PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 29 de junho de 2023

VÉSPERA DE JOGO

Um bom dia grande se abria

na manhã de sol, 

as asas batiam

e o coração voava.


O cheiro de mata,

uma rede para ler,

e o café que estava 

quente, na mão

estava o livro

com versos

que foram

sonhados.


O jogo se teria de tarde,

ao aproximar do crepúsculo,

enquanto Bárbara

fazia a sua análise tática,

e a próxima atração

mostraria o esporte

que vive a todo tempo,

em seu ar livre,

ou no eco

de uma quadra

coberta,

com a saúde

no peito

e o prazer

da liberdade.


29/06/2023 Gustavo Bastos


A BALEIA

Na virada do cais um shot de cachaça,

encalha na praia a baleia branca,

rara, caçada, tinha um arpão na cabeça,

o sangue descia, voavam abutres por perto,

o cheiro de maresia misturado ao de peixe morto,

e um grande sol que nascia, como um halo laranja

que borrava as nuvens em barro roxo,

a densidade da noite indo embora,

diziam que era uma baleia rara,

agonizando, a respiração ofegante,

vinham logo os populares, no alvorecer,

a vila de pescadores virou um tumulto,

morria um bicho em extinção, 

um turista tirou uma foto

e foi censurado por um guarda-vidas,

havia um cheiro de crime no ar,

o arpão foi retirado com jeito,

mas a poça de sangue denunciava,

a baleia branca morrera

por um navio pirata,

sem registro na marinha oficial

ou na mercante,

este navio foi seguido

por um outro, que fazia 

a ronda noturna perto

do farol, uns vagabundos

que negociavam com mercenários,

para o gozo de um restaurante de Kioto,

um tal chef Izomuchi, cuja filha

sabia tudo de rock, um filho otaku

que vivia dentro do quarto,

e uma esposa descendente

de um xogunato xintoísta,

joias dormiam no cofre,

investimentos em dólares,

e o restaurante tinha

um cardápio farto,

até que, naquela manhã

em que a baleia branca

morreu, o filho otaku

de Izomuchi se matava

cortando o próprio ventre

com uma espada de samurai, 

e em seu computador,

na dark web, descansava

na tela uma baleia azul,

do ritual de suicídio

moderno ao antigo,

Izomuchi foi preso e multado,

Koko, sua esposa,

entrou em depressão profunda

e nunca mais comeu

baleia, que era sua iguaria

preferida.


29/06/2023 Gustavo Bastos


WISLAWA SZYMBORSKA É A RENOVAÇÃO DA POESIA POLONESA

“toda uma ideia mistificadora de aura sobre o poeta é desmontada com a ironia, a autoironia e o riso”


Wislawa Szymborska, como poeta polonesa contemporânea de vulto, prêmio Nobel, está entre os escritores do país que recontaram a História e a Verdade da Polônia, uma vez que prevaleceram versões passadas feitas pelos regimes autoritários e que tinham ganhado status de única versão das coisas que aconteceram no país. Os poemas de Szymborska, portanto, já formulam indagações que contestam a versão do regime autoritário sobre a História polonesa, seja de esquerda ou de direita. E ainda são poemas que exploram as feridas abertas durante os períodos nazistas e comunistas no país.

A ironia toma o comentário político na poesia de Szymborska e a guerra vai sendo mostrada em cenários, como no rastro de destruição, que vemos no poema “Fim e começo”, e outras chaves para entrar no tema em outros poemas. Com o tom reflexivo de seus poemas, a crítica identificou certo caráter existencialista em Szymborska, mas em entrevistas ela negou sua filiação ao movimento filosófico ou sequer um cultivo interior deste tipo de filosofia ou qualquer outra. Seu tom brincante, por exemplo, segundo ela própria, não combinava com a sisudez dos existencialistas. Para ela, seus poemas buscam um tipo de chiaroscuro em que se misturam na mesma tela o sublime e o cômico ou trivial.

A distância irônica do Eu lírico consegue suavizar temas sérios, e no caso de Szymborska esta é uma constante em seus poemas.  A densidade e toda uma ideia mistificadora de aura sobre o poeta é desmontada com a ironia, a autoironia e o riso. A função do poeta, colocada em perspectiva vulnerável, usando a ironia sobre a própria atividade, desativa qualquer aura imaginária que se ainda poderia ter. Resta ao incauto enfrentar a realidade e acordar da visão romantizada que um dia fez de uma atividade laboral que é escrever, também no caso dos poetas. A visão romântica do poeta-criador, demiurgo e profeta da Humanidade, feita para donzelas existenciais, dá lugar a um cotidiano caótico em que tal obra se ergue, uma vez que castelos de marfim só existem nos contos de fadas. A poesia retira uma suposta aura sagrada e se destina a um lugar mundano, além de ser cultivada por aficionados e não por toda a população. 

O sentimento de identidade nacional, na poesia polonesa, teve sua versão canônica na poesia romântica produzida neste país durante o século XIX, período em que esta nação deixou de existir, sendo dominada por prussianos, russos e austríacos. As várias insurreições no século XIX para a reconquista da independência da Polônia acabaram fracassando e muitos artistas e intelectuais poloneses foram para o exílio. Os poetas Adam Mickiewicz e Julius Slowacki, exilados na França, se ergueram como vozes e consciência da nação polonesa, após esta ter sumido do mapa político europeu, com estes poetas passando a ocupar então um lugar ilustre no panteão de heróis nacionais. 

Os poloneses passaram a memorizar os versos destes dois poetas, entrando em currículos escolares obrigatórios, com seus poemas sendo declamados no país em celebrações, saraus etc. Portanto, durante o século XX, seguinte a estes poetas-heróis, todo jovem poeta teve que enfrentar este cânone, e no caso de Szymborska esta rebelião contra o cânone aparecia em uma poesia que não gosta do pathos. Ou seja, a estética patética da poesia romântica, tomada pelo sublime e por uma linguagem elevada, é descartada nos versos escritos por Szymborska.  E as constantes revisões que a poeta faz sobre seus escritos torna tudo ainda mais sintético e menos pomposo. 

Por sua vez, o humor de Szymborska se alia ao cotidiano e alcança uma linguagem simples, contudo, sintética e não simplória, pois temas complexos podem atravessar estes poemas de linguagem depurada e condensada. Por fim, é esta característica coloquial, com ironia, humor, rigor formal ao não colocar mais palavras do que se precisa, cortando o que puder ser cortado, é que Szymborska rompe a zona de conforto da poesia romântica canônica e cria uma poesia polonesa contemporânea, com uma dicção renovada.


POEMAS :


EXCESSO


O poema abre como se narrasse uma nova descoberta astronômica : “Foi descoberta uma nova estrela,/o que não significa que ficou mais claro/nem que chegou algo que faltava. (...) A estrela é grande e longínqua,/tão longínqua que é pequena, (...) A estranheza não teria aqui nada de estranho/se ao menos tivéssemos tempo para ela.”. A distância astronômica, o tamanho reduzido produzido por esta distância, na verdade, não se faz de anos-luz, mas sobretudo de uma distância psíquica de nós mesmos e esta estrela, que não atinge o nosso cotidiano, como uma notícia comum que passa batida e é logo esquecida, longínquo aqui ganha um sentido espiritual de relevância para a vida humana comum. E nos círculos mais esclarecidos, tampouco isto produz frisson, uma tese de doutorado, ou uma beberagem de vinho que faça linha direta com o céu, no que temos : “A idade da estrela, a massa da estrela, a posição da estrela, tudo isso quiçá seja suficiente/para uma tese de doutorado/e uma modesta taça de vinho/nos círculos aproximados do céu:” E para os que ainda tinham nas estrelas algo de influência sobre a vida humana, em sentido místico ou próximo disto, Szymborska trata de devastar tal perspectiva com o realismo necessário para a vida : “A estrela não tem consequência./Não influi no clima, na moda, no resultado do jogo,/na mudança de governo, na renda e na crise de valores.” (...) “Excedente em face dos dias contados da vida.” (...) “Pois o que há para perguntar,/sob quantas estrelas um homem nasce,/e sob quantas logo em seguida morre.” (...) “Nova./__ Ao menos me mostre onde ela está./__ Entre o contorno daquela nuvenzinha parda esgarçada e aquele galhinho de acácia mais à esquerda./__ Ah __ exclamo.” Por fim, Szymborska constata que se esgarça nessa procura vã entre o que liga a estrela e a vida humana, e termina exclamando exausta, na falta de conclusões.


A CURTA VIDA DOS NOSSOS ANTEPASSADOS


Szymborska demonstra neste poema a diferença brutal de longevidade entre a vida moderna e a de nossos antepassados, e isto se estende num sentido de referências temporais, em que ao invés de se contar os anos, se contavam as redes, os machados, os ranchos, pois a percepção temporal também tinha outra estrutura : “Não eram muitos os que passavam dos trinta./A velhice era privilégio das pedras e das árvores./A infância durava tanto quanto a dos filhotes dos lobos.” (...) “Meninas de treze anos gerando filhos,/meninos de quatro rastreando ninhos de pássaros na moita./jovens de vinte servindo de guias nas caçadas … /ainda há pouco não existiam, já não existem.” (...) “De todo modo, não contavam os anos./Contavam as redes, os tachos, os ranchos, os machados.”  No tempo curto da vida de nossos antepassados, a sabedoria tinha que surgir rápido, antes das cãs, pois se morria antes que a velhice chegasse, no que temos : “A sabedoria não podia esperar os cabelos brancos./Tinha que ver claro, antes que a claridade chegasse,/e ouvir toda voz, antes que ela se propagasse.” Também a moral ainda era algo nublado, e as noções de bem e de mal, em esforços tribais, se resumia ao reinado de um mal e de um bem que se alternavam, e com diferentes modos de operar seu triunfo ou fracasso, no que vem : “O bem e o mal __/dele sabiam pouco, porém tudo :/quando o mal triunfa, o bem se esconde;/quando o bem aparece, o mal fica de tocaia.” (...) “Por isso se há alegria, é com um misto de aflição,/se há desespero, nunca é sem um fio de esperança./A vida, mesmo se longa, sempre será curta./Curta demais para se acrescentar algo.” Szymborska conclui nesta brevidade da vida, no começo da civilização, que toda alegria era efêmera, contendo nela aflições futuras, e o desespero levava consigo a esperança, uma vez que não se tinha muito a perder, e neste caso o investimento afetivo na esperança era mercadoria barata num mundo ainda hostil para a longevidade.


PRIMEIRA FOTO DE HITLER


Eis um poema bem humorado, e que se reveste de uma contundência brutal, o humor aqui é uma ironia rascante e seminal, um poema impressionante, e uma ideia que eu adoraria ter tido, no que Szymborska vem : “E quem é essa gracinha de tiptop?/É o Adolfinho, filho do casal Hitler!/Será que vai se tornar um doutor em direito?/Ou um tenor da ópera de Viena?/De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?”. A ironia aqui se disfarça como flores mimosas e um cheirinho de lavanda, no que temos : “Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,/quando chegou ao mundo um ano atrás,/não faltaram sinais na terra nem no céu:” (...) “votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,/pouco antes do parto, o sonho profético da mãe :/sonhar com uma pomba - sinal de boas-vindas,/se for pega - vem uma visita muito esperada./Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.”. O poema é rico pelo subtexto, a violência mais ignominiosa da História, no que segue : “Fralda, babador, chupeta, chocalho,/o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,/parecido com os pais, com um gatinho no cesto,/com os bebês de todos os outros álbuns de família./Não, não vai chorar agora,/o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.” (...) “Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,/e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,/firmas sólidas, vizinhos honestos,/cheiro de massa de pão e de sabão cinzento./Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino./Um professor de história afrouxa o colarinho/e boceja sobre os cadernos.” A descrição do bebê Hitler termina e a paisagem do noroeste da Áustria se estende com a coda mostrando com tranquilidade o bocejo de um professor de História sobre os cadernos assim que afrouxou o colarinho. Aqui aparece a brutalidade da ironia de Szymborska, com esta coda em que um historiador inocente aparece sem saber o que lhe aguarda.  


OPINIÃO SOBRE A PORNOGRAFIA


Szymborska se serve da ironia, mais uma vez, e aqui faz do pensamento e de seu desenvolvimento uma orgia, como se fosse uma fita pornográfica, em que cada uso ou método de raciocinar se assemelha a um orgasmo, no que vem : “Não há devassidão maior que o pensamento./Essa diabrura prolifera como erva daninha/num canteiro demarcado para margaridas.” O pensamento, propriamente dito, na perspectiva de Szymborska, se associa ao profano, portanto, à dessacralização, e seus métodos servem para desativar pressupostos irrefletidos, e detonar uma desova para uma nova realidade, em que debulhar os fenômenos através de análises, sínteses e a exposição crua do fato, portanto, mostra a melhor via da verdade da vida, uma vida pensante, desbravadora e depravada, em que a reflexão e a ação estão sempre munidas de técnicas de decifração e deboche, no que segue : “Para aqueles que pensam, nada é sagrado./O topete de chamar as coisas pelos nomes,/a dissolução da análise, a impudicícia da síntese,/a perseguição selvagem e debochada dos fatos nus,/o tatear indecente de temas delicados,/a desova das ideias - é disso que eles gostam.” (...) “À luz do dia ou na escuridão da noite/se juntam aos pares, triângulos e círculos./Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros./Seus olhos brilham, as faces queimam./Um amigo desvirtua o outro./Filhas depravadas degeneram o pai./O irmão leva a irmã mais nova para o mau caminho.” A contaminação entre as ideias, o intelecto que contagia no outro uma nova busca, esta orgia serve a si mesma e contra o medo da ignorância, o pensamento é uma ameaça ao status quo que se acomoda na convenção preguiçosa, o choque é promovido a método em que este pensamento se afirma, pois a coragem é que move o mundo adiante, nas sacudidelas dadas em velhas cidadelas e fortalezas dos acomodados, e nesta orgia do pensamento a festa é longa e até se pode, eventualmente, se espiar a rua, rica também em ideias e inspirações. A poeta Szymborska coloca aqui o tom sexual e pornográfico sobretudo como ligado ao prazer de pensar e de aprender, o pensamento livre é o que conhece, que deseja o saber, e esta descoberta do prazer de uma consciência expandida é um exercício prazeroso como o sexo ou uma eventual fita pornográfica. Todas as associações de Szymborska aqui afirmam esta verdade, que a inteligência é afrodisíaca : “É chocante em que posições,/com que escandalosa simplicidade/um intelecto emprenha o outro!/Tais posições nem o Kamasutra conhece.” (...) “Durante esses encontros só o chá ferve./As pessoas sentam nas cadeiras, movem os lábios.” (...) “Só de vez em quando alguém se levanta,/se aproxima da janela/e pela fresta da cortina/espia a rua.”


ALGUNS GOSTAM DE POESIA


A poeta Szymborska aqui tenta medir a importância da poesia de acordo com a sua relevância real, e parte direto ao ponto, se perguntando sobre quem gosta de poesia ou não, no que segue : “Alguns -/ou seja nem todos./Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria./Sem contar a escola onde é obrigatório/e os próprios poetas/seriam talvez uns dois em mil.” (...) “Gostam -/mas também se gosta de canja de galinha,/gosta-se de galanteios e da cor azul,”. A especulação poética em torno de seu próprio valor, ganhando este caráter aparentemente pragmático, termina por estar na pergunta essencial do que é poesia, e assim definir seu valor simbólico, a sua causa de existir e sua finalidade, no que Szymborska não conclui e deixa a questão em aberto, esta mesma abertura em que se desenvolve o pensamento e a própria poesia. Neste caso, aqui temos isto na sua coda : “De poesia -/mas o que é isso, poesia./Muita resposta vaga/já foi dada a essa pergunta./Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso/como a uma tábua de salvação.”


FIM E COMEÇO


Szymborska aqui descreve o cenário comum de reconstrução material do pós-guerra, suas vicissitudes e a posterior transição para uma nova realidade em que o estrago feito pela guerra vai se dissipando, no que temos : “Depois de cada guerra/alguém tem que fazer a faxina./Colocar uma certa ordem” (...) “Alguém tem que jogar o entulho/para o lado da estrada/para que possam passar/os carros carregando os corpos.” (...) “Alguém tem que arrastar a viga/para apoiar a parede,/pôr a porta nos caixilhos,/envidraçar a janela.” (...) “A cena não rende foto/e leva anos./E todas as câmeras já debandaram/para outra guerra.” (...) “As pontes têm que ser refeitas,/e também as estações./De tanto arregaçá-las,/as mangas ficarão em farrapos.” (...) “Alguém de vassoura na mão/ainda recorda como foi./Alguém escuta/meneando a cabeça que se safou./Mas ao seu redor/já começam a rondar/os que acham tudo muito chato.” Portanto, aos poucos, na sucessão geracional, o esquecimento da guerra, de sua violência, de seus mortos, toma conta do cenário, e as edificações e ruas destruídas já não fazem mais parte das lembranças, pois a maioria agora já nasceu após estes eventos catastróficos, no que temos : “Os que sabiam/o que aqui se passou/devem dar lugar àqueles/que pouco sabem./Ou menos que pouco./E por fim nada mais que nada.” Por fim, caberá até mesmo um idílio poético onde um dia se fez o cenário desta guerra : “Na relva que cobriu/as causas e os efeitos/alguém deve se deitar/com um capim entre os dentes/e namorar as nuvens.”


COMEDIAZINHAS


O poema fala dos anjos e do que devem ser seus gostos. Na visão de Szymborska eles não se encantam pelos romances e nem pela poesia, mas sim por comédias do cinema mudo, no que segue : “Se existem anjos/acho que não leem/nossos romances” (...) “nem os nossos versos/reclamando do mundo.” (...) “Os espasmos e os gritos/de nossas peças teatrais/devem - suspeito -/impacienta-los.” (...) “No intervalo de seus afazeres/angélicos, isto é, não humanos,/assistem antes/às nossas comediazinhas/do tempo do cinema mudo.” E Szymborska vai explicando as razões desta preferência, no que segue : “Aos que se lamentam,/rasgam as vestes/e rangem os dentes,/preferem - penso eu - aquele pobre-diabo/que agarra o que se afoga pela peruca/ou faminto devora/o cordão do sapato.” A pergunta condicional se existem anjos é altamente especulativa, transitando entre crenças judaicas e cristãs e a fantasia evidente para os céticos. Contudo, Szymborska, ainda que condicionalmente, respeitando limites filosóficos, especula em cima de um ente que também não dá a certeza de sua existência, uma especulação poética para escrever um poema, e assim a arte embeleza uma incógnita, como muitas vezes faz, no que segue : “Se existem anjos,/deveriam - assim espero -/estar convencidos/dessa alegria que oscila no terror/e nem sequer grita socorro socorro/porque tudo se passa em silêncio.” (...) “Ouso até imaginar/que aplaudem com as asas/e que de seus olhos caem lágrimas/pelo menos de riso.”


ENTRE MUITOS


O enigma da origem toma a poeta Szymborska neste poema. Aqui no sentido de ser ela quem é e estar onde está, na especulação que envolve as circunstâncias de uma vida, suas transformações ou não, e que define um caminho de possibilidades ou da falta destas, no que temos : “Sou quem sou./Inconcebível acaso/como todos os acasos.” (...) “Fossem outros/os meus antepassados/e de outro ninho/eu voaria/ou de sob outro tronco/coberta de escamas eu rastejaria.” (...) “No guarda-roupa da natureza/há trajes de sobra./O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo./Cada um cai como uma luva/e é usado sem reclamar/até se gastar.” Szymborska também se questiona entre seu individualismo e a possibilidade de poder ter sido mais gregária, como num cardume ou num enxame, por exemplo, no que segue : “Eu também não tive escolha/mas não me queixo./Poderia ter sido alguém/muito menos individual./Alguém do formigueiro, do cardume/zunindo no enxame,/uma fatia  de paisagem fustigada pelo vento.” (...) “E se eu despertasse nas pessoas o medo,/ou só aversão,/ou só pena?” Szymborska então parte para a especulação insana sobre a condicional de se ela tivesse tido outra origem, o que ela seria, e aqui vemos : “Se eu não tivesse nascido/na tribo adequada/e diante de mim se fechassem os caminhos?” (...) “A sorte até agora/me tem sido favorável.” (...) “Poderia não me ser dada/a lembrança dos bons momentos.” (...) “Poderia ser eu mesma - mas sem o espanto,/e isso significaria/alguém totalmente diferente.” Ser diferente, um outro, já não é mais ser o que é, o princípio de identidade aqui se liga umbilicalmente ao enigma da origem, no que se refere à individuação e o surgimento de uma personalidade, de uma pessoa, aqui no caso da poeta Wislawa Szymborska.


(obs : Título do livro : Poemas / Autora : Wislawa Szymborska / Tradução : Regina Przybycien / Editora : Companhia das Letras)


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com