fiquei no espanto

de uma canção solitária,

louco e extático,

refém apaixonado da lua.



31/01/2009 Gustavo Bastos

O SONHO BENQUISTO

Se vão os sonhos do que diz o poeta,

o poeta que diz estou sonhando,

doce é o efeito estético

de seu pensamento.

Ontologia ritmada em desespero,

facho de luz sonora levantado pelos sentidos,

percepção nostálgica de saltos no escuro,

dores corrosivas de amores mal-amados,

pássaros voando em escalas marítimas,

povoado rupestre em cavernas antigas,

redemoinhos apaixonados de fantasias ornamentais,

flores alucinógenas de poemas maltratados.



Se vão os sonhos do que diz o poeta,

semente, árvore e copa densa,

formigas, abelhas, besouros e jardins.

Numa noite ele se diz selvagem,

no dia seguinte é o mais civilizado dos homens,

nas férias se diz escritor,

nos dias de labuta professor,

nas horas solitárias apenas pensador.



E ele pensa: pensa-a-dor, pensador,

escreve, professa e pensa,

aniquila, reconstrói, rasga papéis,

se emociona, se revolta, chora, ri, confessa,

se desespera e depois dorme.

Acorda novo e começa tudo de novo,

acorda e pensa tudo de novo,

acorda e diz que é sonho

o sonho que ele bendiz.



23 de janeiro de 2009 (Gustavo Bastos)

SOBRE AS AMBIÇÕES ARTÍSTICAS

Tomo na mão os projetos da minha vida,

e penso em tantas outras vidas

que se planejam.



Será que os planos de todas as vidas

lograram êxito?

Será que todas as paixões que despertaram

tais planos foram saciadas?



Penso em poetas e escritores como eu,

que, numa ânsia pelo reconhecimento,

tentaram tudo dizer com as palavras,

tentaram tudo abarcar na corrente indizível

dos desejos.



Tenho pleno no meu sangue

um plano de possibilidades infindáveis,

poetas, estes mortos,

aos quais o veredicto da história literária

ignorou,

e outros tantos eleitos

representantes de épocas e correntes literárias.



Aqui no Brasil posso citá-los às pencas,

Machado de Assis e José de Alencar,

Drummond e Vinícius (já um clichê

da poesia brasileira),

simbolistas, parnasianos, modernistas,

Gonçalves Dias, Castro Alves, Álvares de Azevedo,

Torquato Neto, os concretistas,

uns muito velhos e antigos,

outros tantos novos querendo

um nome nos analectos poéticos do mundo,

uma tropa operária das nobres ambições,

mas que, no entanto, com a pena,

não estão, na maioria das vezes

em que escrevem,

pensando nisso.



Tanto que nem é bom almejar o estrelato,

nem almejar ser um grande dinossauro

do rock, um popstar, um ídolo da juventude.

O que cabe ao humilde é escrever

sem pensar no amanhã,

sem pensar se isto ou aquilo que se faz

em nome da arte, da literatura e dos artistas,

é de mestria ou do quilate

dos vários "eleitos" pela História.



O grande aprendizado, nisso tudo, por exemplo,

na arte da escrita e da poesia,

é deixar que o mar e o vento,

o sol e o céu,

digam para nós

que eles são mais belos

que qualquer poema escrito.



22 de janeiro de 2009 (Gustavo Bastos)

POEMA PARA CRIANÇAS

Numa tarde pousou a andorinha

no galho ressequido.

O que tu queres? Perguntei.

Ela prontamente disse ser

uma ave que brincava de ser sonhadora,

e me disse que eu era apenas

o meu reflexo na sua asa voadora.



Logo a deixei em paz e fui caminhar

com aquela cena na cabeça.

Perguntei a uma fada:

Onde vais com tanta mágica?

Ela me disse que eu era apenas

uma criança boba que ela apreciava.

Perguntei a um gnomo:

Por que te escondes na floresta?

Ele me disse que a vida era doce

e que valia a pena brincar de esconde-esconde

numa paisagem de liberdade.



Eu aqui agora brinco,

um, dois, três ...

lá vai o moleque correr na estrada,

vai sem breque,

como se tudo fosse uma grande

diversão.



22/01/2009 Gustavo Bastos

INTERLÚDIO

Já tocava a hora da meia-noite

quando ainda estava acordado

o bardo num silêncio apaziguado.



Foi fundo ao palácio do medo

e disse secamente:

"Estou vendido aos famintos da praça,

não tenho salário, não tenho pão,

só tenho o meu corpo esguio

e as mãos abertas pedindo perdão."



Foi assim, numa calma plena,

que ele pegou a pena

e entendeu a sua desgraça,

foi embora para uma vida nômade,

encontrou seus iguais na estrada,

e foi viver ébrio como um destemido.



Caminhou em direção ao horizonte,

falou de versos que lhe escapavam

em sonhos quando dormia,

e reteve na alma somente

o dia em que foi feliz.



Já era a meia-noite o seu lar de caminhante,

na rua vazia cantando para ninguém

as suas horas vadias,

um homem e sua saga,

viver por viver com a sua cruz

carregada.



22/01/2009 Gustavo Bastos

terça-feira, 26 de outubro de 2010

HÓSPEDE DA TERRA E DO SANGUE

O que lembrar das orquestras malditas,

Dos sonhos fingidos,

Tão lindos e fortes,

Que não sei que firmamento mora neles?



O que olhar? Se o meu olhar foge?

O que pensar? Se tudo escapa aos sentidos e à razão?

Não. Não esquecerei esta noite dos morcegos,

E as teias das aranhas que grudam no meu corpo.

Não. Não beberei um copo de sangue como se fosse vinho.

Esse tal Cristo de que tanto falam.



Passarei pelo tempo, como armamento da fúria.

Rezarei os terços debaixo de tiros.

Mas é o vil delírio o sonho fraco?

Não. O tenho como força! E a força é que move o mundo.

As almas? Estas passam, tais como os corpos,

Que deles não se separam, e vibram dentro ...

Que para fora vazam.



O que lembrar? Se tais orquestras malditas

Tocam sinfonias tão irritantes

Aos olhos pouco acostumados à beleza?

O que fumar? O que comer? O que beber?

Somente o sangue.

Digo: O meu sangue.

O infante que mora em mim é uma água doce.

Não queiram que eu fale novamente das amarguras,

Ó saudade! Ó campo da miragem!

Venho a esta noite saudar as estrelas!



Meus cansaços não descansam na miragem.

Ó finitude! Poderia ser infinito o teu passo?

Não sei. Vos digo: Deixais no túmulo a fadiga.

O que lembrar? A memória não ajuda a alma,

E nem cura o corpo, que é alma irritada.

Os filhos? Quem saberia educá-los?

A morte e a vida são companheiras no inverno.

O frio da dor é a liberdade exausta.

Para onde fugir?

Não. Não tenho rotas de fuga,

Não tenho trilhas que nos levem ao paraíso.



O que lembrar? As mentiras nos anulam.

O meu ser está rasgado.

Não tenho a lhes dar ... nada?

A tábua de salvação é outra falácia.

Ó mortos! Vivos que estão a me indagar!



Lembrar o quê? Meu sangue eu não o queria!

Como não quero a infância.

Como não quero nascer.

Como não quero viver.

Como não quero morrer.

Lembrar? Não. Não é certo.

Somente resta uma dor,

Esta que é de querer libertar-se,

Sem poder chorar de amor,

Qual rima pobre que insiste,

E que derrama sangue no horror.

OS VELADORES DA NOITE

Nas ruas, altos labores acordam faróis,

estremecem os rouxinóis, pálido tédio,

nos seus prantos calvários.



Tremem as fábulas entre delírios,

saem furiosas as madames mesquinhas.

Em fantasia espero roupas encardidas,

hábito contumaz de agarrar mistérios.



Os silêncios eram uma vaga lembrança.

Teriam ainda ouvido as espadas mortais?

Belezas estavam distraídas pelo campo.

Nem membros e nem corações, velho fantasma

das paredes em que canto esperanças.

Os veladores da noite atravessam latejantes,

as janelas se abriam para ver suas patifarias.



Pelos lamentos desiludidos, falecia o prematuro.

Prefácio da desgraça, cantavam os brejeiros.

Permitiam ainda a confraria dos românticos,

eles queriam a febre do doente terminal.

Reinava a possessão naqueles bosques infernais.



O pântano pronunciava um dialeto rústico,

as fofoqueiras se calavam diante do ódio.

Entornei o vinho que bradava, todos tremiam

no raio rasgado do verso nublado.

Não sonhava mais, e também morria.

Mas, a noite era do divertimento, se vendiam

as joias e os amuletos.



Saúdo os triunfos retumbantes,

não teria o sentimento do amor manchado.

Perdi minhas escolhas, não é um feroz destino?

A boa loucura das cabeças rodopiantes

se faz de álcool às mais vastas liras.

No mar pedia, um pouco de riqueza idiota.

A fauna que governa o nosso tempo,

ter que ser um operário.



Querer a liberdade em vão?

Que beije a febre, não cuido

de minhas dores. Restam sombras

que preferimos negar.



O verde espinho, ao cascalho e à terra,

aqui voraz como terrível.

Pensei em volta de cores, surpresas da queda.

Arquipélagos e penínsulas, o navio que chega.

Perdoem o dom de vencer corredeiras.



Um movimento de revoluções de espírito,

os veladores da noite nunca dormem.

O cérebro cheio de minúcias.

Tão belos cantos negros, espelho do crime fecundo.

Que se desespera, pobreza que se mutila.

O olho insaciável, apetites do meu espírito.

O que revelar então? Suas notas de vida.

Em que me segurar? A fé parece mais um surto,

dos astros se faz natureza em jogos confinado.