PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 10 de dezembro de 2016

CHARLES BAUDELAIRE E AS FLORES DO MAL – PARTE II

“ele tem na ideia de dândi um procedimento para a poesia e também para a própria vida”

CHARLES BAUDELAIRE
DANDISMO
O dandismo baudelairiano serve tanto à sua ideia ou conceito estético como à uma forma de conduta social e humana, e ele tem na ideia de dândi um procedimento para a poesia e também para a própria vida, e que tem como uma de suas fundações a ideia de que a natureza está corrompida por si mesma, a corrupção da natureza é aqui a própria natureza, seu fenômeno.  
Como uma reação à ideia comum e tradicional de ver a natureza como fonte do bem e do belo, como em correntes literárias do século XVIII, Baudelaire levanta a ideia contra-intuitiva da natureza como a de que ela é abominável, e sua figura de dândi seria então uma subversão artificial do que já veio subvertido, e seu disfarce de dândi, para Baudelaire, era como um tipo de fuga da dor, uma maquilagem onde ele poderia ter alguma força e vida.
O dandismo baudelairiano aparece aqui como uma manifestação do espírito, algo que se reflete como um processo da vida interior, e que, falando da visão religiosa de Baudelaire, que se dá como um catolicismo que se volta contra os instintos originais, também sendo uma das formas em que se conclui e se fundamenta este seu dandismo. Tal artifício do dandismo viria, então, como uma forma forçada de corrigir a imperfeição natural, e este seria, por fim, segundo a ideia de atores sociais, o desiderato principal e talvez único de toda a civilização. Quando Baudelaire afirma, fundando o seu dandismo, que tudo o que é natural é abominável, poderíamos nos desligar da ideia primeira de uma subversão para irmos em direção ao que contém outra ideia mais importante e fundamental, que é a do pecado original.
E temos, então, com o dandismo, um tipo de conduta aristocrática, o entendimento possível da estética baudelairiana, o escritor como artista, com esse dândi nos aparecendo como o próprio artista superior, como um demiurgo autoconsciente que do caos vocabular nos entrega arte, e que se consagra à elaboração artificial, como um procedimento intelectual, num processo criativo que tendo o poeta como um dândi, neste processo não temos, portanto, a participação da natureza, pois esta aparece segundo a ideia de corrupção como amoral e monstruosa.
CORRESPONDÊNCIA
Baudelaire tem em Edgar Poe a sua inspiração da imagem do mundo material como correspondência do céu, mas temos também que tal conceito ou ideia tem origens mais antigas, no que podemos ver, portanto, uma teoria das correspondências já presente entre os alexandrinos, isso nos primeiros alvores da era cristã, e também durante o século XIII, nos textos do teólogo italiano São Boaventura. Três séculos depois, por conseguinte, voltamos a encontrá-la nas obras de São João da Cruz. Mas é no século XVII que a teoria das correspondências encontra seu primeiro codificador, que é o filósofo sueco Emmanuel Swedenborg, que em seu Arcana coelestia (1749-1756) Baudelaire decerto tomou conhecimento. E ao longo dos séculos XVIII e XIX a ela irão se referir figuras como Pascal, Malebranche, Spinoza, Hegel, Schelling, Hoffmann e Novalis.
No contexto da época de Baudelaire, além de Joseph de Maistre, que também tematizou o assunto, temos também três outros autores cujas obras o poeta não ignorava: François Marie Charles Fourrier, autor de uma Théorie de l`unité universelle (1841), o pietista suíço Johann Kaspar Lavater, que foi um dos precursores do romantismo alemão, além do místico polonês Hoëné Wronski. E sabemos também que Baudelaire teve acesso aos textos esotéricos de Eliphas Lévi, cujo Dogme et rituel de haute magie está citado em nota a um de seus poemas e segundo quem “o visível é a medida proporcional do invisível”.
O mundo visível seria então um tipo de processo platônico em que, na correspondência de um mundo invisível e superior, o mundo visível seria uma imagem imperfeita e caduca desse céu cuja conquista o poeta deveria empreender, com o fito de ver a revelação do que o poeta teria como a “tenebrosa e profunda unidade” que Lavater tematiza e que Baudelaire evoca em sua poesia. E tais correspondências também chegam a Baudelaire por fontes diversas como a do cromatismo musical de Wagner, sobretudo o de Lohengrin e de Tannhäuser, e que tem a ideia de união entre as misteriosas harmonias musicais com os mistérios da harmonia verbal. E podemos também pensar nas sinfonias de cores a que o poeta se refere quando analisa as telas de Delacroix, chegando à conclusão de que, assim como Wagner, Baudelaire também tentou alcançar uma arte total na qual a palavra, a cor e o som, num sistema difuso por analogias fizesse esta sugestão de um infinito sonho de espaço e profundidade na qual houvesse a revelação da beleza.
Assim como Swedenborg, ao deprimir o símbolo, na redução ao mínimo da autonomia da letra e do signo, quando afirma: “O fim enverga os trajes que mais lhe convém para poder existir como causa numa esfera inferior.”, assim também faz Baudelaire, pois lhe caberia, na representação alegórica do mundo, o erguimento de um tipo de refúgio contra a realidade da existência separada, com a sua batalha sendo empreendida no plano possível para ele, o da poesia.
Lendo Baudelaire em L`art romantique se percebe uma comunhão com os pontos de vista de Swedenborg, segundo quem tudo “o que foi criado guarda alguma relação de semelhança com o homem”. E se nossa ordem física não faz senão reproduzir a hierarquia do espírito, o microcosmo assume a imagem de Deus, e a realidade nada mais é que um pesadelo logo dissipado. E como nos ensina Eliphas Lévi: “A analogia dá ao mago todas as forças da natureza.”
POEMAS:
SEMPER EADEM: O poema se abre, com uma visão sinistra da vida, a qual a poesia também tematiza, pois nem sempre tal arte de versos se dá em idílio, mas também em tédio e amargor, como se vê: ““De onde te vem, responde, essa tristeza infinda/Que galga, como o mar, o negro e nu rochedo?”/_ Quando no coração nossa colheita finda,/Viver é um mal. Ninguém ignora este segredo,/Uma dor muito simples, nada misteriosa,/A todos familiar, como tua alegria./Nada queiras saber, minha bela curiosa!/E, embora a voz te seja afável, silencia!”. Aqui a vida aparece como um mal, e eis que também é, pois sempre nos veremos com a felicidade e a dor, como numa face dupla em que também a poesia refletirá a natureza deste jogo, e fecha entre a vida e a morte, também imagem auspiciosa e terrível de um bem e de um mal, e que neste poema tem face negativa, num sopro gótico e terrível: “Ainda mais do que a Vida,/A Morte nos enlaça em seus sutis idílios.”
REVERSIBILIDADE: O poema evoca a angelitude, aparecem em cada estrofe um anjo, este começa com o anjo da alegria, que em vão enfrenta esta angústia do poeta Baudelaire, quando este diz: “Ó anjo de alegria, já viste a desgraça,/Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,/E o difuso terror dessas noites medonhas/Que o peito oprimem como um papel que se amassa?”. A ideia de opressão, presente tanto em situações banais como em lutas graves do espírito, atazanam o poeta, que não poupa este seu difuso terror, mas ainda nutre algo, e se dirige ao anjo de bondade: “Ó anjo de bondade, já viste o rancor,/As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,/Quando brande a Vingança o seu apelo cruel/E de nossas virtudes torna-se o senhor?”. O fel aqui enegrece as virtudes que ainda viviam em tal infortunado espírito, no que Baudelaire faz então seu clamor ao anjo de saúde, quando vêm os versos: “Ó anjo de saúde, já viste os Delírios,/Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,/Como exilados vão em seu passo tardio,/Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?”. Os delírios são como sentimentos de exílio, no que Baudelaire enfim evoca o anjo de beleza: “Ó anjo de beleza, as rugas já não viste,/Não viste o medo da velhice e este suplício/De ler o esfíngico pavor do sacrifício/No olhar que outrora nos saciou a gula triste?”. A velhice, com sua sonora decrepitude, aqui o poeta já tem mais virtudes, mas ainda tenta, com o anjo de ventura, salmodiar uma última luz ou clarão, o que é nada mais que uma oração, e com o coração de poeta em tal fim de júbilo, em clamor: “Mas a ti só imploro as tuas orações,/Ó anjo de ventura e júbilo e clarões!”. A esperança está ainda em tal poema, mesmo que repleto de dor.
A BELA NAU: A feiticeira aparece como musa e esta também está na sua relação com a imagem da nau, esta perfeição do mar, segundo os infindos poetas em suas diversas plêiades, e que Baudelaire, numa paixão poética, clama: “Eu quero te contar, lânguida feiticeira,/Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!/Quero pintar tua beleza,”. Ele atua aqui como um poeta-pintor, e faz a fusão da feiticeira com a nau, no que seguem os versos marítimos: “És como a bela nau que rumo às ondas larga,/Cheia de véus soltos ao vento,”. E vai ao colo da musa, sem mais: “Teu colo vitorioso é como um belo armário,/Cujos claros gomos convexos/Como os broquéis capturam rútilos reflexos;” (...) “Vinhos, perfumes e licores/Que o coração e a mente inundam de torpores!”. O entorpecimento é este peito que conforta o poeta, o colo da musa, como um vinho potente, um licor forte ou um perfume onipresente: “Teus braços, que aos titãs enfrentam nas porfias,/São sólidos rivais das víboras sombrias,/Feitos para o fatal abraço/E para o amante eternizar em teu regaço.”. O refúgio ou regaço é, ao fim, a busca da paz de espírito, a qual não se dá sem ser na feiticeira, sua bela nau em que ele poderá descansar de seus infernos, e se eternizar em júbilo.
A UMA DAMA CRIOULA: O poema tem sua musa admirável, e aqui Baudelaire a contempla em versos nada sutis: “No inebriante país que o sol acaricia,/Sob um dossel de agreste púrpura bordado/E a cuja sombra nosso olhar se delicia,/Conheci uma crioula de encanto ignorado.” (...) “A graciosa morena, cálida e arredia,/Tem na postura um ar nobremente afetado;/Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,/Seu sorriso é tranquilo e seu olhar ousado.”. Eis uma musa ousada, e que apraz o poeta, este admirador da audácia: “Caso viesses, Senhora, à heroica e eterna França,/Junto às margens do Sena ou onde o Loire se lança,/Tu que és digna de ornar os solares altivos,”. E ele a quer na terra francesa, e é quando poderia fazer seus sonetos, quando diz: “Farias, ao abrigo das sombras discretas,/Mil sonetos brotar no coração dos poetas,”.
MOESTA ET ERRABUNDA: O poema se abre em tais versos: “Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola,/Fugindo ao negro oceano da imunda cidade,/Em busca de outro oceano que jamais se estiola,/Profundo, claro, azul, tal como a virgindade?”. O profundo oceano, de um azul infinito, na fuga da cidade, eis que o poeta então se volta ao mar: “O mar, o vasto mar, nos purga os sofrimentos!/Que duende deu ao mar, jogral de áspero canto/Que acompanha o feroz e imenso órgão dos ventos,/Essa função sublime e sábia do acalanto?”. O sublime do mar se dá aqui como som e música de acalanto, o poeta contempla na distância do olhar, e vêm tais versos: “Como estás longe, paraíso perfumado,/Onde à tristeza e ao ódio o espírito se nega,/Onde tudo o que se ama faz por ser amado,/Onde à pura volúpia o coração se entrega!”. O poeta é irmanado com a volúpia, e evoca, enfim, um jardim prazeroso, no que o poema finda em questão nevrálgica: “Evocá-lo se pode em gritos pungitivos,/Ou talvez animá-lo com voz argentina,/O inocente jardim dos prazeres furtivos?”.
SPLEEN – LXXVI: O poema tenta revelar o espírito do poeta, que é aqui evocado como maior e mais vasto que todo conteúdo material da civilização, uma alma vasta e infinita, no que Baudelaire produz tais versos ousados: “Eu tenho mais recordações do que há em mil anos./Uma cômoda imensa atulhada de planos,/Versos, cartas de amor, romances, escrituras,/Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,/Guarda menos segredos que o meu coração.”. Seu coração, o poço de segredos, ultrapassa até esta nossa terra em que vivemos, e os versos continuam: “Sou como um camarim onde há rosas fanadas,/Em meio a um turbilhão de modas já passadas,” (...) “Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,/Quando, sob o rigor das brancas invernias,/O tédio, taciturno exílio da vontade,/Assume as proporções da própria eternidade.”. Mas eis que um dos temas dominantes da poesia baudelairiana dá as caras, é o tédio, este intruso anti-musa do poema gótico e sinistro: “Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,/Esquecida no mapa, e cujo áspero humor/Canta apenas aos raios do sol a se pôr.”. Áspero humor, esgar de ironia, farsa, enfim, tédio.
SPLEEN – LXXVII: O poema, mais um da série famosa do spleen baudelairiano, nos brinda: “Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,/Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,/Que, desprezando do vassalo a cortesia,/Entre seus cães e os outros bichos se entendia.”. O tédio, mais uma vez, e Baudelaire dá os seus efeitos: “Em tumba se transforma o seu florido leito,” (...) “E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,/De que se lembram na velhice os soberanos,/Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,/Em vez de sangue flui a verde água do Letes.”. O tédio enfim aqui se junta ao leito mortal do Letes, morte e tédio são aqui sinônimos.
POEMAS:  
SEMPER EADEM
(N. do T. “sempre a mesma”)
“De onde te vem, responde, essa tristeza infinda
Que galga, como o mar, o negro e nu rochedo?”
_ Quando no coração nossa colheita finda,
Viver é um mal. Ninguém ignora este segredo,

Uma dor muito simples, nada misteriosa,
A todos familiar, como tua alegria.
Nada queiras saber, minha bela curiosa!
E, embora a voz te seja afável, silencia!

Cala-te, tola! alma de tudo embevecida!
Boca de riso ingênuo! Ainda mais do que a Vida,
A Morte nos enlaça em seus sutis idílios.

Deixa-me o coração confiar no que suponho,
Dentro em teus olhos mergulhar como num sonho,
E dormir longo tempo à sombra de teus cílios!

REVERSIBILIDADE

Ó anjo de alegria, já viste a desgraça,
Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,
E o difuso terror dessas noites medonhas
Que o peito oprimem como um papel que se amassa?
Ó anjo de alegria, já viste a desgraça?

Ó anjo de bondade, já viste o rancor,
As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,
Quando brande a Vingança o seu apelo cruel
E de nossas virtudes torna-se o senhor?
Ó anjo de bondade, já viste o rancor?

Ó anjo de saúde, já viste os Delírios,
Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,
Como exilados vão em seu passo tardio,
Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?
Ó anjo de saúde, já viste os Delírios?

Ó anjo de beleza, as rugas já não viste,
Não viste o medo da velhice e este suplício
De ler o esfíngico pavor do sacrifício
No olhar que outrora nos saciou a gula triste?
Ó anjo de beleza, as rugas já não viste?

Ó anjo de ventura e júbilo e clarões,
Davi da morte se teria levantado
Sob os eflúvios de teu corpo enfeitiçado;
Mas a ti só imploro as tuas orações,
Ó anjo de ventura e júbilo e clarões!

 A BELA NAU

Eu quero te contar, lânguida feiticeira,
Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!
Quero pintar tua beleza,
Na qual a infância se conjuga à madureza.

Quando vais, sacudindo no ar a saia larga,
És como a bela nau que rumo às ondas larga,
Cheia de véus soltos ao vento,
Seguindo um ritmo doce e preguiçoso e lento.

Sobre a robusta espádua e o pescoço roliço,
Tua cabeça se ergue envolta em graça e viço;
A um tempo só triunfante e mansa,
Prossegues teu caminho, majestosa criança.

Eu quero te contar, lânguida feiticeira,
Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!
Quero pintar tua beleza,
Na qual a infância se conjuga à madureza.

Teu colo que arfa sob o traje fluido e vário,
Teu colo vitorioso é como um belo armário,
Cujos claros gomos convexos
Como os broquéis capturam rútilos reflexos;

Provocantes broquéis de agudas pontas rosas!
Armários cheios de iguarias tão preciosas:
Vinhos, perfumes e licores
Que o coração e a mente inundam de torpores!

Quando vais, sacudindo no ar a saia larga,
És como a bela nau que rumo às ondas larga,
Cheia de véus soltos ao vento,
Seguindo um ritmo doce e preguiçoso e lento.

As nobres pernas, sob os folhos que se amassam,
Os maus desejos atormentam e espicaçam,
Quais duas bruxas que, ao acaso,
Um negro filtro vão mexendo em fundo vaso.

Teus braços, que aos titãs enfrentam nas porfias,
São sólidos rivais das víboras sombrias,
Feitos para o fatal abraço
E para o amante eternizar em teu regaço.

Sobre a robusta espádua e o pescoço roliço,
Tua cabeça se ergue envolta em graça e viço;
A um tempo só triunfante e mansa,
Prossegues teu caminho, majestosa criança.

 A UMA DAMA CRIOULA

No inebriante país que o sol acaricia,
Sob um dossel de agreste púrpura bordado
E a cuja sombra nosso olhar se delicia,
Conheci uma crioula de encanto ignorado.

A graciosa morena, cálida e arredia,
Tem na postura um ar nobremente afetado;
Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,
Seu sorriso é tranquilo e seu olhar ousado.

Caso viesses, Senhora, à heroica e eterna França,
Junto às margens do Sena ou onde o Loire se lança,
Tu que és digna de ornar os solares altivos,

Farias, ao abrigo das sombras discretas,
Mil sonetos brotar no coração dos poetas,
Que de teus olhos, mais que os negros, são cativos.

MOESTA ET ERRABUNDA
(N. do T. “triste e erradia”)
Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola,
Fugindo ao negro oceano da imunda cidade,
Em busca de outro oceano que jamais se estiola,
Profundo, claro, azul, tal como a virgindade?
Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola?

O mar, o vasto mar, nos purga os sofrimentos!
Que duende deu ao mar, jogral de áspero canto
Que acompanha o feroz e imenso órgão dos ventos,
Essa função sublime e sábia do acalanto?
O mar, o vasto mar, nos purga os sofrimentos!

Carrega-me, vagão! batel, leva-me embora!
Bem longe! aqui do nosso pranto faz-se o lodo!
_ Será que de Ágata a alma às vezes não implora:
Para além do remorso, do crime, do engodo,
Carrega-me, vagão, batel, leva-me embora?

Como estás longe, paraíso perfumado,
Onde à tristeza e ao ódio o espírito se nega,
Onde tudo o que se ama faz por ser amado,
Onde à pura volúpia o coração se entrega!
Como estás longe, paraíso perfumado!

E o verde paraíso das frágeis meninas,
As fugas, as canções, os beijos que roubamos,
Os violinos vibrando por trás das colinas,
Com cântaros de vinho, à tarde, sob os ramos
_ E o verde paraíso das frágeis meninas,

O inocente jardim dos prazeres furtivos,
Já estará mais distante do que a Índia e a China?
Evocá-lo se pode em gritos pungitivos,
Ou talvez animá-lo com voz argentina,
O inocente jardim dos prazeres furtivos?

SPLEEN – LXXVI

Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.

Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
_ Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.

Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,
O tédio, taciturno exílio da vontade,
Assume as proporções da própria eternidade.
_ Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!

Um granito açoitado por ondas de assombro,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas aos raios do sol a se pôr.
(François Boucher (1703-1770), pintor e gravador francês. Autor de cenas pastoris, religiosas, mitológicas e alegóricas, cujas cores desmaiadas lembram pastéis. Parte de sua obra está no Louvre.)

SPLEEN – LXXVII

Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entendia.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.
Em tumba se transforma o seu florido leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.
O sábio que ouro lhe fabrica desconhece
Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,
E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,
Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,
Em vez de sangue flui a verde água do Letes.
(Em gr. Léthe, um dos rios do Inferno. Sua água fazia esquecer o passado àqueles que dela bebessem.)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31858/17/charles-baudelaire-e-flores-do-mal-parte-2

domingo, 4 de dezembro de 2016

CHARLES BAUDELAIRE E AS FLORES DO MAL – PARTE I

“A poesia de Baudelaire terá a revelação de um extraordinário senso plástico e visual”

CHARLES BAUDELAIRE
Das diversas abordagens que se pode ter da poesia de Charles Baudelaire, estas não podem se furtar, contudo, de algumas das imposições de natureza biográfica e literária. Por conseguinte, a face dupla de biografia e literatura estão, portanto, entretecidas com fenômenos de importância crucial para o entendimento do escritor e do homem Charles Baudelaire, que são: a primeira, o fato de não podermos desvencilhar o legado, à época, revolucionário de seu livro de poesia As Flores do Mal, da tortuosa e dolorosa existência que levou seu autor, tendo consubstanciado ainda, antes mesmo do que vultos como Rimbaud, Rilke ou Yeats, aquele trânsito do lirismo pessoal ao lirismo da persona; a segunda, a de que Baudelaire, já muito bem resgatado e erguido em definitivo pela posteridade, deve ser visto não somente ao lume de sua época, a da agonia romântica, como também alguém que, mesmo a partir de outras tradições, foi um precursor de uma forma nova de poesia, antecipando em muito os vultos aqui supracitados, e que terá, Baudelaire, muitas e cruciais influências que lhe inspirarão sua produção em poesia e todo o seu ideário estético.
A poesia de Baudelaire terá a revelação de um extraordinário senso plástico e visual, o que também irá refletir em seu trabalho como o maior crítico de arte do seu tempo, e que será o responsável, por sua bela intuição, pelo reconhecimento definitivo de artistas como Delacroix, Manet, Constantin Guys ou Daumier. Há ainda uma outra visão que demonstra  uma das configurações possíveis da poesia baudelairiana, que é quando Baudelaire, no fragmento XVII de Mon coeur mis à nu, nos relata a sua funda impressão que lhe causou (e lhe causaria pela vida afora) o rigor estrutural de um lustre de teatro. E a quem porventura se haja familiarizado com a arte de Baudelaire se lembrará desta sugestão de uma analogia entre a arquitetura e feitura de seus poemas e a desse lustre.
O poema baudelairiano é então este “belo objeto luminoso, cristalino, complicado, circular e simétrico”, no qual se refletirá a conjunção harmônica entre a emoção e o rigor formal, num conflito espiritual entre ascensão e queda, carne e espírito, num pólemos heraclitiano que entranhará toda a tessitura de sua poesia. Tal visão desse lustre será, portanto, uma antevisão estética de um conceito de poema que irá encontrar eco nas teses levantadas, posteriormente, pelo Poetic principle de Edgar Poe, do qual Baudelaire será tributário, guardadas as proporções.
A infância de Baudelaire será, por sua vez, o início da chamada Queda, à definitiva expulsão do Paraíso, aos sinais de um abismo que não mais cessará de aprofundar-se e no qual a alma de Baudelaire jamais encontrará nenhum repouso, num tipo de infinito que não se dará como algo místico, e sim como o desconhecido no qual se precipita o poeta, como lemos em “Horreur sympatique”, dor que também será deplorada em “Moesta et errabunda”, que é a da extinção da ventura paradisíaca.
Aos 20 anos, por sua vez, Baudelaire já é um artista e homem maduro, embora sua produção poética permaneça ainda quase desconhecida dos grandes autores da época. E tal momento é o de seu primeiro encontro com a mulata Jeanne Duval, a Vênus negra, que será a figurante malograda de uma medíocre féerie levada à cena no Théâtre du Pantheón. A ela Baudelaire se unirá por quase toda a sua vida, num turbilhão de voluptuosa paixão; e para ela serão escritos alguns dos mais belos e comovidos poemas de que já teve notícia a literatura de língua francesa.
Mas tal volúpia de Baudelaire se configurará também de outro modo: a do observador que se oculta sob as máscaras, como a do dândi estoico e aristocrático que recorre à “disciplina”, à “higiene” e à “toalete” para corromper sua espontaneidade, para mortificar o corpo numa ascese do artificial. Baudelaire, neste momento, já se vê distante do romantismo, já percebendo esta pálida luz de um mundo em agonia.
Pois para Baudelaire, muitas vezes romântico por seus gostos e origens, não mais lhe interessava prolongar os abusos e contradições do romantismo, como tampouco reavivar um movimento literário já em flagrante processo de dissolução e decomposição. Pois Baudelaire, então, tinha uma sensibilidade estética e um senso crítico que não se via em seus companheiros de sua época, e então ele não mais poderia tolerar os transbordamentos líricos e elegíacos dos agônicos românticos de sua época, já que ele antevia uma nova concepção de romantismo que diferia em tudo da empostação retórica de um Hugo ou das lamentações clangorosas de um Musset, além de George Sand lhe repugnar em demasia. E nessa nova vertente romântica a qual Baudelaire fará parte, já se poderia ver no que o próprio observará em algumas passagens do Salon de 1846, num tipo de nova pedra angular fundada na sinceridade.
A formação intelectual e literária de Baudelaire, contudo, estava muito distante de uma simples restrição ao âmbito do romantismo francês, pois ele tinha várias outras influências que vão de seus vínculos iniciais com a Escola Normanda, onde pontificavam Gustave Le Vavasseur e Ernest Prarond – este o primeiro dos biógrafos do poeta -, bem como suas admirações por Saint-Beuve, pelo próprio Vigny, cuja nobreza de sentimentos e de linguagem Baudelaire apreciava. Tendo ainda herdado algo do grande Chateaubriand, do pessimismo filosófico de Joseph de Maistre, sobretudo o de Les soirées de Saint-Pétersbourg, de Théophile Gautier, em particular o de La comédie de la mort, de Albertus e de España, de Aloÿsius Bertrand, cujo Gaspard de la nuit lhe impregna os Petit poèmes em prose, do Charles Nodier da Inès de las sierras, do Frédéric Soulier das Mémoires du diable, do Pétrus Borel de Madame Putiphar, ou ainda as suas grandes admirações da maturidade, que contam com nomes como Flaubert, Balzac e Stendhal.
E ainda temos as fontes desta formação de Baudelaire devendo seu tributo a autores de outras épocas, pois seu amor à clareza, à lucidez, à correção da linguagem, à concisão do estilo estão em lugares distintos do espírito predominantemente romântico do cenário poético e literário francês de sua época. E aqui seria o caso de referir as leituras que fez o poeta dos latinos da decadência, como Marcial, Juvenal, Petrônio, Lucano; dos poetas da primeira Plêiade, entre os quais Ronsard, du Belay e Belleau; das Satyres e de L`art poétique de Boileau; de Racine, Pascal e Bossuet; e ainda dos padres da Igreja latina e dos escritores cristãos, se destacando aqui Tertuliano e Santo Agostinho, de quem lhe virá o seu platonismo. Há, de outro lado, a influência que Baudelaire também receberá dos escritores de língua inglesa, onde figuram Coleridge, Byron, Keats, Maturin, Walpole, Lewis, Thomas Gray, Anne Radcliffe e De Quincey, bem como os contos de Hoffmann e a mística de Swendeborg, a cujas obras o romantismo francês – e muito particularmente Baudelaire – deverá em grande parte o seu satanismo e a sua fantasmagoria gótica. E há, por fim, o seu encontro crucial com Edgar Poe.
Com Poe haverá uma convergência de pontos de vista e de teses literárias, muito mais do que um tributo direto de Baudelaire, como autor de As Flores do Mal, deverá ao gênio de Baltimore. Pois o principal culpado por essa controvérsia é, aliás, o próprio Baudelaire, não somente pelo fato de ter sido tradutor de praticamente toda a prosa de Poe, mas também por Baudelaire se referir ao poeta norte-americano no sentido de ser sua grande influência. Já que ao nos debruçarmos sobre a obra de ambos, há uma espécie de comunhão conceitual no que respeita às exigências estético-doutrinárias contidas no Poetic principle. No entanto, muito do que está em Poe já estava no pré-romantismo de Gray e de Young, cujos acentos fúnebres e sombrios não eram estranhos a Baudelaire, que intertextualizou aquele primeiro no poema “Le guignon”.
Por fim, Baudelaire só toma conhecimento da obra de Poe por volta de 1846, numa época em que, segundo o depoimento de Prarond, de Champfleury, de Asselineau e de Banville, sua concepção de poesia já se achava bem definida. Muitos dos poemas de As Flores do Mal, por sua vez, já haviam sido escritos e alguns deles até mesmo publicados em L`artiste, já tendo Baudelaire alcançado a valência de poeta original. Não há dúvida de que Baudelaire meditou longamente sobre o Poetic principle, que ademais traduziu e em parte reproduziu em suas Notes sur Edgar Poe, mas a influência de Poe em Baudelaire é conceitual, é de teses e ideias, e não na forma de fazer poesia do autor célebre de As Flores do Mal.
Pois, neste sentido de um ideário geral, de um espírito estético, Baudelaire toma em Poe algumas noções que remontam à gênese do que viria a ser a poesia moderna, tais como as de sua autonomia em relação à filosofia, a moral, a história, ou a política, das possibilidades de análise psicológica que oferece um poema, e da economia geral quanto aos meios de expressão e a própria duração do discurso poético, no que se sabe que Poe entenderia o poema longo nos termos de “uma contradição pura e simples” ou da música como dado essencial da linguagem poética. Portanto, mesmo com o fato de Baudelaire ter se aproveitado e apropriado do sentimento e da substância de alguns dos poemas de Poe, isto não diz que seja uma submissão literária ao trabalho de Poe, mas antes o fenômeno de uma prática intertextual que, embora muito mal vista pelos românticos, foi prática comum pelos antigos, uma vez que até o século XVI imitar os clássicos era prova de elegância e de bom gosto, intertextualidade que também veremos nos modernos, sobretudo a partir de The waste land, de Eliot.
O êxtase hierático de Poe, por sua vez, não terá nada a ver com o sensualismo dos impulsos místicos de Baudelaire, pois não haverá nenhum repouso na angústia do abismo baudelairiano, cujas fontes residem em Pascal e na própria noção cristã da Queda. E o horror de Baudelaire à democracia ou ao julgamento popular, não é também em Poe que ele colhe, mas sim nas teorias reacionárias que Joseph de Maistre expõe em Les soirées de Saint-Pétersbourg. E serão Poe e Maistre, por sua vez, que o levarão também a um outro ponto da concepção estética, donde se terá o conhecido gosto de Baudelaire pelo difícil, o seu esforço de evasão, a sua mística da concentração e da lucidez, tal como o herói emersoniano, com Baudelaire aspirando à condição de um ser “immovably centred”, culminando em seu espiritualismo e em seu estoicismo de santo e de esteta, e seu ódio a tudo o que fosse natural, com a sua necessidade de intermediação e do distanciamento criados pelas máscaras, artifício que irá lhe conferir, por fim, seu trânsito da pessoa à persona, com a mais visceral e característica dessas máscaras, que será a do dândi, sem a qual, enfim, Baudelaire não poderá ser compreendido.
   
POEMAS:
AO LEITOR: O poema mais que clássico da abertura de As Flores do Mal, temos o Baudelaire gótico e satanista, com toda a noção do abismo em suas entranhas, o pecado e a queda, cujas letras e versos aparecem como numa descarga maligna, e temos: “A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez/Habitam nosso espírito e o corpo viciam,/E adoráveis remorsos sempre nos saciam,”. Aqui temos a tragédia dos erros, todo o logro que herdamos e repetimos, o vício sendo não só algo tóxico, externo, mas também sendo a própria alma confessa de alguém que está perdido, e com remorsos esta alma da tortura se sacia, no entanto, no que Baudelaire segue: “Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;/Impomos alto preço à infâmia confessada,”. A confissão é um peso e uma mordaça, e seu satanismo aparece, pois um tal Mephisto sempre está à espreita, a nos perturbar os sentidos e nos dar ideias infames, e Baudelaire continua, impassível: “Na almofada do mal é Satã Trismegisto/Quem docemente nosso espírito consola,” (...) “É o Diabo que nos move e até nos manuseia!/Em tudo o que repugna uma joia encontramos;/Dia após dia, para o Inferno caminhamos,”. O caminho para o inferno, por fim, é ver o mundo manipulado pelo maligno, como nos faz crer Baudelaire, neste poema insano: “Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,/Em nosso crânio um povo de demônios cresce,”. A obsessão aqui é mental, e que aparece como uma multidão de vermes crescendo no infortunado crânio humano, joguete deste Mal: “Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada/Não bordaram ainda com desenhos finos/A trama vã de nossos míseros destinos,/É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.”. E o destino aparece aqui como um ato de ousadia, temos ainda que viver mais, é ao que nos convida Baudelaire, em seu diabolismo em forma de poema: “Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,/Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,/Aos monstros ululantes e às viscosas feras,/No lodaçal de nossos vícios imortais,/Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo!/Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,/Da Terra, por prazer, faria um só detrito/E num bocejo imenso engoliria o mundo;/É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,/Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado./Tu conheces, leitor, o monstro delicado/- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”. E o contraponto é o demônio que domina o mundo, como num grande bocejo, o Tédio, este ser indesejável, como a mítica penúria, que nos rouba a luz, e nos joga no inferno bem conhecido que é o nada, o vazio, e que tal nada e vazio é tudo o que chamamos de hipocrisia, pois por fim o companheiro fiel deste demônio do tédio é a hipocrisia, e desta ninguém se salva, o poeta está irmanado neste abraço de afogados com seu leitor e com a humanidade.
O ALBATROZ: Eis um dos mais belos poemas de Baudelaire e de As Flores do Mal, que nos abre ao prazer do voo: “Às vezes, por prazer, os homens da equipagem/Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,/Que acompanha, indolente parceiro de viagem,/O navio a singrar por glaucos patamares./Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,/O monarca do azul, canhestro e envergonhado,/Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,/As asas em que fulge um branco imaculado.” E a fusão do albatroz, em seu longo voo, com a do poeta das alturas, se dá como grande e infindável ventura, esta ideia cara do poeta como pássaro e voo: “O Poeta se compara ao príncipe da altura/Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;/Exilado no chão, em meio à turba obscura,/As asas de gigante impedem-no de andar.”. O sonho que o poeta tem com o albatroz talvez seja este cume paradisíaco que todo poema tenta alcançar, o voo como verso, o poema como as asas.
CORRESPONDÊNCIAS: O poema, de bela feitura, nos honra e orna a vivência, com tal viço natural, no que temos: “A Natureza é um templo onde vivos pilares/Deixam filtrar não raro insólitos enredos;/O homem o cruza em meio a um bosque de segredos” (...) “Como ecos longos que à distância se matizam/Numa vertiginosa e lúgubre unidade,/Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,/Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.” (...) “Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,/Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.”. A ideia de totalidade aqui se torna um tipo de sinestesia em que o poeta com seus sentidos e sua mente tenta captar este todo de que são feitos os sons, as cores e os perfumes.
O HOMEM E O MAR: O poema tem como temática uma das concepções mais caras à poesia, a sua relação com o mar, e este poema honra toda esta música oceânica, no que nos dá tais sons e visões: “Homem liberto, hás de estar sempre aos pés do mar!/O mar é o teu espelho;” (...) “Apraz-te mergulhar bem fundo em tua imagem;” (...) “Sois todos esses deuses turvos e discretos:/Homem, ninguém sondou-te as furnas mais estranhas;/Ó mar, ninguém tocou-te as íntimas entranhas,” (...) “E todavia há séculos inumeráveis/Combateis sem nenhum remorso nem piedade,/Tamanho amor guardais à morte e à crueldade,/Ó meus irmãos, ó gladiadores implacáveis!”. A imagem do homem está no mar, o espelho deste imenso mar que abraça a poesia e o poeta, e nos dá também a face do mundo natural.
A BELEZA: O poema evoca a beleza, e ela aparece toda vaidosa e dona de si: “Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra,/E meu seio, onde todos vêm buscar a dor,/É feito para ao poeta inspirar esse amor” (...) “No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;”. Aqui a beleza também dá as caras como esfinge, a indecifrada, nada mais chamativo do que um enigma, e a beleza então se dirige aos poetas: “Os poetas, diante de meus gestos de eloquência,/Aos das estátuas mais altivas semelhantes,/Terminarão seus dias sob o pó da ciência;/Pois que disponho, para tais dóceis amantes,/De um puro espelho que idealiza a realidade:/O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!”. A beleza atua enfim aqui como lume aos poetas, estes que podem aqui ter seu idílio no puro espelho do ideal, a esfinge, bela e vaidosa, e que é o espelho do poema e no qual o poeta alcança uma realidade mais clara, com a feição da eternidade.
XXV – SEM TÍTULO: O poema se inicia aqui com um toque nada sutil e brusco: “Porias o universo inteiro em teu bordel,/Mulher impura! O tédio é que te torna cruel./Para teus dentes neste jogo exercitar,/A cada dia um coração tens que sangrar./Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos/E dos rútilos teixos que ardem nos festejos,/Exibem arrogantes uma vã nobreza,/Sem conhecer jamais a lei de sua beleza.”. A mulher deste poema aparece em gestos de versos violentos, numa arrogância que não deixa ao poeta ver as tais leis de sua beleza, no que o poema segue: “A grandeza do mal de que crês saber tanto/Não te obriga jamais a vacilar de espanto/Quando a mãe natureza, em desígnios velados,/Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados/- A ti, vil animal -, para um gênio forjar?/Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar!”. O gênio é forjado neste gesto forte que o poema engrandece como um soco, o espanto é do poeta, pois tal mulher impura está impassível, e o poeta aqui é o elo fraco, e que tenta, no solavanco, entender tal peça que escreve.
XXXII – SEM TÍTULO: O poema é dirigido a Louchette, no que temos: “Certa noite bem junto a uma horrenda judia,” (...) “Pus-me a pensar ao pé desse corpo vendido/Na beleza infeliz que aos olhos me fugia.” (...) “Pois com fervor teu nobre corpo eu beijaria/E dos teus frescos pés às tuas negras tranças/Abriria o tesouro das carícias mansas,/Se uma noite, ao rolar de uma lágrima esguia,/Pudesses, tu, que apenas esse fel destilas,/Ofuscar o esplendor de tuas frias pupilas.”. A frieza das pupilas desta judia exaspera o poeta e o poema, num golpe surdo ele tem o fervor do beijo, das carícias mansas, e que no poema é um esplendor de tais frias pupilas.

POEMAS:
AO LEITOR
A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez
Habitam nosso espírito e o corpo viciam,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam,
Como o mendigo exibe a sua sordidez.

Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;
Impomos alto preço à infâmia confessada,
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.

Na almofada do mal é Satã Trismegisto
Quem docemente nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade então se evola
Por obra deste sábio que age sem ser visto.

É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma joia encontramos;
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum, dentro da treva que nauseia.

Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para espremê-la qual laranja que se enruga.

Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce,
Rio invisível, com lamentos indistintos.

Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.

Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vícios imortais,

Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo!
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra, por prazer, faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;

É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!
(obs: AO LEITOR: Este poema foi publicado pela primeira vez a 1° de junho de 1855 na Revue des deux mondes, acompanhado de 17 outros e sob o título coletivo de Les fleurs du mal. 9-12: Toda esta estrofe encontra-se infiltrada de referências alquímicas, ainda em voga na época, sobretudo em razão da herança que o romantismo francês recebeu da literatura gótica. O tema reaparecerá em outros poemas, como “Alquimia da dor”, o terceiro “Spleen” e “O relógio”. 13 et seq: É o Diabo que nos move e até nos manuseia: O satanismo baudelairiano, já manifesto neste primeiro poema, tem suas raízes não apenas no maniqueísmo cristão, mas também no legado gótico. A propósito do assunto, Baudelaire disse em carta a Flaubert: “Sempre me obcecou a impossibilidade de compreender certas ações ou pensamentos súbitos do homem sem cogitar da hipótese da intervenção de uma força perversa e que lhe é alheia.” 38: Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado: O autor grafa no original a palavra houka, espécie de narguilé persa.)

O ALBATROZ
Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
(obs: Este poema foi publicado a 10 de abril de 1859 na Revue française. É provável que Baudelaire o tenha escrito, ou pelo menos concebido, durante a viagem que fez à ilha Bourbon (hoje ilhas Maurício) em 1841-42. Entretanto, outros testemunhos o dão como do período de 1843-46. A essas impressões pessoais se podem acrescentar ainda algumas fontes literárias, como certa passagem de L`oiseau, de Michelet, publicado em 1856. Só não há dúvida quanto à terceira estrofe: ela é de 1859 e foi acrescentada ao poema por sugestão de Charles Asselineau (carta a Baudelaire datada de 20 de fevereiro de 1859). Prova-o ainda o fato de que a estrofe, manuscrita por Baudelaire, figura à margem do texto do exemplar que o poeta enviou a Flaubert, no qual “O albatroz” se segue imediatamente à composição que leva o título de “A viagem”. 6-10: O monarca azul, canhestro e envergonhado,/Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,/As asas em que fulge um branco imaculado. // Antes tão belo, como é feio a desgraça/Esse viajante agora flácido e acanhado!: Cf. “O cisne”, I, 17-21: “Um cisne que escapara enfim ao cativeiro/ E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo,/ As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro./ Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo, // No pó banhava as asas cheias de aflição”; e II, 34-35: “Penso em meu cisne, quando em fúria o vi,/Qual exilado, tão ridículo e sublime.” A imagem do pássaro “exilado no chão” é recorrente na obra de Baudelaire, que o compara ao poeta, ou seja, o “príncipe da altura”, como se lê em “O albatroz”, 13-16: “O Poeta se compara ao príncipe da altura/ Que habita os vendavais e ri da seta no ar;/ Exilado no chão, em meio à turba obscura,/ As asas de gigante impedem-no de andar.”)

CORRESPONDÊNCIAS

A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
(obs: Este soneto foi também publicado na primeira edição de As Flores do Mal. O tema é caro a Baudelaire, que a ele se refere já no Salon de 1846, onde está transcrita a seguinte passagem da Kreisleriana, de Hoffmann: “Não é apenas quando sonho, mas também quando estou acordado, que descubro uma analogia e uma íntima comunhão entre as cores, os sons e os perfumes.” Os dois quartetos, por sua vez, estão transcritos no longo ensaio “Richard Wagner e Tannhäuser em Paris”, em A arte romântica, onde nos diz Baudelaire: “ ... é que o som não pode sugerir a cor, as cores não podem dar a ideia de uma melodia, e o som e a cor são impróprios para traduzir as ideias; e as coisas são sempre expressas por uma analogia recíproca, desde o dia em que Deus proclamou o mundo como uma complexa e indivisível totalidade.” Alguns comentaristas consideram este soneto como uma espécie de definição da estética baudelairiana, que, por sua vez, irá servir de matriz à estética do simbolismo. A teoria das correspondências é, todavia, muito anterior a Baudelaire, já estando latente em textos de autores como Pascal, Malebranche, Spinoza, Hegel, Schelling, Novalis, São Boaventura e São João da Cruz. Baudelaire a recebe diretamente de Edgar Poe, mas não se podem esquecer, entre os precursores imediatos, Lavater, Joseph de Maistre e, acima de qualquer outro, Swedenborg, que nos fala de uma “tenebrosa e profunda unidade”. 8: Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. Cf. Baudelaire, “O bobo e a Vênus”, Pequenos poemas em prosa, VII: “Dir-se-ia que uma luz cada vez mais intensa faz brotar dos objetos cintilações cada vez mais vívidas, que as flores excitadas ardem no desejo de rivalizar com o azul do céu pela energia das suas cores, e que o calor, tornando visíveis os perfumes, os faz subir para o Sol como foguetes.”)

O HOMEM E O MAR
Homem liberto, hás de estar sempre aos pés do mar!
O mar é o teu espelho; a tua alma aprecias
No infinito ir e vir de suas ondas frias,
E nem teu ser é menos acre ao se abismar.

Apraz-te mergulhar bem fundo em tua imagem;
Em teus braços a estreitas, e teu coração
Às vezes se distrai na própria pulsação
Ao rumor dessa queixa indômita e selvagem.

Sois todos esses deuses turvos e discretos:
Homem, ninguém sondou-te as furnas mais estranhas;
Ó mar, ninguém tocou-te as íntimas entranhas,
Tão ciumento que sois de vossos bens secretos!

E todavia há séculos inumeráveis
Combateis sem nenhum remorso nem piedade,
Tamanho amor guardais à morte e à crueldade,
Ó meus irmãos, ó gladiadores implacáveis!
(obs: O poema foi publicado em outubro de 1852 na Revue de Paris e seu primeiro título era “O homem livre e o mar”. Pode-se associá-lo ao poema em prosa “Já!” (Pequenos poemas em prosa, XXXIV). O tema é típico do romantismo.)
A BELEZA
Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vêm buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar esse amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra.

No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;
Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve;
Odeio o movimento e a linha que o descreve,
E nunca choro nem jamais sorrio a nada.

Os poetas, diante de meus gestos de eloquência,
Aos das estátuas mais altivas semelhantes,
Terminarão seus dias sob o pó da ciência;

Pois que disponho, para tais dóceis amantes,
De um puro espelho que idealiza a realidade:
O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!
(obs: Soneto publicado em abril de 1857 na Revue française. Segundo a concepção sempre dilemática e tensional da estética baudelairiana, a beleza aparece aqui sob um duplo aspecto: escultural (a pedra) e ideal (o sonho). 2: Em meu seio, onde todos vêm buscar a dor. Cf. “O confiteor do artista”, Pequenos poemas em prosa, III: “Ah! terei de sofrer eternamente, ou eternamente fugir ao belo?”)

XXV – SEM TÍTULO
Porias o universo inteiro em teu bordel,
Mulher impura! O tédio é que te torna cruel.
Para teus dentes neste jogo exercitar,
A cada dia um coração tens que sangrar.
Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos
E dos rútilos teixos que ardem nos festejos,
Exibem arrogantes uma vã nobreza,
Sem conhecer jamais a lei de sua beleza.

Ó monstro cego e surdo, em cruezas fecundo!
Salutar instrumento, vampiro do mundo,
Como não te envergonhas ou não vês sequer
Murchar no espelho teu fascínio de mulher?
A grandeza do mal de que crês saber tanto
Não te obriga jamais a vacilar de espanto
Quando a mãe natureza, em desígnios velados,
Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados
- A ti, vil animal -, para um gênio forjar?

Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar!

XXXII – SEM TÍTULO
Certa noite bem junto a uma horrenda judia,
Como ao longo de um morto outro morto estendido,
Pus-me a pensar ao pé desse corpo vendido
Na beleza infeliz que aos olhos me fugia.

Eu lhe evocava a esplêndida altivez nativa,
O olhar de intensa luz e de graças armado,
O cabelo a servir-lhe de elmo perfumado
E a cuja súbita lembrança o amor se aviva.

Pois com fervor teu nobre corpo eu beijaria
E dos teus frescos pés às tuas negras tranças
Abriria o tesouro das carícias mansas,

Se uma noite, ao rolar de uma lágrima esguia,
Pudesses, tu, que apenas esse fel destilas,
Ofuscar o esplendor de tuas frias pupilas.
(obs: Baudelaire alude aqui à judia de nome Sara, dita Louchette, com quem manteve ligações amorosas e que lhe inspirou um truculento poema, em certas passagens bastante original, incluído nas Obras póstumas.)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31763/17/charles-baudelaire-e-as-flores-do-mal-parte-1