Este caminho muito me apraz,
poetas lhe sulcam a face,
bom anjo através
do espelho,
diabinhos atiradores
também aparecem,
e o brio da moldura
vira bruma e pintura.
Este caminho solar que
das crateras lunares
bem quis calor com frio,
e os haustos do coração
que fundam a poesia
no dom e na epifania.
Poesia sincera, destas de explosão,
e que liquidam o tema
com um bom choque
ou colisão.
Este caminho deserto que a alma sofre
é a poesia em busca de seu sol,
tais crateras lunares se encontram
nos esforços deste nascimento
que sonha e labora
como um azougue
que se ilumina
e se faz
poeta.
30/06/2017 Gustavo Bastos
sexta-feira, 30 de junho de 2017
LIVRO DE BOLSO
Não vejo nada com o que me dizer
nestes poemas sulfurosos,
Hades retilíneo
e harpas angelicais
no campo de sarça.
Breviário, bestas no inferno
de fauno, lepra dos odores,
o hino é o fausto e a glória
dos retos que sucumbiram.
Eu havia feito este elenco
no livrinho de bolso
de uma campanha bem boba,
flores de sol no livrinho
com badulaques
e memória de
prazeres,
eis, o poema no fim da linha
era mais um bobo destes
que flutuava como anjo
na mão de uma fada
que também era boba,
o milagre do vinho
então cantou o poema
em toda a plenitude
que o livrinho tinha,
apesar dos enfeites.
30/06/2017 Gustavo Bastos
nestes poemas sulfurosos,
Hades retilíneo
e harpas angelicais
no campo de sarça.
Breviário, bestas no inferno
de fauno, lepra dos odores,
o hino é o fausto e a glória
dos retos que sucumbiram.
Eu havia feito este elenco
no livrinho de bolso
de uma campanha bem boba,
flores de sol no livrinho
com badulaques
e memória de
prazeres,
eis, o poema no fim da linha
era mais um bobo destes
que flutuava como anjo
na mão de uma fada
que também era boba,
o milagre do vinho
então cantou o poema
em toda a plenitude
que o livrinho tinha,
apesar dos enfeites.
30/06/2017 Gustavo Bastos
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HORA MEDIDA
Com uma clava de sol na praia deserta,
o coração em fúria,
os sentidos de acordo
com a bebedice,
ferve o arrulho, breve o tempo
em âncoras sulcadas
de labor fremente,
na caixa de som os segredos
que dormitam nos mares,
como uma lepra o poeta
vira câncer,
como um milagre a meta solar
lhe dá novo sopro,
o coração se cura
na dança,
verte teu silente campo poeta!
frêmito nas rosas rosas,
ventos sopros
que lhe cobrem
a alma,
cândido o grande idiota,
poeta a esta hora.
30/06/2017 Gustavo Bastos
o coração em fúria,
os sentidos de acordo
com a bebedice,
ferve o arrulho, breve o tempo
em âncoras sulcadas
de labor fremente,
na caixa de som os segredos
que dormitam nos mares,
como uma lepra o poeta
vira câncer,
como um milagre a meta solar
lhe dá novo sopro,
o coração se cura
na dança,
verte teu silente campo poeta!
frêmito nas rosas rosas,
ventos sopros
que lhe cobrem
a alma,
cândido o grande idiota,
poeta a esta hora.
30/06/2017 Gustavo Bastos
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O VENTO
Quem descobre o sentido do vento
lhe decifra os ares que ali
sopram,
ignição dos poetas,
ventos sonhados
e delirados,
ventos de poemas.
Quem se orienta em seu curso
pela estrada, no vento
tem seu hausto, o sopro
ou bafo ou lufada,
éolo e seus pulsos
de vida,
quem com o vento vira ventania,
quem do vendaval
se torna
ciclone
qual
furacão.
30/06/2017 Gustavo Bastos
lhe decifra os ares que ali
sopram,
ignição dos poetas,
ventos sonhados
e delirados,
ventos de poemas.
Quem se orienta em seu curso
pela estrada, no vento
tem seu hausto, o sopro
ou bafo ou lufada,
éolo e seus pulsos
de vida,
quem com o vento vira ventania,
quem do vendaval
se torna
ciclone
qual
furacão.
30/06/2017 Gustavo Bastos
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NOITE VORAZ
Dentro desta noite primeira,
rés-do-chão e pé-direito
dos castelos que caem.
Nesta primeva estrela,
neste ser de queda.
Vento sentido no coração,
como todo poema
que na lida
vivifica,
com esta noite ardida como pimenta,
com este páramo bonito,
leve e escultórico,
com estrelas vertidas
nesta noite
voraz,
deliro.
30/06/2017 Gustavo Bastos
rés-do-chão e pé-direito
dos castelos que caem.
Nesta primeva estrela,
neste ser de queda.
Vento sentido no coração,
como todo poema
que na lida
vivifica,
com esta noite ardida como pimenta,
com este páramo bonito,
leve e escultórico,
com estrelas vertidas
nesta noite
voraz,
deliro.
30/06/2017 Gustavo Bastos
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POEMA DA VINHA SOLAR
Em breve me releio, vejo novas
pontas edulcoradas, caminhos
de navios rotos,
papéis queimados,
litros de cerveja.
Em pouco tempo delineio os contornos
de um que sonhava e outro
que era puro labor.
Leme em esguio serve à nave,
brota em fundos calcários
os risos de frascos mágicos,
os putos poetas
que bebem
licor.
Me releio neste verão torto,
e nunca mais me visto
de funcionário,
nunca mais jogo bilhar
nas lamúrias,
nunca mais aposto meu sangue,
e nem tenho pacto
com este diabo
que habitava
meu verso.
Ah, coisa boba,
este poeta-bomba!
20/06/2017 Gustavo Bastos
pontas edulcoradas, caminhos
de navios rotos,
papéis queimados,
litros de cerveja.
Em pouco tempo delineio os contornos
de um que sonhava e outro
que era puro labor.
Leme em esguio serve à nave,
brota em fundos calcários
os risos de frascos mágicos,
os putos poetas
que bebem
licor.
Me releio neste verão torto,
e nunca mais me visto
de funcionário,
nunca mais jogo bilhar
nas lamúrias,
nunca mais aposto meu sangue,
e nem tenho pacto
com este diabo
que habitava
meu verso.
Ah, coisa boba,
este poeta-bomba!
20/06/2017 Gustavo Bastos
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CORTE SELVÁTICA
Nesta nota o rei das cortes
toca uma canção familiar,
lullabies.
Ferro da estrada, me dá sonho
de lufada, poema que tudo
em nada de braçada,
este som bem querido
de rock´n´roll
detona.
Ah, que música mais anarquia
se tem punk e metal
em delícias,
e não mais sofro, como aos meus papéis
com estas notas surradas
de um livro poeirento,
busco outras loucuras,
mais delírios,
novas canções,
e ventos que sopram
selvagens
pelas
veredas.
30/06/2017 Gustavo Bastos
toca uma canção familiar,
lullabies.
Ferro da estrada, me dá sonho
de lufada, poema que tudo
em nada de braçada,
este som bem querido
de rock´n´roll
detona.
Ah, que música mais anarquia
se tem punk e metal
em delícias,
e não mais sofro, como aos meus papéis
com estas notas surradas
de um livro poeirento,
busco outras loucuras,
mais delírios,
novas canções,
e ventos que sopram
selvagens
pelas
veredas.
30/06/2017 Gustavo Bastos
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AURORA
Ao abrigo dos que sentem frio,
o afago dos que sentem fome,
a fartura e o aninho
sopram os tempos ocos.
Lembre-se, cavaleiro,
destes tempos de glória,
uma moenda ruminava
seus touros selvagens.
Lembra-te, corsário,
daqueles ócios e épocas fúrias
que o vinho do inverno
quebrava no mar
e sorria,
lembra-te!
Ao abrigo dos frios famélicos,
dos sinos que são gritos,
dos ecos que são sons
do desespero,
lembra-te, fauno,
dos choques teatrais
depois de uma temporada
no farol,
ah, mas me dá um pouco de sol,
senhor dos ventos
que cultiva auroras.
30/06/2017 Gustavo Bastos
o afago dos que sentem fome,
a fartura e o aninho
sopram os tempos ocos.
Lembre-se, cavaleiro,
destes tempos de glória,
uma moenda ruminava
seus touros selvagens.
Lembra-te, corsário,
daqueles ócios e épocas fúrias
que o vinho do inverno
quebrava no mar
e sorria,
lembra-te!
Ao abrigo dos frios famélicos,
dos sinos que são gritos,
dos ecos que são sons
do desespero,
lembra-te, fauno,
dos choques teatrais
depois de uma temporada
no farol,
ah, mas me dá um pouco de sol,
senhor dos ventos
que cultiva auroras.
30/06/2017 Gustavo Bastos
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DELÍRIO AZUL
A inteligência sem rachaduras
do diamante, este duro labor
que se arma marmóreo,
pétreo o silente e cáustico.
Bem podado o campo,
serpenteia o poema
com lados da esfera,
um pouco de nuvem
e tantos de pó.
Eu passei na liquidação da poesia,
nela estava o registro
dos quintais e suas frutas,
pontes de liga, estruturas
de romances rotos,
fuzil e suor.
A base da poesia do retirante,
"immigrant song",
leva em mim este petardo,
como um sonho azul.
30/06/2017 Gustavo Bastos
do diamante, este duro labor
que se arma marmóreo,
pétreo o silente e cáustico.
Bem podado o campo,
serpenteia o poema
com lados da esfera,
um pouco de nuvem
e tantos de pó.
Eu passei na liquidação da poesia,
nela estava o registro
dos quintais e suas frutas,
pontes de liga, estruturas
de romances rotos,
fuzil e suor.
A base da poesia do retirante,
"immigrant song",
leva em mim este petardo,
como um sonho azul.
30/06/2017 Gustavo Bastos
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PINTANDO O VÁCUO
Fresta que abre rústica,
as portas e suas reentrâncias,
ermo o passo e a madeira,
sem fundo e oco
o querer das horas.
Bem alinhado com os sóis,
este querer fundo e cheio
do querer dos tempos,
bem fundo na paisagem,
sem fundo para as tristezas.
Bordado que sai incólume,
vitral e brocado, pintura
de formas, de cantos silvestres
com as cordilheiras do som.
Frente bem heráldica que no púlpito
se recobra de pedra em monte,
mil léguas de sonho
no corpanzil da máquina,
o leme de sapiência,
tais sóis que acordam de suas luas
pintadas nesta fresta
em que se vê o vácuo
das estrelas.
30/06/2017 Gustavo Bastos
as portas e suas reentrâncias,
ermo o passo e a madeira,
sem fundo e oco
o querer das horas.
Bem alinhado com os sóis,
este querer fundo e cheio
do querer dos tempos,
bem fundo na paisagem,
sem fundo para as tristezas.
Bordado que sai incólume,
vitral e brocado, pintura
de formas, de cantos silvestres
com as cordilheiras do som.
Frente bem heráldica que no púlpito
se recobra de pedra em monte,
mil léguas de sonho
no corpanzil da máquina,
o leme de sapiência,
tais sóis que acordam de suas luas
pintadas nesta fresta
em que se vê o vácuo
das estrelas.
30/06/2017 Gustavo Bastos
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domingo, 25 de junho de 2017
POR QUE LER OS CLÁSSICOS – ÍTALO CALVINO – PARTE V
A CIDADE-ROMANCE EM
BALZAC
Balzac, na visão de Ítalo Calvino, foi um romancista que
realizou a operação literária de transformar a própria cidade em romance, pois
o escritor tinha a capacidade e a intenção de colocar os bairros e as ruas como
verdadeiros personagens dotadas de caráter e diversos entre si, e que, para
Calvino, Balzac era capaz de “evocar figuras humanas e situações como uma
vegetação espontânea que germina do calçamento desta ou daquela rua ou como
elementos de tão dramático contraste com elas a ponto de provocar cataclismos
em cadeia;”, e que aqui é feito no momento em que Balzac começa a escrever
Ferragus, e que o escritor então faz com que a sua obra literária tenha como
protagonista a cidade viva, Paris em sua faculdade monstruosa, como algo
praticamente biológico.
E um fato curioso é que Balzac tem em mente, inicialmente,
fazer um ciclo romanesco que juntasse a ideia de sociedades secretas com a de
indivíduos à margem da sociedade que tivessem uma espécie de faculdade
onipotente, no que Balzac tinha a ideia de retratar o domínio que era efetivado
por personagens numa rede que se colocava invisível no contexto que era comum
às sociedades secretas. Só que tal plano muda de figura, e Balzac será, na
verdade, o inventor dos mitos que serão a forma própria da narrativa culta e
popular que lhe deverão o mérito por mais de um século.
Um desses mitos fundamentais do romance em Balzac e que dará
norte em parte das narrativas na literatura mundial subsequente é o do Super-Homem
que é prejudicado pela sociedade que o cerca e que retorna como um vingador
implacável, e que, com as feições proteiformes de Vautrin, a qual terá presença
nos tomos da Comédia humana, terá eco, como nos diz Calvino “em todos os
Montecristos, os Fantasmas da Ópera e talvez os Chefões que os romancistas de
sucesso hão de colocar em circulação.”
Em Ferragus ainda estamos sob influência do romantismo
byroniano, num enredo bem urdido que mantém o mistério e o suspense em doses
precisas, e isso entre cenas com golpes inesperados. O personagem Ferragus que
dá nome ao romance é um nome que tem em si este caráter de batalha, um ser
tenebroso com tal nome ariostesco, que tem papel central, e que é descrito por
Balzac em seu declínio.
Balzac tinha como fundo principal do cenário de seus romances
o poema topográfico de Paris, e coloca de forma inovadora a cidade como a
própria linguagem dos romances, e que tem ainda caráter de ideologia, ou ainda
como fonte que condiciona cada pensamento, palavra e gesto. E sua obra pode se
constituir como uma espécie de enciclopédia parisiense, e que tem dentro deste
pacote o registro fidedigno da fala de várias categorias sociais e de
personagens, com conhecimento do autor das afetações e neologismos da moda e
mesmo a entoação das vozes, e também em situações normais da declamação
habitual do cotidiano comum.
Balzac com A História dos Treze realiza o que podemos chamar
de atlas do continente Paris, e o escritor concluiu Ferragus, e nesse momento
escreve mais dois episódios para completar o tríptico que se configuram como
romances diversos entre si e do próprio Ferragus. Aqui nesses dois novos
episódios Balzac coloca um ponto comum, pois em ambas as estórias temos
protagonistas numa aura misteriosa, mas que tem como outro ponto mais relevante
a digressão de amplitude que cobre várias outras vozes do escopo que virá a ser
denominado por Calvino como a “enciclopédia parisiense” de Balzac: em La
duchesse de Longeais, que se trata de um romance de natureza passional que
ganha a verve de um transbordamento autobiográfico, e que no segundo capítulo
que se constitui como um texto que vai influenciar a cultura francesa que culmina em fenômenos
como Sade e tudo o que veio após este, com uma apresentação antropológica das
classes sociais parisienses.
Balzac não fica, no entanto, nesta base de digressões, pois
investe também na sua escritura na experiência psicológica intimista, e isso
sobretudo na relação conjugal, que é uma das colunas do autor. Aqui em Balzac
temos uma dupla função dentro de seu romance que se dá entre o meio psicológico
e a aventura, e tais duas frentes são a função romanesca completa da inspiração
balzaquiana.
A densidade romanesca em Balzac ainda tem rostos particulares
na escritura que se configura como mitologia da metrópole, pois ainda não foi
alcançada a multidão anônima que veremos em Baudelaire, por exemplo, já que em
Balzac temos a psicologia individual ainda em relevo. E os mistérios ainda
rondam o romance urbano de Balzac, tal que nos conduz num emaranhado de coisas,
em que a análise das personagens é de tal riqueza descritiva que as revela em
suas singularidades. E Balzac faz tal
revelação de mistérios com uma verve sociológica, psicológica e por fim com um
lirismo que o coloca no clímax dos grandes autores.
CHARLES DICKENS, “OUR
MUTUAL FRIEND”
Dickens tem aberturas de romances marcantes, e isso ganha
grande relevo no seu primeiro capítulo de Our mutual friend, que é o penúltimo romance
que ele escreveu, e último que concluiu. Aqui temos o barco do pescador de
cadáveres, e no segundo capítulo há uma mudança brusca, pois já estamos no
contexto de uma comédia de costumes e de caracteres, e eclode o mistério de um
homem afogado que iria herdar uma fortuna e que recompõe a tensão do romance.
E Calvino nos esclarece: “A grande herança é a do falecido
rei do lixo, um velho avarento que deixou na periferia de Londres uma casa ao
lado de um terreno cheio de grandes monturos de lixo.” E o herdeiro é seu
ex-burro de carga, Boffin, que é uma das grandes personagens cômicas de
Dickens, e que é um simplório de uma ignorância infinita, e que de súbito está
rico, e passa a querer a adquirir cultura, mas sem base nenhuma para tal, no
que é ensinado por Silas Wegg, um vagabundo com perna de madeira que ele
contrata, e então o analfabeto Boffin junta oito volumes do Declínio e queda do
Império Romano de Gibbon e depois vai atrás da vida de avarentos famosos na
ânsia de não perder a sua fortuna.
Em meio ao ambiente de lixo, em que circulam figuras de
caráter de clown ou ainda que atuam como espectros, temos que Dickens antecipa
de certo modo o que virá a lume na obra de Samuel Beckett, sobretudo quando se
trata da verve de humor negro que já vemos em Dickens. No autor Dickens temos o
contraste entre luz e sombra, em que se confrontam a escuridão e a virtude, e
também na qual esta virtude está imersa numa situação trevosa. Mas temos que
tal virtude em Dickens para nós, modernos, nos parece um tanto postiça.
Temos que, na análise do romance em Dickens, o domínio da
mentalidade vitoriana ganha fidelidade e também um fundo que cria toda uma
mitologia. Uma vez conhecido bem o típico Dickens modernamente considerado, que
é o do humor negro de personagens calcados na maldade e também como caricaturas
grotescas, não nos tira isto a apreciação analítica e necessária de suas personagens
inundadas de angelitude e que podem atuar como grandes consoladores, pois são
estas presenças da virtude que dão sentido ao bem e ao mal no romance de
Dickens, no equilíbrio que fazem no jogo com o lado escuro.
Em Our mutual friend temos também a trama urbana e de comédia
de costumes e que, por outro lado, guarda espaço também para personagens complexos
e trágicos, tal como vemos na figura de Bradley Headstone, que nas palavras de
Calvino “ex-proletário que uma vez tendo se tornado professor se deixa dominar
por uma ânsia de ascensão social e de prestígio que se transforma numa espécie
de possessão diabólica.”
Para nós, Our mutual friend se configura como uma das
obras-primas de Dickens e da literatura mundial, tanto no seu quesito criativo,
como também pelo fato de se encontrar como exercício de escrita no topo do
conceito literário. E temos neste romance a riqueza descritiva dos grandes
cenários urbanos com grandeza e profundidade que podem figurar em qualquer
antologia de paisagem urbana. E a obra de Dickens, Our mutual friend, também
ganha seu caráter de grande obra por conter nela o cenário complexo de um
quadro social em que aparecem as classes em conflito.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/34644/17/italo-calvino-por-que-ler-os-classicosij5
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Coluna da Século Diário,
Resenha Século Diário
WILLIAM BLAKE, O CASAMENTO DO CÉU E DO INFERNO (1790)
“Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa
apareceria ao homem como é, infinita.”
APRESENTAÇÃO
O aprimoramento
endireita os caminhos, mas as sendas rudes e tortuosas são as do Gênio.
(William Blake)
William Blake nasceu em Londres, a 28 de novembro de 1757, e
seu pai, seguidor do visionário Swedenborg, não o educou de modo tradicional, e
o poeta, então, recebeu uma educação alternativa e mística, lendo figuras como Swendeborg,
Jacob Boheme, Paracelso e livros de ocultismo, e resolveu assim tornar-se um
pintor, mas os altos custos desta arte fizeram-no optar pela técnica da
gravura.
Passa, em seguida, a ler Spencer, os Elizabetanos, Locke,
Bacon e Winnckelmann. Frequenta o estúdio de Basire, onde inicia-se na arte da
gravura. E em 1787, desenvolve um método totalmente novo de prensagem que, além
de outras inovações, permitia utilizar todos os matizes de cor possíveis. Este
insólito processo, denominado “Impressão iluminada”, foi realizado inspirado
numa visão do espectro de seu falecido irmão Robert, que revelou-lhe então o
bizarro engenho.
Em 1800 desenvolve o poema “Milton”, depois continua a
escrever “Jerusalém” e modifica o título do poema “Vala” para “os Quatro Zoas”.
Em 1812, exibe seus trabalhos na Associação dos Aquarelistas e, entre graves
problemas financeiros, sobrevive graças às ilustrações que faz para o catálogo
das porcelanas Wedgwood.
O poema “Jerusalém”, finalizado em 1812, é muito bem recebido
nos meios culturais e, cercado pelos amigos e jovens artistas admiradores de
sua obra, passa seus últimos anos, morrendo em 1827, quando iniciava a
impressão de seu “Dante”.
O CASAMENTO DO CÉU E DO
INFERNO (1790)
Escrito em 1790, O casamento do céu e do inferno é uma das
obras centrais para a compreensão da obra do poeta. William Blake era vidente e
como Swedenborg, vislumbrava diretamente o mundo espiritual. Seu conhecimento
não advém de preceitos ou codificações religiosas, mas da observação direta. Em
O casamento do céu e do inferno, William Blake, com suas visões de iniciado
druida denuncia o engano das concepções religiosas correntes, que, em seu
redutor sistema binário, insistem em opor Céu e Inferno.
POEMAS:
O ARGUMENTO : William Blake é o poeta das visões,
o poeta místico por excelência, sua aura misteriosa ganha o espírito de um
visionário, que ele tal é em seus poemas, que vêm: “Rintrah ruge & vibra
suas flamas no ar carregado;/Nuvens vorazes pairam sobre as profundezas./Uma
vez submetido e na senda perigosa,/O homem justo manteve seu curso através/Do
vale da morte.”. E o poema segue: “Foi então plantada a senda perigosa,/Um rio
e um manancial/Sobre cada penhasco e tumba,”. A senda perigosa, que leva mesmo
até o homem justo, também é a senda do poema, que vai: “Até que o vil deixou o
suave caminho,/Para trilhar sendas perigosas e impeliu/O justo até as estéreis
paragens.” . O justo é impelido para tal zona estéril, e Blake evoca seu
mestre, Swedenborg: “Trinta e três anos após o surgimento do novo/céu, o Eterno
Inferno ressurge. Mas veja! Swedenborg/é o anjo sentado sobre a cripta: Seus
escritos são as/vestes de linho dobradas.”. E o poema ganha agora fundamentação
filosófica, na famosa alusão aos contrários, ao modo de Blake e suas
concepções, que aqui são bem fortes, e que culminam nas ideias precípuas de Bem
e Mal: “Sem Contrários não há evolução. Atração e/Repulsão, Razão e Energia,
Amor e Ódio são/necessários à existência Humana./Destes contrários nasce aquilo
que o religioso/denomina Bem & Mal. O Bem é o passivo que/obedece a Razão.
O Mal é o ativo que surge da Energia./Bem é Céu. Mal é Inferno.”. Tem uma visão
espiritual e teórica bem sofisticada contida neste poema.
A VOZ DO DEMÔNIO : O poema, em sentido bíblico, é como
uma heresia, vai de encontro ao dualismo, e é monista, a divisão usual de corpo
e alma é logo subvertida, o cânon aqui vira pó, e Blake não tem pena de tais
códigos sagrados fundados na tradição teológica, e o poema é este contraponto
que é produto da pena de um místico, que tem experiências diretas da
espiritualidade, sem meios ou subterfúgios, ele vê o infinito, como prova em
todos os seus poemas: “Todas as Bíblias ou códigos sagrados têm sido a/causa
dos seguintes erros:/1 . Que o Homem possui dois princípios reais de/Existência:
um Corpo & uma Alma./2 . Que a energia, denominada Mal, provém/unicamente
do Corpo; E a razão, denominada Bem,/deriva tão-somente da Alma./3 . Que Deus
atormentará o Homem pela/Eternidade por haver imantado suas Energias./Mas, por
outro lado, são verdadeiros os/seguintes Contrários:/1 . O Homem não tem um
Corpo distinto da/Alma, pois aquilo que denominamos Corpo não/passa de uma
parte de Alma discernida pelos cinco/sentidos, seus principais umbrais nestes
tempos./2 . Energia é a única força vital e emana do/Corpo. A Razão é a
fronteira ou o perímetro circunfeérico/da Energia./3 . Energia é Eterna
Delícia.”. O poema é de uma beleza e complexidade comoventes, eu fiquei
extasiado como tal poesia de Blake em geral é esclarecedora e interessante, e o
poema segue, agora em forma de uma pequena tese: “Aqueles que reprimem o desejo
podem fazê-lo/Quando este é fraco e passível de ser refreado; e quem/o reprime,
ou Razão, usurpa seu lugar & governa os/relutantes./Uma vez reprimido, ele
se torna cada vez mais/passivo até não ser mais que mera sombra do desejo./Esta
história se encontra escrita no Paraíso/Perdido & o Governador ou Razão
chama-se/Messias./E o Arcanjo Primeiro, mentor das hordas/Celestiais, se chama
Demônio ou Satã. Seus filhos/chamam-se Pecado & Morte./Mas no Livro de Jó,
o Messias de Milton é/denominado Satã.” E o poema agora se fundamenta na visão
miltoniana para erigir a sua teologia mística renovada e herética: “Na verdade,
a Razão acabou achando que o/Desejo fora expulso. Mas a versão do Diabo
pontifica/Que o Messias caiu e engendrou um Paraíso com o que/roubou do Abismo./Isto
é revelado no Evangelho, onde ele roga ao/Pai que envie o Consolador ou Desejo,
de forma com/Que a Razão tenha Ideias nas quais se fundamentar./O Jeová Bíblico
não é senão aquele que habita o fogo/flamejante./Sabeis que após sua morte,
Cristo tornou-se/Jeová. Mas em Milton, o Pai é o Destino, o Filho é o/Racionalismo
dos cinco sentidos & o Espírito Santo/é o Vazio!”. A trindade tradicional,
ao fim, com Milton, é erodida, a poesia é mais importante.
UMA VISÃO MEMORÁVEL : O poema se expande como as volúpias
do Gênio, eis: “Enquanto errante cruzava as flamas do Inferno,/deliciando-me
com as volúpias do Gênio, que aos/anjos transfiguram-se como Tormento e
Loucura,/recolhi alguns dos seus Provérbios,” (...) “indicariam decerto a
Sabedoria dos Vértices Abissais/melhor do que qualquer outra descrição de/Edificações
ou Vestes./Ao voltar ao lar, sobre o abismo dos cinco sentidos/onde um
precipício de escorregadias escarpas/franze seu cenho a este mundo atual,
vislumbrei um/poderoso Demônio em negras nuvens envolto/pairando sobre os
flancos dos penhascos, e com fogos/corroentes gravava a seguinte frase, agora
captada/pelas mentes dos homens, e por eles à Terra revelada:/“Como sabeis, que
cada Pássaro que irrompe a/ventania não abarca um imenso universo de delícias,/imerso
em vossos cinco sentidos.”. Aqui as limitações dos cinco sentidos são
denunciadas e subvertidas, e o Demônio dá a saber que o Pássaro só abarca as
delícias do infinito fora da prisão dos sentidos naturais, numa nova vida e com
liberdades infinitas e sobrenaturais.
SEM TÍTULO : O poema conta a história da
progressão dos deuses, que tais aparecem como guardiães de nações, como
espécies de Gênios, e que os poetas sopraram vida nas narinas de tais
entidades, e que tais deuses e gênios eram associados com a natureza, e que
tais poetas da Antiguidade poderiam fazer tais encantamentos pois viviam com os
sentidos dilatados, num estado sobrenatural e permanente de êxtase: “Os poetas da Antiguidade animaram todos os/objetos
sensíveis com Deuses ou Gênios,/nomeando-os e adornando-os com as propriedades
dos/bosques, lagos, cidades, nações e tudo o que seus/dilatados sentidos podiam
perceber./Particularmente, estudaram o Gênio de cada/Cidade & país,
colocando-o sob a égide de sua/deidade mental./Até que se formou um sistema, do
qual alguns se/aproveitaram e escravizaram o vulgo, interpretando/e abstraindo
as deidades mentais de seus respectivos/objetos. Então surgiu o Clero;/Elegendo
formas de culto dos mitos poéticos./E proclamando, por fim, que assim haviam/ordenado
os Deuses./Os homens então esqueceram que Todas as/deidades residem em seus
corações.”. E, por fim, quando estas entidades naturais surgidas do transe
poético de sentidos dilatados ao infinito são subjugados pelo espírito de
sistema, temos o Clero e a ordem da tradição sedimentada como cânon e não mais
a experiência espiritual direta que será tão fundamental quando nos debruçamos
sobre a poesia de William Blake e sua biografia.
UMA VISÃO MEMORÁVEL : Este poema de William Blake é
emblemático, e é uma trama bíblica em forma poética original, no que temos: “Os
profetas Isaías e Ezequiel jantavam comigo./Perguntei-lhes como se atreviam a
afirmar que Deus/falava com eles; e se não achavam que isto os tornava/incompreendidos
& passíveis de perseguição./Isaías respondeu: “Jamais pude ver ou ouvir
Deus/dentro de uma percepção orgânica e finita; Meus/sentidos descobriram o
infinito em cada coisa, e como/desde então estivesse convicto & recebesse o
sinal que/a voz da indignação sincera é a voz de Deus, alheio às/consequências
escrevi.”/Então perguntei: - “A firme convicção de que/uma coisa é, assim pode
torná-la?/Ele respondeu: - “Todos os poetas têm a certeza disto &/em épocas
de imaginação, esta fé inquebrantável moveu montanhas.”. Os poetas, assim como
os profetas, tinham as visões do infinito, os sentidos espirituais emancipados
da limitação carnal, e o poema segue: “Ezequiel retrucou: “A filosofia do
Oriente ensinou os princípios básicos da percepção humana. Algumas nações
adotaram um princípio para a origem. Outras criaram versões distintas para
explicá-la. Nós, de Israel, ensinamos que o Gênio Poético (como agora o
denominam) foi o princípio básico e os demais não passam de meras derivações.
Esta é a razão de nosso desprezo pelos Filósofos & Sacerdotes de outros
países. Profetizamos, e disto não resta dúvida, que todos os Deuses são
originários do nosso & tributários do Gênio Poético. Foi precisamente isto
que nosso grande poeta, o Rei Davi, desejava mais fervorosamente & evocou
de forma tão enternecedora, exprimindo que é assim que triunfa-se sobre os
inimigos e governa-se os reinos. Tanto amamos nosso Deus que em seu nome
desdenhamos todas as deidades das nações vizinhas, afirmando que elas haviam se
rebelado: Daí advém que o vulgo acabasse por acreditar que todas as nações
seriam submetidas pelos judeus.”. O Gênio Poético ganha em Israel autoridade
religiosa, e aqui o seu Deus é colocado como fonte e os outros deuses são
heréticos, a rebelião fica por conta desses deuses familiares, e o verdadeiro
Deus será este do poeta e Rei Davi e o dos profetas bíblicos, nenhum mais: “Perguntei
então a Ezequiel por que deglutira esterco & permanecera por tanto tempo
deitado de lado direito & esquerdo. Ele respondeu: _ Para elevar os homens
à percepção do infinito.” (...) “A antiga crença de que o mundo será consumido
pelo fogo ao cabo de seis mil anos é real, como revelaram-me nas profundezas do
Inferno./Pois foi ordenado ao Querubim com a espada de fogo que abandonasse a
guarda da Árvore da Vida e quando isso ocorrer, toda criação será consumida e
vislumbrar-se-á infinita e purificada, pois agora apresenta-se finita &
corrompida.”. O advento trará de volta então a percepção espiritual original que
é infinita, o desvelamento do universo tem este sentido para a percepção humana
que quer de volta as suas faculdades sobrenaturais ou de ter a visão das coisas
na sua essência tal qual é, infinita, no que temos um dos versos mais
emblemáticos de William Blake, em meio de poções que fazem a potência da
percepção normal se expandir, tais que são os venenos e corrosivos, e que Blake
chama logo de métodos infernais, no que o poema segue: “Mas antes de tudo, a
noção de que o homem tem um corpo distinto de sua alma será abolida. Isto
conseguirei através do método infernal, cujos ácidos corrosivos, que no Inferno
são saudáveis & terapêuticos, ao dissolver as superfícies visíveis, revelam
o Infinito antes oculto./Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa
apareceria ao homem como é, infinita./Pois o homem se enclausurou a tal ponto
que apenas consegue enxergar através das estreitas frestas de sua gruta.”.
Através destas poções potentes o mundo se rasga e se desvela em sua origem
infinita, e o método de Blake, como o próprio nos diz, é como uma terapia que
dissolve as fronteiras usuais e revela o infinito que estava até então oculto,
e que a poesia também nos revela.
POEMAS:
O ARGUMENTO
Rintrah ruge & vibra suas flamas no ar carregado;
Nuvens vorazes pairam sobre as profundezas.
Uma vez submetido e na senda perigosa,
O homem justo manteve seu curso através
Do vale da morte.
Há rosas onde crescem espinhos,
E na charneca estéril
Cantam as abelhas.
Foi então plantada a senda perigosa,
Um rio e um manancial
Sobre cada penhasco e tumba,
E sobre os ossos branqueados
A argila rubra emergiu;
Até que o vil deixou o suave caminho,
Para trilhar sendas perigosas e impeliu
O justo até as estéreis paragens.
Agora, a furtiva serpente desliza
Na dócil humildade
E o justo enfurece nos desertos
Onde vagam os leões.
Rintrah ruge & vibra suas flamas no ar carregado;
Nuvens vorazes pairam sobre as profundezas.
Trinta e três anos após o surgimento do novo
céu, o Eterno Inferno ressurge. Mas veja! Swedenborg
é o anjo sentado sobre a cripta: Seus escritos são as
vestes de linho dobradas. É chegado o domínio de
Edom & o retorno de Adão ao Paraíso. Ver Isaías
capítulos XXXIV e XXXV.
Sem Contrários não há evolução. Atração e
Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são
necessários à existência Humana.
Destes contrários nasce aquilo que o religioso
denomina Bem & Mal. O Bem é o passivo que
obedece a Razão. O Mal é o ativo que surge da Energia.
Bem é Céu. Mal é Inferno.
A VOZ DO DEMÔNIO
Todas as Bíblias ou códigos sagrados têm sido a
causa dos seguintes erros:
1 . Que o Homem possui dois princípios reais de
Existência: um Corpo & uma Alma.
2 . Que a energia, denominada Mal, provém
unicamente do Corpo; E a razão, denominada Bem,
deriva tão-somente da Alma.
3 . Que Deus atormentará o Homem pela
Eternidade por haver imantado suas Energias.
Mas, por outro lado, são verdadeiros os
seguintes Contrários:
1 . O Homem não tem um Corpo distinto da
Alma, pois aquilo que denominamos Corpo não
passa de uma parte de Alma discernida pelos cinco
sentidos, seus principais umbrais nestes tempos.
2 . Energia é a única força vital e emana do
Corpo. A Razão é a fronteira ou o perímetro circunfeérico
da Energia.
3 . Energia é Eterna Delícia.
*
Aqueles que reprimem o desejo podem fazê-lo
Quando este é fraco e passível de ser refreado; e quem
o reprime, ou Razão, usurpa seu lugar & governa os
relutantes.
Uma vez reprimido, ele se torna cada vez mais
passivo até não ser mais que mera sombra do desejo.
Esta história se encontra escrita no Paraíso
Perdido & o Governador ou Razão chama-se Messias.
E o Arcanjo Primeiro, mentor das hordas
Celestiais, se chama Demônio ou Satã. Seus filhos
chamam-se Pecado & Morte.
Mas no Livro de Jó, o Messias de Milton é
denominado Satã.
Pois esta história tem sido adotada por ambos
os lados.
Na verdade, a Razão acabou achando que o
Desejo fora expulso. Mas a versão do Diabo pontifica
Que o Messias caiu e engendrou um Paraíso com o que
roubou do Abismo.
Isto é revelado no Evangelho, onde ele roga ao
Pai que envie o Consolador ou Desejo, de forma com
Que a Razão tenha Ideias nas quais se fundamentar.
O Jeová Bíblico não é senão aquele que habita o fogo
flamejante.
Sabeis que após sua morte, Cristo tornou-se
Jeová. Mas em Milton, o Pai é o Destino, o Filho é o
Racionalismo dos cinco sentidos & o Espírito Santo
é o Vazio!
UMA VISÃO MEMORÁVEL
Enquanto errante cruzava as flamas do Inferno,
deliciando-me com as volúpias do Gênio, que aos
anjos transfiguram-se como Tormento e Loucura,
recolhi alguns dos seus Provérbios, considerando que,
assim como as máximas de um povo exprimem o seu
verdadeiro caráter, então os Provérbios do Inferno
indicariam decerto a Sabedoria dos Vértices Abissais
melhor do que qualquer outra descrição de
Edificações ou Vestes.
Ao voltar ao lar, sobre o abismo dos cinco sentidos
onde um precipício de escorregadias escarpas
franze seu cenho a este mundo atual, vislumbrei um
poderoso Demônio em negras nuvens envolto
pairando sobre os flancos dos penhascos, e com fogos
corroentes gravava a seguinte frase, agora captada
pelas mentes dos homens, e por eles à Terra revelada:
“Como sabeis, que cada Pássaro que irrompe a
ventania não abarca um imenso universo de delícias,
imerso em vossos cinco sentidos.”
SEM TÍTULO
Os poetas da Antiguidade animaram todos os
objetos sensíveis com Deuses ou Gênios,
nomeando-os e adornando-os com as propriedades dos
bosques, lagos, cidades, nações e tudo o que seus
dilatados sentidos podiam perceber.
Particularmente, estudaram o Gênio de cada
Cidade & país, colocando-o sob a égide de sua
deidade mental.
Até que se formou um sistema, do qual alguns se
aproveitaram e escravizaram o vulgo, interpretando
e abstraindo as deidades mentais de seus respectivos
objetos. Então surgiu o Clero;
Elegendo formas de culto dos mitos poéticos.
E proclamando, por fim, que assim haviam
ordenado os Deuses.
Os homens então esqueceram que Todas as
deidades residem em seus corações.
UMA VISÃO MEMORÁVEL
Os profetas Isaías e Ezequiel jantavam comigo.
Perguntei-lhes como se atreviam a afirmar que Deus
falava com eles; e se não achavam que isto os tornava
incompreendidos & passíveis de perseguição.
Isaías respondeu: “Jamais pude ver ou ouvir Deus
dentro de uma percepção orgânica e finita; Meus
sentidos descobriram o infinito em cada coisa, e como
desde então estivesse convicto & recebesse o sinal que
a voz da indignação sincera é a voz de Deus, alheio às
consequências escrevi.”
Então perguntei: - “A firme convicção de que
uma coisa é, assim pode torná-la?
Ele respondeu: - “Todos os poetas têm a certeza disto &
em épocas de imaginação, esta fé inquebrantável moveu montanhas. No entanto,
poucos conseguem ter essa firme convicção de qualquer coisa.”
Ezequiel retrucou: “A filosofia do Oriente ensinou os
princípios básicos da percepção humana. Algumas nações adotaram um princípio
para a origem. Outras criaram versões distintas para explicá-la. Nós, de
Israel, ensinamos que o Gênio Poético (como agora o denominam) foi o princípio
básico e os demais não passam de meras derivações. Esta é a razão de nosso
desprezo pelos Filósofos & Sacerdotes de outros países. Profetizamos, e
disto não resta dúvida, que todos os Deuses são originários do nosso &
tributários do Gênio Poético. Foi precisamente isto que nosso grande poeta, o
Rei Davi, desejava mais fervorosamente & evocou de forma tão enternecedora,
exprimindo que é assim que triunfa-se sobre os inimigos e governa-se os reinos.
Tanto amamos nosso Deus que em seu nome desdenhamos todas as deidades das
nações vizinhas, afirmando que elas haviam se rebelado: Daí advém que o vulgo
acabasse por acreditar que todas as nações seriam submetidas pelos judeus.”
“Isto”, disse ele, “como todas as firmes convicções, está
prestes a se realizar já que todas as nações acreditam no código judaico e veneram
o Deus dos judeus. Que maior sujeição poderia haver?
Ouvi assombrado & não pude deixar de confessar minha
própria convicção. Terminando o jantar, pedi a Isaías que regalasse o mundo
revelando suas obras perdidas. Ele respondeu que nenhuma obra de valor se
perdera. Das suas obras, Ezequiel afirmou o mesmo.
Também perguntei a Isaías o que levara-lhe a vagar desnudo
por três anos. Ele respondeu: _ “O mesmo que impeliu nosso amigo Diógenes o
Grego.”
Perguntei então a Ezequiel por que deglutira esterco &
permanecera por tanto tempo deitado de lado direito & esquerdo. Ele
respondeu: _ Para elevar os homens à percepção do infinito. As tribos
norte-americanas também utilizam esta prática & poder-se-ia dizer honesto
aquele que, resistindo a seu gênio ou consciência, os troca pelo bem-estar e a
satisfação imediata?
A antiga crença de que o mundo será consumido pelo fogo ao
cabo de seis mil anos é real, como revelaram-me nas profundezas do Inferno.
Pois foi ordenado ao Querubim com a espada de fogo que
abandonasse a guarda da Árvore da Vida e quando isso ocorrer, toda criação será
consumida e vislumbrar-se-á infinita e purificada, pois agora apresenta-se
finita & corrompida.
E isto ocorrerá mediante a sofisticação do prazer sensual.
Mas antes de tudo, a noção de que o homem tem um corpo
distinto de sua alma será abolida. Isto conseguirei através do método infernal,
cujos ácidos corrosivos, que no Inferno são saudáveis & terapêuticos, ao
dissolver as superfícies visíveis, revelam o Infinito antes oculto.
Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa
apareceria ao homem como é, infinita.
Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue
enxergar através das estreitas frestas de sua gruta.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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