PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

A VOLTA DO SHOEGAZE

“no ressurgimento do shoegaze, este se deu sobretudo com o retorno oficial do My Bloody Valentine”

O shoegaze é um estilo de rock que surge do meio para o fim da década de 1980, inicialmente como um fenômeno britânico, com bandas praticando uma música que combinava uma muralha sonora e distorcida (que tem origem no produtor Phil Spector), em uma música altíssima, com vocais etéreos e suaves, fazendo um som sem o fundo esquemático habitual de refrãos e solos, como um barulho contínuo que vem de bandas pioneiras como a The Jesus and Mary Chain, a primeira fase do Sonic Youth e muito do que fazia o Cocteau Twins, e com origem mais remota no caos sonoro do The Velvet Underground.
Podemos dizer que no shoegaze a parte suave e a melodia vinham dos Cocteau Twins, e a parte do “wall of sound” (muro de som) tinha inspiração no álbum Psychocandy do The Jesus and Mary Chain. Também podemos situar outra influência para o estilo que foi a banda de space rock alternativo, a Spacemen 3, banda que daria origem, depois, ao bem-sucedido Spiritualized.
O shoegaze teve então seu ápice no início dos anos 1990, e um de seus marcos pode ser o lançamento da música “Isn't Anything" do My Bloody Valentine, em 1988, desta que viria a ser a maior banda do gênero shoegaze, marco inicial que também pode estar no som hipnótico que já praticava a banda Loop.
O nome do gênero shoegaze, por sua vez, vem da postura dos músicos destas bandas no palco, como figuras tímidas ou alheias ao burburinho comum dos shows de rock, sem interagir com o público, olhando para baixo, ou melhor, para os próprios sapatos, daí o termo em inglês para definir o estilo musical, isto é, não pelo som, mas pela figura que fazia os músicos destas bandas no palco ao vivo.
Das bandas que surgiram no gênero shoegaze, temos, além da icônica My Bloody Valentine, bandas como Lush, com destaque para seu segundo álbum, o Split, de 1994, a banda Slowdive, que depois de seu debut, Just For a Day, de 1991, se destacou com o Souvlaki, de 1993, seguindo a linha do debut, com a junção dos climas do dream pop e da sujeira psicodélica do shoegaze, como um álbum que levava adiante o ápice da experiência shoegaze que foi o álbum Loveless, de 1991, do My Bloody Valentine, este que é considerado a maior obra do gênero shoegaze. O álbum Souvlaki, do Slowdive, que, por sua vez, contou com a colaboração do mestre da música ambient e produtor de renome, Brian Eno.
O Chapterhouse, por sua vez, outra banda shoegaze, se destaca com seu debut de 1991, o Whirlpool, banda esta que ainda lançaria o bom álbum de 1993, o Blood Music, para depois ser dissolvido. O Ride, por sua vez, tem seu debut em 1990, o Nowhere, álbum que deu início ao movimento que daria no Loveless de 1991 do My Bloody Valentine, e também de trabalhos de outros grupos que se desenvolveriam na década de 1990.
Nowhere que era também um álbum que bebia na fonte dos primeiros anos do Sonic Youth, bem como de outras bandas da cena de Nova Iorque, banda Ride que também se destaca com seu segundo álbum de 1992, o Going Blank Again. Temos também bandas como a Medicine, grupo norte-americano que criou os parâmetros do shoegaze nos Estados Unidos, que tem o debut Shot Forth Self Living, de 1992, e que se consolida com seu segundo álbum, o The Buried Life, de 1993.
E temos também bandas que começaram suas carreiras sob a influência e fazendo o som shoegaze, para depois seguirem outro caminho, que são bandas como a Lilys, que bebeu na fonte do My Bloody Valentine em seu debut, o In The Presence of Nothing, depois indo para o dream pop, e também o começo da banda psicodélica Brian Jonestown Massacre. E ainda podem ser citadas bandas como o Catherine Wheel, que lançou o álbum Ferment de 1992, o Swervedriver, com o álbum Mezcal Head de 1993, o Curve, com o álbum Doppelgänger de 1992, e por fim, também podemos citar bandas como The Verve, Moose, The Radio Dept. e The Boo Radleys.
A decadência do shoegaze, no entanto, ainda ocorreu neste mesmo meio da década de 1990, pois tudo seria transformado pela explosão grunge, que teve como primeiro brilho o álbum Facelift de 1990, da banda Alice In Chains, e que veria o estrelato mundial com o estouro da música “Smells Like Teen Spirit” e o álbum Nevermind de 1991 do Nirvana, e depois viria a onda inglesa do brit-pop, com destaque para a disputa entre o Oasis e o Blur.
O My Bloody Valentine entra num hiato a partir de 1995, o Slowdive tem prejuízos numa autofinanciada turnê norte-americana, país que abrigou, além do Medicine, somente a banda Galaxie 500, como nomeadamente banda shoegaze, sendo este sempre um estilo discreto, fora do mainstream, e de cara britânica mais do que outra coisa.
E temos também, nesta queda do shoegaze, o fato curioso de que em 1993 é o ano em que foi lançado o último sopro do shoegaze nos anos 1990, o Souvlaki do Slowdive, coincidindo com o debut da banda Suede auto-intitulado, este já transformando o cenário musical britânico em direção à eclosão do brit-pop, eclipsando de vez o shoegaze, com bandas como o Ride indo até 1996, quando acaba, o Slowdive dando origem ao Mojave 3, o Lush durando até 1998, e o The Verve, banda do último ciclo do shoegaze, que viria a criar um dos hinos do brit-pop, a música “Bittersweet Symphony”, como uma sobrevivente do movimento, abraçando o outro movimento que surgia.
O shoegaze, mesmo com toda a sua discrição no cenário da música, nunca foi do mainstream, não deixou de ser influência para bandas que surgiriam depois do eclipse do movimento, com bandas que viriam a constituir o que seria chamado de post-rock, no fim do século XX, como os Islandeses do Sigur Rós, o Mogway, o Mono e o Explosions In The Sky, e, de outro lado, os M83, da França, que dariam uma versão mais eletrônica a partir desta influência.
Tendo o shoegaze também influenciado bandas como os Smashing Pumpkins, o The Cure, como no álbum Wish de 1992, e o pós-grunge do Bush, do Garbage e do Deftones, e o U2 do álbum Zooropa de 1993. E temos também hoje bandas como a Beach House, que está situada no dream pop, mas que pode evocar o clima shoegaze mais refinado e menos sujo, na versão vocal suave. E temos também o que pode ser chamado de “newgaze”, como a banda Asobi Seksu, que fica entre My Bloody Valentine, Cocteau Twins e o J-Pop.
Em 2014, por sua vez, temos o lançamento do documentário norte-americano Beautiful Noise, que retrata a história do shoegaze, a partir das histórias de bandas como Cocteau Twins, The Jesus and Mary Chain, My Bloody Valentine, Ride, Chapterhouse, Curve, dentre outras. Um som que tem origem em experimentações que já eram feitas, de outro modo, por bandas das décadas de 1960 e 1970, como os 13th Floor Elevators, Pink Floyd, Blue Cheer, Country Joe and the Fish, The Creation, Music Machine, o já citado The Velvet Underground e até o pré-punk Stooges, e também Jimi Hendrix e até mesmo a fase psicodélica dos The Beatles.
No Brasil, por sua vez, a influência do shoegaze se deu em bandas como a de São Paulo, dos anos 1990, a Pin Ups, com fontes em The Jesus and Mary Chain, Telescopes e Loop, além de The Stooges, e a Second Come, do Rio de Janeiro, juntando o som sujo shoegaze, com Black Sabbath, também The Stooges, e temos também uma banda de Piracicaba, que parte de Sonic Youth e tem um lado grunge, que é a Killing Chainsaw, além do shoegaze também influenciar muito do que está sendo feito atualmente aqui no Brasil como lá fora.
E falando na volta ou no ressurgimento do shoegaze, este se deu sobretudo com o retorno oficial do My Bloody Valentine com o novo álbum lançado em 2013, o profundo, sonoro e climático, MBV, com um som ainda mais cascudo em comparação com as suas origens, e temos também o álbum novo do Slowdive em 2017, este homônimo, e também, ainda mais, a volta do Ride, do Swervedriver e a nova excursão do The Jesus and Mary Chain com a execução do Psychocandy.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/36867/14/a-volta-do-shoegaze





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terça-feira, 5 de dezembro de 2017

ANTOLOGIA POÉTICA CASSIANO RICARDO – PARTE I

CASSIANO RICARDO : BIOGRAFIA E PRIMEIRAS OBRAS

“Martim-Cererê, por sua vez, é o livro mais importante dessa fase”

Cassiano Ricardo nasceu em 1895, cursou Direito, tendo ainda aos doze anos fundado uma revista de nome “Íris”, e depois, a “Panóplia”, e depois lançando a “Novíssima” e se iniciando no jornalismo profissional no Correio Paulistano, fundando e dirigindo vários jornais durante a sua vida, incluindo-se aí o Anhanguera e o A Manhã. Cassiano Ricardo, por fim, além de poeta, foi também grande ensaísta, editor, historiador, estudou também temas sociológicos, e foi membro da Academia Paulista e Brasileira de Letras.
Na sua estreia, com o livro "Dentro da Noite", em 1915, aos vinte anos, o poeta já nos apresenta uma poesia de versos heterométricos, com versos sombrios e de clima pesado, que deixam para trás o parnasianismo vigente. E mesmo que o poeta tenha sido treinado em seu estro pela herança parnasiana, usando e ficando muito tempo preso nesta forma, ele logo avançou para a poesia moderna que então surgiria no cenário da poesia nacional, destacando-se agora seu livro de poesia “Vamos Caçar Papagaios”, que já apontava para um de seus grandes trabalhos, que será o Martim Cererê, um clássico do modernismo brasileiro que terá uma visão geral da história nacional, misturando em seu bojo a mitologia nativa, a cultura cafeeira e a nascente indústria. A prática poética de Cassiano Ricardo, portanto, passa, falando do estro já moderno, pela influência que carrega toda a tradição poética brasileira, que vai do extremo de D . Dinis e chega ao outro extremo que será a poesia de Fernando Pessoa.
Cassiano Ricardo foi um poeta que, assim como grande parte de sua geração, a primeira do Modernismo, recebeu influência inicial do simbolismo e do parnasianismo, com livros como Dentro da noite (1915) e A frauta de Pã (1917). Mas, mais para a frente, o poeta fez novas experiências que lhe fizeram alcançar uma dicção das vanguardas poéticas mais recentes, o colocando dentro da poesia moderna por inteiro, agora com livros de poesia como Vamos caçar papagaios (1926) e Martim-Cererê (1928), com o poeta já nos dando  a face de uma poesia nacionalista, com temas gerais da brasilidade. Martim-Cererê, por sua vez, sendo o livro mais importante dessa fase, recriando o périplo da descoberta e da colonização do Brasil, com temas também da flora e a da fauna brasileira, da vida indígena, do bandeirante, do imigrante, e o tema urbano da expansão de São Paulo também. 

POEMAS :

DO LIVRO “DENTRO DA NOITE” (1915)

IARA, A MULHER VERDE : O poema ganha esta cor natural do verde, em canto de Iara, que nos 
convida, e o poeta aqui canta o excesso da terra brasileira, no que vem : “Neste país de coisas em excesso/o sol me agride, o azul passa da conta./No entanto, os poucos beijos que te peço/o teu amor futuro me desconta.”. E o país em sua cor extrema, tem a natureza que se excede, e o assombro de um amor natural se espalha neste poema bem leve e suave : “No país do excessivo, és muito pouca./Vê a borboleta jovem, como esvoaça./Vê como nos convida a manhã louca!/Por que seres assim, se tudo é assombro,/se a própria nuvem branca – e com que graça –/só falta vir pousar em nosso ombro?”.

DO LIVRO “A FRAUTA DE PÔ (1917)

VIAGEM PERDIDA : O poema tem um tom utópico de uma terra longínqua, evocando lugares míticos de uma era de ouro ou de uma ilha qualquer e perfeita, no que segue : “Há um longínquo país que às vezes visitamos;/extasia-se o olhar que os recantos lhe sonde,/entre o suave frescor dos seus verdes recamos/e a luxúria pagã que envolve cada fronte .../Essa é a pátria encantada e longe, que sonhamos/conquistar, algum dia, ao mistério que a esconde.”. O poema, no entanto, inverte as expectativas, e o lugar utópico agora é este lume infeliz em que a esperança lutará em vão diante de frutos verdes, é um fim de mundo da viagem perdida que dá titulo ao poema, no que segue : “Vós, que andais a sonhar, pela existência em fora,/esquecei, no passado, as ilusões sepultas,/ide a esse fim de mundo onde a Esperança mora./Ide, mas não proveis dos frutos que colherdes,/nesse reino infeliz, de esmeraldas ocultas,/nesse estranho pomar que só dá frutos verdes ...”.

DO LIVRO “VAMOS CAÇAR PAPAGAIOS” (1926)

MANHÃ DE CAÇA : O caçador aqui aparece como o poeta que narra seu périplo pela mata, descreve com bastante arte o protesto da floresta, um cipoal de penas e gritos, um comício, uma assembleia florestal, em que o caçador se espanta mas atira, no que segue : “Mal entrava eu no mato/era um delírio. Os papagaios/se reuniam em bando, protestando./Como em verde comício.” (...) “Araras, canindés, maitacas/mais ensurdecedoras que matracas,/reunidas em bando,/também gritavam, me acusando./Mas por que tanto horror? Por que, de súbito,/tanto medo insensato?/Como se eu não soubesse,/com absoluta certeza, que era o mato/contra a minha maueza.”. Os donos da floresta continuam esta algazarra, protestam contra o intruso, no que segue : “eram os donos do país selvagem/e confuso,/lavravam seu protesto contra o intruso,/gritando, gritando.” (...) “Conferenciavam, graves, os tucanos./Saltavam rãs e gafanhotos,/junto a meus pés, a meus sapatos rotos./O caapora acendia o fogo do cachimbo./A mãe-d`água – se é que a mãe-d`água existe –/saltava como louca,  a face oculta/em seu cabelo verde – se é verdade/que o seu cabelo é verde./Como se eu não soubesse que no mato/tudo é cabelo verde, é susto, é graça,/é surpresa, é protesto/(quando não é a solidão selvagem).” : A cor verde predomina e a floresta com seus bichos e suas lendas aparecem aos borbotões neste poema ecológico em que o caçador é confrontado e interpelado por uma natureza viva e atuante, no que segue : “E eu apontava o cano da espingarda/e bumba! um papagaio verde-gaio/caía ao solo e os outros, com assombro,/se reuniam em bando, gritando.” (...) “E – último eco – uma voz, enroscada/Num cipoal em flor, numa barba-de-bode,/ficava protestando:/não pode!/não pode!”. O poema encerra com esta natureza viva e falante, que protesta contra o caçador, aqui como a voz presente do poeta que dá estes versos.

A CIDADE DOS SAPOS : O poema aqui funciona como uma paródia ou um paralelo ao famoso poema de Manuel Bandeira, ou ainda busca inspiração neste outro poeta modernista, mas aqui tendo a pretensão de demonstrar um novo grupo de sapos, não mais os parnasianos de Bandeira, mas uma nova classe de sapos falantes, no que temos : “Os sapos que eu conheço/no bairro onde resido,/gritam, desde o começo/da noite, ao meu ouvido./Gritam a noite inteira;/porém, são mais humanos,/sob um certo sentido,/que os de Manuel Bandeira./Pois não são parnasianos/e nem tomam parte/em discussões sobre arte./São, todos, operários/e dão-se a ofícios vários.”. Temos os sapos operários, eis que aparece o sapo que é ferreiro, no que segue : “Um deles é ferreiro.” (...) “A julgar pelo ruído/que sai dos seus martelos/só o sapo ferreiro/já construiu no charco/uns duzentos castelos.”. E o poema tem também o sapo que é carpinteiro, no que segue : “Este outro, carpinteiro,/sapo de alma canora,/em plena noite escura,/conserta a fechadura/do palácio onde mora.”. E temos também um sapo que é pedreiro, no que segue : “Aquele outro é pedreiro./Mais que pedreiro herói./Tudo o que ele constrói/a água da enchente arrasa ...”. E temos, enfim, os moradores do brejo, intanha viúva, sapo-pipa, e um sapo que é filósofo, com sua chatice indagadora habitual, que Cassiano Ricardo retrata com um humor sutil, no que temos :  “Mas há outros, que invejo,/moradores do brejo :/Uma intanha viúva,/os olhos fora da órbita,/pensa que o luar é chuva” (...) “Um sapo-pipa, bruxo,/que não para em casa,/vive comendo brasa;/pensa que come estrela/e tem o céu no bucho./Outro sapo é filósofo :/quem será que me pôs/na lama, tão de rastros/sem ficar com a mão suja?/quem será que criou/o perfume das rosas?/quem no céu espalhou/o ouro aceso dos astros?/Fulgem rosas lunares/na água morta dos campos./É a cidade dos sapos/que acende os seus lampiões/verdes de pirilampos .../Hoje tem espetáculo!/gritam todos os sapos./Hoje tem coisa boa!”. O retrato geral que o poeta faz neste poema é o de uma cidade dos sapos, no que segue, agora como película : “Ou então é o cinema/do brejo que funciona,/exibindo um desenho/animado de Disney:/“Um sapo se suicida/por causa de uma estrela.”/E, no salão do espaço,/onde a neblina grossa/se desfaz em farrapos/ouve-se, a todo instante,/a algazarra dos sapos,”. E o paradoxo que vai e não vai, vem com o sapo-boi do famigerado foi-não foi herdado do poema de Bandeira, no que segue : “E ronca o sapo-boi/tocando o “foi-não-foi”./No outro dia, porém,/quando chega a alvorada,/loura, de olhar cerúleo :/- por que tanto barulho?/que aconteceu? que foi?/Vai-se ver; não foi nada.” (...) “Ó pobre sapo-boi,/foi Deus que assim te fez?/foi Deus que assim te quis?/ao menos, uma vez,/responde : foi? não foi?/Pobre mundo infeliz/que diz e se desdiz/tocando o “foi, não foi”,/ininterruptamente./E a gente pede bis .../Deus não tem dó da gente.”. E o paradoxo não se interrompe, pois Deus não tem pena de ninguém, ao que se fecha a coda dura e direta.

DO LIVRO “MARTIM-CERERÊ” (1928)

O GIGANTE N. 3 : O poema retrata aqui as bandeiras, a entrada vigorosa de Fernão Dias no mato denso do Brasil profundo, no que temos : “E aquela serra que resplandecia/Na Noite Verde do Sertão, lá longe,/e ia mudando, sempre de lugar?/Quem, onde, quando e como a encontraria?/Fernão Dias Pais Leme, outro Gigante,/- este o número três – a irá buscar./E as léguas todas vieram recebê-lo,/mal ele entrou no mato, com o seu povo.” (...) “esmagou a cabeça às léguas todas/que o cercavam, em bárbaro atropelo,/sob as botas de couro, e lá se foi,/atrás da “serra que resplandecia”/sem saber onde e quando a encontraria./Mas a distância lhe passou à frente/chamando por mais léguas,” (...) “Ele, porém, se desenleou das léguas”. O poema segue em léguas e o desafio da fronteira nova de exploração bandeirante com seus obstáculos, no que temos : “Mas a distância lhe correu à frente/pedindo novas léguas, outras léguas,” (...) “mas tudo em vão! que os maiores obstáculos/lhe seriam graciosos, e mesquinhos./Ele ia governar as esmeraldas,/poeta do mato, abridor de caminhos,”. O caminho se abre, o bandeirante das esmeraldas, na tempestade de gente, a febre de um novo mundo, e que Cassiano Ricardo retrata como tropa de poetas, no que temos : “Que era assim mesmo, cada bandeirante./Uma brutal tempestade de gente” (...) “Tropa de poetas, entre os quais seguia/algum Orfeu caboclo, lira em punho.” (...) “Cada légua possuía uma cabeça/de montanha e, como cauda, um rio./Parecia uma cobra mitológica/fulgindo sob a escama d`água espessa/e com a cauda enrolada na cabeça.”. Eis que o poema encerra com estro perfeito a rotina e ação permanente dos bandeirantes e o desafio natural desta empreitada.

O PAI DO SOL : Borba Gato entra aqui como o que caça e decepa o Pai do Sol, e eis que tudo vira ouro, o mito aqui é magia, e Cassiano Ricardo descreve este ato mágico em que tudo vira ouro, no que temos : “Mas um dia Borba Gato/que possuía vários títulos/já – o de Caçador de Onça,/o de Vigia da Terra,/mais o de Chefe da tribo/dos bororos, e ainda outros,/dos quais a tuba da fama/nunca lhe passou recibo,/andando por um caminho/encontrou o Pai do Sol./Lá estava o tal, olhos de ouro,/sentado em meio ao Sertão.” (...) “vibra no ar enorme foice,/rápida, em trinta relâmpagos,/e decepa-lhe a cabeça./E o Pai do Sol, degolado,/ainda escorrendo fogo,/é posto, logo, aos pedaços,/em longos cargueiros de ouro.” (...) “Faísca do Pai do Sol/é o fogão onde o quitute/se faz em panelas de ouro./Nos córregos, ou nas catas,/nas grupiaras, ou nas minas,/os escravos suam ouro .../El-Rey, de novo, lá longe,/passa óleo pelo corpo,/deita-se ao chão e levanta-se/todo rabiscado de ouro./E nomeia Borba Gato/para general do Mato./Na igreja do Sabará/Um Cristo nu chora ouro ...”. Borba Gato fica poderoso, e o milagre do ouro é o poema inteiro em estro dourado.

MOÇA TOMANDO CAFÉ : O ciclo do café é retratado neste poema circular em que seu começo é seu fim, começa com a moça bonita e feliz tomando café, e o poeta Cassiano Ricardo descreve então o caminho de ida e vinda do café na sua produção e como chega à mesa, no que temos : “Num salão de Paris/a linda moça, de olhar gris,/toma café./Moça feliz./Mas a moça não sabe, por quem é,/que há um mar azul, antes da sua xícara de café;/e que há um navio longo antes do mar azul .../E que antes do navio longo há uma terra do sul;/e antes da terra um porto, em contínuo vaivém,” (...) “E antes da serra está o relógio da estação .../Tudo ofegante como um coração/que está sempre chegando, e palpitando assim./E antes dessa estação se estende o cafezal./E antes do cafezal está o homem, por fim,/que derrubou sozinho a floresta brutal./O homem sujo de terra, o lavrador/que dorme rico, a plantação branca de flor,/e acorda pobre no outro dia ...” (...) “Quedê o sertão daqui?/lavrador derrubou./Quedê o lavrador?/está plantando café./Quedê o café?/Moça bebeu./Mas a moça, onde está?/está em Paris./Moça feliz.”. O poema descreve este périplo do café com perfeição e a última estrofe é como um arremate ou resumo do poema todo, com um humor leve e regional que o poeta nos dá como coda na imagem suave da moça feliz.

POEMAS :

DO LIVRO “DENTRO DA NOITE” (1915)

IARA, A MULHER VERDE

Neste país de coisas em excesso
o sol me agride, o azul passa da conta.
No entanto, os poucos beijos que te peço
o teu amor futuro me desconta.

De tanto céu tenho a cabeça tonta.
O meu jornal é todo em verde impresso.
Só tu, a quem já um pássaro amedronta,
te fechas no mais íntimo recesso ...

No país do excessivo, és muito pouca.
Vê a borboleta jovem, como esvoaça.
Vê como nos convida a manhã louca!

Por que seres assim, se tudo é assombro,
se a própria nuvem branca – e com que graça –
só falta vir pousar em nosso ombro?

DO LIVRO “A FRAUTA DE PÔ (1917)

VIAGEM PERDIDA

Há um longínquo país que às vezes visitamos;
extasia-se o olhar que os recantos lhe sonde,
entre o suave frescor dos seus verdes recamos
e a luxúria pagã que envolve cada fronte ...

Essa é a pátria encantada e longe, que sonhamos
conquistar, algum dia, ao mistério que a esconde.
Oásis que nos estende a sombra dos seus ramos
e ao grito do viandante estremece e responde ...

Vós, que andais a sonhar, pela existência em fora,
esquecei, no passado, as ilusões sepultas,
ide a esse fim de mundo onde a Esperança mora.

Ide, mas não proveis dos frutos que colherdes,
nesse reino infeliz, de esmeraldas ocultas,
nesse estranho pomar que só dá frutos verdes ...

DO LIVRO “VAMOS CAÇAR PAPAGAIOS” (1926)

MANHÃ DE CAÇA

Mal entrava eu no mato
era um delírio. Os papagaios
se reuniam em bando, protestando.
Como em verde comício.

Por que tanto barulho? eu indagava
de mim mesmo, da minha malvadez.
Como se não soubesse
que era justo o protesto
dos papagaios ásperos, verde-gaios.

Araras, canindés, maitacas
mais ensurdecedoras que matracas,
reunidas em bando,
também gritavam, me acusando.

Mas por que tanto horror? Por que, de súbito,
tanto medo insensato?

Como se eu não soubesse,
com absoluta certeza, que era o mato
contra a minha maueza.

Maracanãs, tiribas, periquitos,
que eram asas aos gritos,
papagaios, enfim, de vários nomes
e de vária plumagem,
que eram os donos do país selvagem
e confuso,
lavravam seu protesto contra o intruso,
gritando, gritando.

Um morro de cabelo verde pixaim
começava a pensar.
Se encolhia a pensar numa coisa sem fim.

Por que pensar assim?

Como se eu não soubesse dos motivos
de tanta garra, de tanta algazarra.

Conferenciavam, graves, os tucanos.
Saltavam rãs e gafanhotos,
junto a meus pés, a meus sapatos rotos.
O caapora acendia o fogo do cachimbo.
A mãe-d`água – se é que a mãe-d`água existe –
saltava como louca,  a face oculta
em seu cabelo verde – se é verdade
que o seu cabelo é verde.

Como se eu não soubesse que no mato
tudo é cabelo verde, é susto, é graça,
é surpresa, é protesto
(quando não é a solidão selvagem).

Mas por que tanta atoarda?

E eu apontava o cano da espingarda
e bumba! um papagaio verde-gaio
caía ao solo e os outros, com assombro,
se reuniam em bando, gritando.
Uma chuva de garras e de bicos
despencava do céu sobre o meu ombro.
Os ecos proferiam, pelas grotas,
outros protestos, como se a distância
também caísse ao chão, de bruços,
com a boca cheia de soluços!

Mas pra quê tanto medo?

E – último eco – uma voz, enroscada
Num cipoal em flor, numa barba-de-bode,
ficava protestando:
não pode!

não pode!

A CIDADE DOS SAPOS

Os sapos que eu conheço
no bairro onde resido,
gritam, desde o começo
da noite, ao meu ouvido.
Gritam a noite inteira;
porém, são mais humanos,
sob um certo sentido,
que os de Manuel Bandeira.
Pois não são parnasianos
e nem tomam parte
em discussões sobre arte.

São, todos, operários
e dão-se a ofícios vários.

Neste ponto, os meus sapos
que também batem papos,
já diferem dos seus ...
pois são filhos de Deus.

Um deles é ferreiro.
E faz tanto barulho
com os demais, da sua
corporação, que chego,
em meu desassossego
e já por minha conta,
a crer que estará pronta
até ao clarear do dia
alguma Nova Iorque
mais aérea e maior
que a da fotografia.

A julgar pelo ruído
que sai dos seus martelos
só o sapo ferreiro
já construiu no charco
uns duzentos castelos.
Estrondeja a bigorna
e, então, sobe e flutua,
na noite grande a morna,
o alvo disco da lua.

Este outro, carpinteiro,
sapo de alma canora,
em plena noite escura,
conserta a fechadura
do palácio onde mora.
Vive serrando tábuas ...
Ó sapo carpinteiro,
serra as minhas mágoas?

Aquele outro é pedreiro.
Mais que pedreiro herói.
Tudo o que ele constrói
a água da enchente arrasa ...
Vai fazer minha casa,

Lá longe, um bate-sola
fabrica o azul sapato
com que Nossa Senhora
virá do céu, num barco
de lua, só pra vê-lo,
sem se sujar no charco.

Mas há outros, que invejo,
moradores do brejo :
Uma intanha viúva,
os olhos fora da órbita,
pensa que o luar é chuva
e sem compreendê-lo
no espetáculo cósmico,
abre o seu guarda-chuva
branco de cogumelo.

Um sapo-pipa, bruxo,
que não para em casa,
vive comendo brasa ;
pensa que come estrela
e tem o céu no bucho.
Outro sapo é filósofo :
quem será que me pôs
na lama, tão de rastros
sem ficar com a mão suja?
quem será que criou
o perfume das rosas?
quem no céu espalhou
o ouro aceso dos astros?

Fulgem rosas lunares
na água morta dos campos.
É a cidade dos sapos
que acende os seus lampiões
verdes de pirilampos ...

Hoje tem espetáculo!
gritam todos os sapos.
Hoje tem coisa boa!
clamam os bate- papos
em ruidosa assembleia :
e a algazarra plebeia
por todo o brejo ecoa.
Quando dissermos três,
jacaré, você pule.
E dizem um ... dizem dois ...
é desta vez! dizem três,
tchecumbum na lagoa.

Ou então é o cinema
do brejo que funciona,
exibindo um desenho
animado de Disney:
“Um sapo se suicida
por causa de uma estrela.”
E, no salão do espaço,
onde a neblina grossa
se desfaz em farrapos
ouve-se, a todo instante,
a algazarra dos sapos,
o tremendo barulho
da infernal assistência;
as rãs batendo palmas,
quá-quá-quá de marrecos,
muito bem, bis-bis-bis,
ecos aos petelecos,
um diz, outro desdiz.
E ronca o sapo-boi
tocando o “foi-não-foi”.

No outro dia, porém,
quando chega a alvorada,
loura, de olhar cerúleo :
- por que tanto barulho?
que aconteceu? que foi?
Vai-se ver; não foi nada.
E tudo continua
no mesmo pé, na mesma
luta desesperada.
Eu suo : você sua ...
tudo por quê? por nada.

Ó pobre sapo-boi,
foi Deus que assim te fez?
foi Deus que assim te quis?
ao menos, uma vez,
responde : foi? não foi?
Pobre mundo infeliz
que diz e se desdiz
tocando o “foi, não foi”,
ininterruptamente.

E a gente pede bis ...
Deus não tem dó da gente.

DO LIVRO “MARTIM-CERERÊ” (1928)

O GIGANTE N. 3

E aquela serra que resplandecia
Na Noite Verde do Sertão, lá longe,
e ia mudando, sempre de lugar?
Quem, onde, quando e como a encontraria?

Fernão Dias Pais Leme, outro Gigante,
- este o número três – a irá buscar.

E as léguas todas vieram recebê-lo,
mal ele entrou no mato, com o seu povo.
E enrolaram-se, todas, em novelo
ferocíssimo em redor de suas botas.
Mas ele, achando graça na distância,
esmagou a cabeça às léguas todas
que o cercavam, em bárbaro atropelo,
sob as botas de couro, e lá se foi,
atrás da “serra que resplandecia”
sem saber onde e quando a encontraria.

Mas a distância lhe passou à frente
chamando por mais léguas, que outras léguas
lhe viessem! e outras mais, e ainda outras,

pra se enrolar nas botas do Gigante
e acorrentá-lo ao chão, e enrodilhá-lo
na cauda louca de algum redemoinho
e afundá-lo no lodo dos pauis.
Ele, porém, se desenleou das léguas
como um deus mágico que se desenleasse
de um polvo azul, de cem braços azuis!

Mas a distância lhe correu à frente
pedindo novas léguas, outras léguas,
ainda em maior número, e mais rápidas,
pra se enrolar nos pés do bandeirante
e assim detê-lo através do sertão
mas tudo em vão! que os maiores obstáculos
lhe seriam graciosos, e mesquinhos.
Ele ia governar as esmeraldas,
poeta do mato, abridor de caminhos,
e amarraria os braços ao sertão
com o amarilho vermelho das estradas.

Que era assim mesmo, cada bandeirante.
Uma brutal tempestade de gente
que, por onde passava, ia deixando
seu longo rastro de cidades brancas,
azuis ou tristes, pretas ou douradas.

Tropa de poetas, entre os quais seguia
algum Orfeu caboclo, lira em punho.

Com os seus trabucos, que iam carregados
muito mais de poesia que de chumbo;
e seus baús de boi, abarrotados
mais de esperanças que de mantimentos.

E quanta vez, já em pleno labirinto
do sertão bruto, em ásperas refregas,
não lhe querem furtar as esmeraldas
que ele nem sabe se achará ou não
por um sertão de quatrocentas léguas!

Cada légua possuía uma cabeça
de montanha e, como cauda, um rio.
Parecia uma cobra mitológica
fulgindo sob a escama d`água espessa
e com a cauda enrolada na cabeça.

O PAI DO SOL

Mas um dia Borba Gato
que possuía vários títulos
já – o de Caçador de Onça,
o de Vigia da Terra,
mais o de Chefe da tribo
dos bororos, e ainda outros,
dos quais a tuba da fama
nunca lhe passou recibo,
andando por um caminho
encontrou o Pai do Sol.

Lá estava o tal, olhos de ouro,
sentado em meio ao Sertão.
Tendo cinco labaredas
de alegria em cada mão.
“Você está aqui, seu malandro ...”
E como um novo Jasão
na conquista ao Tosão de Ouro,

já perto, chega não chega,
pá ante pá, devagarzinho,
por um vão da árvore espessa,
vibra no ar enorme foice,
rápida, em trinta relâmpagos,
e decepa-lhe a cabeça.
E o Pai do Sol, degolado,
ainda escorrendo fogo,
é posto, logo, aos pedaços,
em longos cargueiros de ouro.

No rio da Noite Verde
levando-lhe pés e braços,
deslizam canoas de ouro.

Um caçador, mais a oeste,
caçou veado a chumbo de ouro.

O vestido azul da santa
amanheceu, por milagre,
já bordados a fios de ouro ...

A Rita da nação benguela
tem agora um colar de ouro.

Faísca do Pai do Sol
é o fogão onde o quitute
se faz em panelas de ouro.

Nos córregos, ou nas catas,
nas grupiaras, ou nas minas,
os escravos suam ouro ...

El-Rey, de novo, lá longe,
passa óleo pelo corpo,
deita-se ao chão e levanta-se
todo rabiscado de ouro.
E nomeia Borba Gato
para general do Mato.

Na igreja do Sabará
Um Cristo nu chora ouro ...

MOÇA TOMANDO CAFÉ

Num salão de Paris
a linda moça, de olhar gris,
toma café.
Moça feliz.

Mas a moça não sabe, por quem é,
que há um mar azul, antes da sua xícara de café;
e que há um navio longo antes do mar azul ...
E que antes do navio longo há uma terra do sul;
e antes da terra um porto, em contínuo vaivém,
com guindastes roncando na boca do trem
e botando letreiros nas costas do mar ...
E antes do porto um trem madrugador
sobe-desce da serra a gritar, sem parar,
nas carretilhas que zunem de dor ...
E antes da serra está o relógio da estação ...
Tudo ofegante como um coração
que está sempre chegando, e palpitando assim.
E antes dessa estação se estende o cafezal.
E antes do cafezal está o homem, por fim,
que derrubou sozinho a floresta brutal.
O homem sujo de terra, a lavrador
que dorme rico, a plantação branca de flor,
e acorda pobre no outro dia ... (não faz mal)
com a geada negra que queimou o cafezal.

A riqueza é uma noiva, que fazer?
que promete e que falta sem querer ...
Chega a vestir-se assim, enfeitada de flor,
na noite branca que é o seu véu nupcial,
e a conduz loucamente para o céu
arrancando-a das mãos do lavrador.

Quedê o sertão daqui?
lavrador derrubou.
Quedê o lavrador?
está plantando café.
Quedê o café?
Moça bebeu.
Mas a moça, onde está?
está em Paris.
Moça feliz.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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