PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 30 de julho de 2016

FRANÇOIS VILLON, O PRIMEIRO DOS POETAS MALDITOS – PARTE III

“O pecador é o poeta, e ele se salva, em rima sui generis, escrevendo.”

“Balada dos enforcados e outros poemas” reúne os eventos de Le lais (O legado, 1457), obra de juventude, e O Testamento (1461-1462), este que é, por sua vez, paródia de um documento jurídico que envolve temas como o tempo fugaz e a clássica angústia diante da morte, febre de artistas e filósofos de estirpe que sofrem o vácuo da finitude, e que é um trabalho que contém poemas que vão da tristeza ao desespero existencial, e que também passam, por vezes, às sutilezas de um humor refinado ou ao vulgar de veia farsesca. Neste livro também se inclui as baladas dispersas, dentre elas a “Balada dos enforcados”, poema representativo da obra de Villon e dos mais célebres da língua francesa, em que os mortos pedem aos vivos compaixão e suplicam pela caridade cristã. O poeta Villon tem em si uma duplicidade entre clamores religiosos e a pura bandidagem, uma vez que no crime também se busca a redenção de muitos pecados, logo após a esbórnia. O pecador é o poeta, e ele se salva, em rima sui generis, escrevendo. Voilá!
Na história poética de Villon, o primeiro dos grandes poemas de Villon é o “Lais” ou “Legado”, composto, ao menos em parte, se não se pode precisar que na noite de Natal de 1456, ao menos por volta dessa data. O nome “Pequeno Testamento”, que o primeiro editor, Pierre Levet, adotou, é expressamente condenado pelo poeta, mas ainda assim o compilador Marot mantém esta nomenclatura na sua edição da obra de Villon, acentuando que não era o do autor, e com a crítica moderna já trabalhando com a compreensão de que lais e testament não são termos sinônimos: lais – escreve Michel, que se apoia em P.Le Gentil – se aparenta aos congés compostos por Jean Bodel, Baude Bastoul ou Adam le Bossu, deplorando uma partida, uma separação, enquanto o “Testamento” anuncia uma morte próxima, fingida ou real.
No “Lais”, Villon está em vias de separar-se de uma amante desumana e deixar Paris por Angers, no que ao falar do “Testamento” supõe-se tenha sido composto pelo poeta no terror da morte, isto é, na “dura prisão de Mehun”, em 1461, cinco anos depois. Ou seja, a nomenclatura varia em relação à data de escrita, e como Villon se trata de uma biografia acidentada ao extremo, temos os dados da crítica posterior. O poema, na sua versão Testamento, espelha a Paris de Luís XI, e está com a maior parte dos legatários, estes que eram pessoas ligadas às finanças, a justiça e a Igreja, e também alguns companheiros do poeta, maus rapazes – identificados, embora não se possa afirmar que com eles Villon houvesse tido efetivas relações, mais uma vez objeto das especulações biográficas de um poeta que desaparece antes de morrer.
O “Lais”, com suas quarenta oitavas em octossílabos de rima A-B-A-B-B-C-B-C não alcança todavia as dimensões nem a riqueza do “Testamento”. Esse compreende 183 oitavas (1488 versos), com o mesmo esquema de rimas, e nas estrofes se entressacham dezesseis baladas e três rondós, cerca de um quarto do poema, com 535 versos. E as baladas, por sua vez, nem sempre são de oito sílabas (há as de versos de dez sílabas) e nem sempre as estrofes são oitavas, havendo décimas e estâncias de onze ou doze versos: as oitavas têm três ordens de rimas, sempre as mesmas através de todo o poema, as décimas, quatro ordens, as de onze ou doze sílabas cinco ordens, todas invariáveis na balada.
Uma expressão da “Balada do Concurso de Blois” (não incluída no “Testamento”), “je ris em pleurs”, “rio de lágrimas”, é expressão que remonta a Homero, e que possui larga esteira de usuários, e que é, contudo, uma expressão definidora do estado de espírito de Villon no poema, que transita pela alegria e tristeza, passando pela agressividade, e se tornando, por vezes, um poeta cordato e com bons conselhos.
O tom de suas baladas varia: a que fez para sua mãe rezar a Nossa Senhora é terna e piedosa, a “Contra o ‘dito’ de Franc Gautier” é de um lirismo de vida boa e confortável, a “Balada das Damas dos Tempos Idos” evoca melancolicamente a o caráter irreversível do tempo e seu caráter de implosão de desejos e expectativas, e a “Balada de Margot, a Encorpada”, a par de uma ou outra mais, é de um realismo que beira o superficial e que pode muitas vezes aparecer com um caráter rasteiro, e assim por diante.
O “Testamento” não é uma obra de poesia original, mas que tem densidade e intensidade de expressão, refletindo uma vida bem rica de existência e arte, e que tem contornos de suprema felicidade na execução de certos versos, que são bem colocados e tão bons como lapidares de uma obra em curso, e que com a História são espécimes proverbiais. É essa qualidade de vida, de realidade, de uma existência que teve sentido, que injeta força no poema de Villon, e o coloca como uma das grandes peças da literatura francesa.
Seu autor, por tal feito, desde que foi descoberto no Romantismo por Théophile Gautier, vem ganhando dimensão histórica em admiração e estudo de crítica literária, pouco importando a biografia de uma vida aventurosa ou mesmo marginal: sua poesia é, com o trabalho concreto de compilação e de crítica literária, uma das maiores que subsistem em língua francesa, e pode ser grande, mesmo em traduções. Assim é que se diz de Swinburne, por exemplo, este que foi tradutor infiel, mas que na anglicização de Villon, foi o que ele nos deixou de melhor em toda a sua obra. Tal a força do original. Villon consegue atingir uma dimensão própria em poesia e biografia, entre a lenda e a existência real, que se fundem em uma só como verso vivido.
BALADA DE PERDÃO – (título: “O Testamento”, O título deve-se a Marot.) Notas: granfinos: claquepatins: esses elegantes usavam sobre o outro um calçado com sola de madeira, que faziam soar na calçada para chamar a atenção. / Sem dor: ocorria o oposto, pois que essas botas eram justas. / Não ... caninos: Seus inimigos, sem esquecer Thibaut d`Aussigny, lembra-o o Michel./ fixas e flutuantes: a especificação não consta do original.
E o poema tem versos como: “Aos jovens fátuos, mortos de paixão,/Sem dor calçando botas e elegantes,/Clamando, a todos peço-lhes perdão.” Aqui a culpa existencial e factual da vida de Villon, este que tem amigos, mas brada contra os inimigos: “Não aos mastins, esses desleais caninos/Que me fizeram roer pães humilhantes/Em muita noite e ensejos matutinos:/Receio agora três titicas, antes.” Villon tem aos seus suas dívidas, mas cobra em mesmo sangue de seus desafetos. Assim como é a vida, uma moeda de dois lados, de culpa e redenção, de erro e acerto, em que a poesia pede perdão, mas acusa a comer titicas cães bravios.
LEGADO I – VIII – Notas: Com ... exemplar: No orig. metáfora assim decodificada por Marot: “travaillant volontiers, comme les chevaux qui franchement tirent au collier”. / Vegécio: Flavius Vegetius Renatus, escritor militar do fim do séc. IV, autor de uma Epitoma Rei Militaris. Com essa referência a um autor antigo, Villon quer imprimir seriedade à sua paródia, acentua Michel./ Varar-me ... precisão: No orig., metáfora referente a cavalo; o de pieds blancs é teimoso, empacador./ Plantarei ... cunhar.: Vou procurar outra amante./ Adeus! ... rumar: Na conclusão de Michel, a partida para Angers era uma mistificação.
O poema tem o sinal do próprio poeta: “Eu, François Villon, escolar,/Refletindo, com madurez,/Com ardor e vontade exemplar,/Que para agir se há de pensar,” esta a conclusão óbvia de quem já viveu o suficiente de que pensar e agir são um mesmo prisma em que deve haver prudência, porém: “Me veio a gana de quebrar/A muito amorosa prisão/Que vivia esta alma a angustiar.” O poeta já se vê maduro, mas ainda com grilhões de força a romper, e que do amor angustiado, teme e impreca: “A consentir toda em meu mal,/Sem lucro algum com essa lesão;/Peço me vinguem dela, então,”, e o poeta continua: “Deus queira ouvir-me no meu brado!”. Aqui desespero e uma conclusão pela biografia: “Assim eu deixo estes legados.”.
O DEBATE DO CORAÇÃO E DO CORPO DE VILLON – Notas: Alguns comentadores têm assinalado que, se o debate ou altercação entre corpo e alma não era novo na Idade Média, que era bem conhecido no ponto de a alma deixar o corpo, Villon é original nesta abordagem, pois há nele seu tom pessoal, longe da mística comum e medíocre, e perto de sua marca biográfica, mas que tem conteúdo vivido, e não de um mero jogo de linguagem. Julga-se, por conseguinte, que tal conflito do poema se dá num diálogo que não é exatamente entre o coração e o corpo, mas o coração e o poeta inteiro, corpo e alma. O coração exprime a censura da consciência, e a exprobração coletiva dos conselheiros de Villon, verificando-se um impasse. Segundo Michel, esta balada foi composta na prisão de Meung, provavelmente em 1461, ou então pouco depois./ vinho: O original traz leite, e não vinho, que usei para efeito de rima; mas a mosca é bem visível no vinho branco./ Salomão ... cada.: O livro da Sabedoria de Salomão dá Deus como a fonte da ciência. Michel acentua que a citação é de Ptolomeu: “O homem de bem dominará os astros, e que na Idade Média era corrente a oposição entre Salomão (a sabedoria) e Saturno (a superstição)”.
No poema temos versos como: “- Quem escuto? – Sou eu. – Eu quem? – Teu coração,”. Aparece o coração como consciência falante, a voz interior, um outro que habita Villon, o poeta, o homem. E segue: “É pois a confusão/Que te empolga?”. Doidivanas, o poeta está no caos, e o coração diz, sem mais: “- Nada conheces.” E dá o golpe: “-Perdido estás!” E lhe dá a dimensão da perdição em que o poeta nada sabe, mas deveria saber :“Se fosses algum pobre idiota, um simplesinho,/Terias o pretexto para excusa, então;”. Mas alterca positivamente, a seguir: “Fronte mais dura tens que as pedras do caminho,”. E incentiva, em sinal positivo, mais uma vez: “- Viver tu queres?”. Para afinal o coração mostrar o caminho de se achar, o Villon que andava perdido: “Ler ciência bem firmada,/Largar os tolos! – Eu vou nisso meditar./- Ora, guarda a lição! – Estou com ela guardada.”. Villon concorda e conclui com o próprio coração, este estrangeiro tão íntimo do poeta, sua cabeça pensante que tem uma voz tonitruante, e que é boa conselheira para quem quer deixar de ser tolo e virar sábio.

BALADA DE PERDÃO

Tanto aos Cartuxos como aos Celestinos,
Quer aos Devotos, quer aos Mendicantes,
Até mesmo aos basbaques e aos granfinos,
Aos suspirosos e às que usam, galantes,
Jaqueta e saias justas e excitantes,
Aos jovens fátuos, mortos de paixão,
Sem dor calçando botas e elegantes,
Clamando, a todos peço-lhes perdão.
Às que mostram mamilos libertinos
Para alcançarem hóspedes bastantes,
Aos que fazem barulho e aos malandrinhos,
Aos que malas arrastam, ambulantes,
Aos bobos, bobas e demais farsantes
Que seis a seis assobiando vão,
Aos mocinhos, mocinhas vicejantes,
Clamando, a todos peço-lhes perdão.
Não aos mastins, esses desleais caninos
Que me fizeram roer pães humilhantes
Em muita noite e ensejos matutinos:
Receio agora três titicas, antes.
Eu lhes daria arrotos, puns flagrantes,
Caso não me sentasse repimpão.
Enfim, para evitar aos discordantes,
Clamando, a todos peço-lhes perdão.

Quinze costelas, fixas e flutuantes,
Fraturem-lhes com um forte maço à mão,
Ou com bolas de chumbo e tais variantes:
Clamando, a todos peço-lhes perdão.

LEGADO I-VIII

Neste ano de cinquenta e seis,
Eu, François Villon, escolar,
Refletindo, com madurez,
Com ardor e vontade exemplar,
Que para agir se há de pensar,
Como o diz Vegécio, o romano
Tão sábio para aconselhar,
Porque senão se cai no engano.
Pois nesse tempo que comento,
Pelo Natal, morta estação,
Quando os lobos vivem de vento
E se fica na habitação
- Há geada – perto do tição,
Me veio a gana de quebrar
A muito amorosa prisão
Que vivia esta alma a angustiar.
Desta maneira agi, tal qual,
Quando eu a vi, com esta visão,
A consentir toda em meu mal,
Sem lucro algum com essa lesão;
Peço me vinguem dela, então,
Erguendo aos céus o meu clamor,
Os deuses todos da paixão,
E rogo alívio ao mal de amor.

E se tomei em meu favor
Doce olhar e amável feição,
De decepcionante sabor,
Varar-me até ao coração:
Pois me faltam na precisão,
Com eles não posso contar.
Plantarei em variado chão
E noutro cunho vou cunhar.
Todo venceu-me o olhar daquela
Que se mostrou traidora e dura:
Sem que eu haja faltado a ela,
Quer e ordena que eu tenha escura
Morte, e que cesse a minha dura.
Assim só que me resta fugir.
Quer partir nossa soldadura,
Sem os lamentos meus ouvir.
Para esses perigos obviar,
Creio que partir é o melhor;
Adeus! para Angiers vou rumar:
Ela não quer dar-me o favor,
Nem mesmo em parte o seu amor;
Por ela morro, os membros sãos;
Amante e mártir do fervor,
Sou um dos amorosos Sãos.

Sendo a partida embora dura,
A ir-me eu devo me dispor:
Meu pobre juízo se figura
Que a outro ela dá seu favor,
Do qual não tem sede maior
Nem mesmo o arenque defumado.
Essa empresa me causa dor;
Deus queira ouvir-me no meu brado!
Pois de ficar não há mais jeito
E de voltar não estou certo
(Eu não sou homem sem defeito;
De aço ou de estanho não sou feito;
Viver para os homens é incerto
E não têm recurso os finados,
Vou para longe, com efeito),
Assim eu deixo estes legados.

O DEBATE DO CORAÇÃO E DO CORPO DE VILLON
- Quem escuto? – Sou eu. – Eu quem? – Teu coração,
Que está preso somente por um fiozinho:
Sangue não tenho, nem substância ou fortidão,
Quando te vejo retirado e assim sozinho,
Qual pobre cão todo agachado num cantinho.
- Por que isso? – Por tua teimosia aluada.
- E que te importa isso? – É que me desagrada.
- Deixa-me em paz! – Por quê? – Eu nisso vou pensar.
- E quando? – Quando a minha infância ultrapassada.
- Eu não te digo mais. – Já é de contentar.
- Que pensas vir a ser? – Um homem de eleição.
- Tens trinta anos. – De um mulo é a idade, e tal sublinho.
- Estás na infância? – Nunca. – É pois a confusão
Que te empolga? – Por onde? Pelo colarinho?
- Nada conheces. – Ora! – O quê? – A mosca em vinho.
Um é branco, a outra é preta, é a distinção azada.
- Isso é tudo? – E que coisa queres ajuntada?
Se o que eu disse não basta, vou recomeçar -.
- Perdido estás! – Resistirei a essa enrascada -.
- Eu não te digo mais. – Já é de contentar-.

- Tenho desgosto; tens o mal, tens a aflição.
Se fosses algum pobre idiota, um simplesinho,
Terias o pretexto para excusa, então;
Belo e feio são um, se vês, mas sem carinho.
Fronte mais dura tens que as pedras do caminho,
Ou mais que a honra a decadência é que te agrada!
Como será, esta consequência, contestada!
- Estarei fora dela, quando trespassar.
- Que conforto, meu Deus! Que eloquência avisada!
Eu não te digo mais. – Já é de contentar.
- Donde vem este mal? – De meu ruim quinhão.
Quando Saturno fez o fado em que caminho
Esses males pôs nele, eu creio. – Aberração!
És o senhor, e crês-te o servo pequeninho.
Salomão escreveu, observa, o que ora alinho:
“O homem de siso tem poder”, é o que ele brada,
“Sobre os planetas e a influência que há em cada”.
- Não creio; assim fui feito, assim vou continuar.
- Que dizes? – Bah, é minha crença, sem mais nada.
- Eu não te digo mais. – Já é de contentar.

- Viver tu queres? – Deus me dê tamanha alçada! –
- Impõe-se ... – O quê? – Teres consciência esquadrinhada,
Ler sem fim ... – Sobre o quê? – Ler ciência bem firmada,
Largar os tolos! – Eu vou nisso meditar.
- Ora, guarda a lição! – Estou com ela guardada.
- Não receies que a sorte haja de ser malvada.
Eu não te digo mais. – Já é de contentar.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/29885/17/francois-villon-o-primeiros-dos-poetas-malditos-parte-iii


domingo, 24 de julho de 2016

A PEÇA MARIA STUART DE FRIEDRICH SCHILLER

“A tensão pela condenação e morte de Maria Stuart é que vai fazer o ambiente principal da peça”

A EVOLUÇÃO DE SCHILLER COMO AUTOR TEATRAL
A evolução de Schiller no seu teatro é bem demarcada, o autor começa pelo fluxo criativo do Sturm und Drang, com Os Bandoleiros, já na sua vertente de drama revolucionário, deste fluxo hiperbólico caminha com decisão ao drama histórico, evoluindo para o drama burguês, e entra em seguida ao desenvolvimento do drama ideológico, algo que já era de boa cepa em seu período revolucionário, para enfim, já na sua idade madura, chegar com propriedade teatral, e edificar o caminho dos dramas de grandes conflitos individuais dentro de contextos inseridos num fundo histórico.
Novas peças que têm o fito de exaltar moralmente a purificação interior da consciência, a qual deve se sobrepor à fúria cega dos instintos, numa transição da consciência revolucionária e hiperbólica do início de seu teatro para a consumação de uma nova catarse de sentido maduro, que consta em personagens bem definidos por conflitos interpessoais. O drama Maria Stuart, portanto, é uma das obras-primas desta última fase, de um Schiller inteiro em seu projeto teatral.
O CONTEXTO DA PEÇA MARIA STUART
Schiller começou a escrever a peça de Maria Stuart em 1799, tinha o autor então quarenta anos, e concluiu a peça no ano seguinte. O assunto lhe deixava exaltado, como diz: “À medida que prossigo na execução”, escrevia ele a Goethe, “me persuado, cada dia mais, da qualidade trágica do meu assunto, e quero dizer com isso muito especialmente que se percebe a catástrofe desde as primeiras cenas, e que quanto mais parece a ação refugi-la, mais, ao contrário, se aproxima dela com movimento ininterrupto. Haverá no drama, até à saciedade, aquele terror que Aristóteles reclama, e quanto à piedade, encontrá-la-ão também.”
E Schiller segue a missiva: “A minha Maria não provocará o enternecimento, não está isso em minhas intenções, quero tratá-la do começo ao fim como uma criatura de instintos naturais, e o patético que ela produzirá terá antes as características de uma emoção profunda de natureza geral do que as de uma simpatia pessoal a um indivíduo. Não desperta em ninguém nada que se pareça com sentimentalidade; o seu destino é sentir por conta própria e desencadear em torno de si paixões violentas. Só a sua ama sente por ela o que se chama ternura.”
De fato, Maria Stuart ilustra uma ideia, essencial no idealismo schilleriano: “pode-se encontrar a grandeza no sucesso, mas é apenas na infelicidade que se atinge o sublime”. Elizabeth, realista, sacrificando sua humanidade ao poder, triunfa politicamente sobre a rainha da Escócia – mas a verdadeira vitória pertence a Maria Stuart”. Esta moral inversa schilleriana é o sentido da tragédia segundo o mesmo, a história contada pelos vitoriosos olvida a glória dos que lutaram até morrer, a batalha espiritual do sofrimento está certamente, e também, registrada no livro da vida, embora o processo histórico seja dos privilegiados pela sorte.
Portanto, Schiller tem intenções claras em sua Maria Stuart, refazendo conceitos presentes na Arte Poética de Aristóteles, quando este tematiza filosoficamente a tragédia antiga e grega, quando das ideias motoras de terror e piedade, o filósofo exemplifica o efeito teatral e seu objetivo de expurgo e catarse, de uma renovação instintiva e também artística, quando o teatro se torna veículo não só da arte em si, como da purificação da alma pelo choque.
A MARIA STUART DA PEÇA
Maria Stuart, por sua vez, aparece na peça como personagem não de ternura individualizante, mas como caráter de natureza geral, moldada naturalmente, isto é, como reflexo humano de conflito em contexto, e não de uma interioridade que a torne uma psicologia individual. Pois, nas intenções de Schiller está uma personagem de sentido abrangente e não circunscrito, e de modo certo o instinto natural não tem nada de solipsismo ou de inscrição sui generis, e por ser tal peça algo de fundo histórico, tem esta também, portanto, caráter social, de relações interpessoais.
Os conflitos, então, se dão nesta tessitura coletiva, e não de almas idiossincráticas, embora os dramas interiores se deem entre Elizabeth e Maria, mas sempre nesta tensão entre as duas no contexto amplo da peça. Em torno de Maria Stuart está um mundo sensorial, de paixões violentas, em volta dela está toda a ação, e nela também se dá uma ação, como diz Schiller, com movimento ininterrupto, pois nas peças maduras de Schiller também está a ação vertiginosa herdada do Sturm und Drang e de Os Bandoleiros, não mais hiperbólica, mas ainda sim conflituosa, de caráter trágico, nos moldes conceituais aristotélicos.
O DRAMA TEATRAL E O FUNDO HISTÓRICO DA PEÇA
Embora tenha Schiller lido de modo detido e abundante toda a literatura histórica disponível relativa à desgraçada rainha escocesa, não era, ainda assim, seu propósito escrever uma tragédia histórica, mas levantar a emoção trágica pela via do patético conflito entre Elizabeth e Maria Stuart, evocadas de forma forte em seus respectivos dramas interiores, mas calcadas em um conflito de opostos que dão a tessitura principal de todo o enredo da peça, num fundo histórico da pesquisa schilleriana, mas que tem na tragédia o motor de um drama de conflito já renovado em relação às turbulências românticas das primeiras peças do autor. Schiller, por sua vez, toma grandes liberdades no tratamento histórico de suas personagens e dos episódios que formam a trama do enredo. Pois Schiller não faz de sua peça um documento histórico, mas uma boa peça de teatro, com as exigências próprias de uma peça trágica, e não de um retrato fiel de realismo.
Assim, a personagem Mortimer, exasperadamente romântica, um sinal extravagante posto por vontade do autor, e não como retorno aos ditames do Sturm und Drang, é invenção total do poeta, uma deliberação de Schiller em função da escrita de sua peça. Outras personagens, embora sejam figuras históricas, aparecem na tragédia deslocadas da cronologia real, e psicologicamente deturpadas. Schiller, portanto, não é um autor da História, mas do teatro, e um trágico por excelência. Do Cardeal de Lorena, Carlos de Guise, falecido em 1574, se lê na peça uma carta escrita em 1587, ano da execução de Maria Stuart. Em relação à execução, cumpre advertir que Maria, condenada em outubro de 1586, só foi executada em fevereiro do ano seguinte: esses quatro meses de interstício foram reduzidos a três dias na fabulação da tragédia.
Então, a fidelidade de Schiller está na sua trama, ele não é um retratista de um período histórico, mas um autor em compromisso com a arte teatral, e consciente de seu trabalho como feitor de tragédias teatrais. Elizabeth, por exemplo, ficara noiva do duque de Anjou em 1579, e o noivado foi rompido em 1581, portanto dez anos antes das negociações de que se fala no segundo ato da tragédia. Outra invenção do poeta é o amor entre Maria e Leicester. Muito alterada, por sua vez, é a figura de Talbot, conde de Shrewsbury, que aparece na tragédia como intercedendo pela escocesa e, sacrificada esta, furtando-se a continuar servindo a Elizabeth, quando na verdade histórica permaneceu servidor fidelíssimo da rainha, ou seja, um deslocamento radical feito por Schiller a serviço de sua peça.
Aqui se enumera apenas alguns exemplos de inexatidão histórica ou deslocamentos de personagens para a trama funcionar, movimentos autorais, os quais Schiller fez deliberadamente, e portanto, não o fazendo  por ignorância histórica, já que seu trabalho de pesquisa foi profundo, mas cometendo tais deslocamentos por conveniências artísticas, por exigências da peça que fez realizar, já que o que lhe interessava não era a história, mas o drama. Schiller privilegiou o drama, e o fundo histórico a serviço da peça prova, no entanto, que o autor não olvidou de uma pesquisa séria, até mesmo para modelar a peça com personagens históricos reais. Mas a liberdade com a qual o poeta abordou a história foi inteiramente propositada, pois era seu objetivo, mais do que ser exato, extrair todo o drama do conflito entre Elizabeth e Maria Stuart. O conflito principal entre as primas é que fez o sentido de toda a peça, e tais deslocamentos históricos devem ter disso motivados, certamente, por esta trama central.
E tal peça é um trabalho de vulto que teve o impacto histórico denso de um trajeto edificado com propriedade, que lhe valeu o poder de sacudir as plateias no frêmito daquele terror e piedade trágicos da ideia aristotélica matriz a que ele se referiu na carta a Goethe. Depois então de todo o processo histórico, a peça foi muito bem representada pela primeira vez, e ainda mantém o mesmo prestígio sobre o público, não só na Alemanha, como fora dela, em todo o mundo. É uma das obras-primas permanentes do teatro universal, e momento marcante do trabalho de Schiller como autor de teatro.
A TRAGÉDIA DA RAINHA DA ESCÓCIA
Um dos maiores elogios a Maria Stuart é de Madame de Stäel, que considerava a obra “a mais patética e a mais bem concebida de todas as tragédias alemãs”. A peça, escrita entre 1799 e 1800, quando Schiller tinha quarenta anos, é de fato uma obra-prima do classicismo. E, embora o poeta tivesse estudado toda a literatura histórica relativa à tragédia de Maria Stuart, os eventos não constituem mais que um pano de fundo para o conflito entre duas mulheres: Maria Stuart e sua prima, Elizabeth I da Inglaterra. Portanto, é uma peça com o conflito bem demarcado e evidente, pois é na trama das primas rainhas que se dá o centro e o entorno de toda a ação teatral, e temos uma peça bem centrada neste sentido, que não se dispersa em nenhum momento, caracterizando a ação ininterrupta que também estava presente no Schiller do Sturm und Drang.
Ao iniciar-se o primeiro ato, Maria Stuart já está presa. A tensão pela condenação e morte de Maria Stuart é que vai fazer o ambiente principal da peça, e é esta tensão mesma que desencadeia toda a ação da peça, o conflito se dá entre as primas, mas a tensão está toda voltada para Maria Stuart que, por sinal, dá seu nome, pelas mãos de Schiller, à peça. Pois ela escapara de uma revolta na Escócia e viera pedir proteção à prima. Mas Elizabeth, que sempre a temera, resolve encarcerá-la. O pretexto foi um complô organizado por Barry e Babington contra a rainha da Inglaterra e do qual Maria, rapidamente, foi acusada de cumplicidade.
A peça segue a sua trama já na tensão em que o desejo de expiação leva Maria Stuart a aceitar o isolamento; embora inocente do delito do qual é acusada, sendo, no entanto, culpada de outro: consentira no assassinato de Lord Darnley, seu segundo marido, por Bothwell, seu amante. Mas sua resignação não a leva ao conformismo. Ao contrário, Maria deseja a liberdade e sonha com uma entrevista com sua prima, na qual procurará comovê-la e mostrar sua inocência. Bom, estas são as linhas gerais em que se dá a motivação da ação de toda a peça, não entrando aqui em todo o enredo, mas sinalizando o sentido do conflito, e de como a tensão sobre Maria Stuart lhe sobrecarrega por toda a peça.
AS ENCENAÇÕES
Desde a primeira encenação no teatro de Weimar em 1800, que foi dirigida pelo próprio Schiller, Maria Stuart emociona as plateias do mundo. Essa obra-prima do teatro universal foi montada pela primeira vez no Brasil em 1955, pelo Teatro Brasileiro de Comédia. Duas grandes atrizes e irmãs protagonizaram Maria Stuart e Elizabeth, respectivamente Cacilda Becker e Cleyde Yaconis, Ziembinski dirigiu o espetáculo e interpretou o papel de Paulet.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/29786/17/a-peca-maria-stuart-de-friedrich-schiller