PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 12 de janeiro de 2013

HAICAI - XL

O rio passa longe
do frio que não tem perigo
de passar na ponte.

12/01/2013 Livro de Haicais
(Gustavo Bastos)

HAICAI XXXIX

Faz a natural
chacina a dor que fuzila
de tempo brutal.

12/01/2013 Livro de Haicais
(Gustavo Bastos)

HAICAI - XXXVIII

Cai em si o pior pecado,
e tem em si o que sustém,
grão de trigo e fardo.

12/01/2103 Livro de Haicais
(Gustavo Bastos)

HAICAI - XXXVII

Veste teu corpão
de azul como teu debrum
que na noite é vão.

12/01/2013 Livro de Haicais
(Gustavo Bastos)

HAICAI - XXXVI

Dor pensa labor
e gira no que sorri
pois é redentor.

12/01/2013 Livro de Haicais
(Gustavo Bastos)

TEMPO DO CINZEL

[soneto decassílabo heroico]

Livro o tempo que vem em mim doer vivo
na mais pura semente de paixão,
pois querer a vitória do verão
é suster o infernal templo do mito.

O lar da viva voz norteia o remido,
do pecado tão morto de amar são,
viverei sempre quisto de razão,
e o resto da dor já não terá sido.

Pois do corpo o cinzel terá labor
tão bem gerado no mais puro vento,
e na luta febril estarei em dor.

E da dor ficará corpo e tambor,
do coração a batida no sustento
que é frio tiro de ar quente de amor.

12/01/2013 Sonetos da Eternidade
(Gustavo Bastos)

SUSPIRO AO CÉU

[soneto decassílabo sáfico]

Os mares tão longe se vão no luar
que a noite vem morrer de frio na foz,
e os rios caem gélidos na dor sem voz
que longe vão com o amor a voltar.

Sinto o temor na minha vez de amar,
tenho o labor intenso da nau algoz,
morro meu corpo com gemido atroz,
e o resto agora sempre fica ao mar.

Volto ao lar do meu fel de vidro fundo.
Quero o tornado das paixões do mundo,
e vou na paz partida dos meus karmas.

Atrás de tudo que ficou ao léu,
desando nos ares mortais das armas
que em vão miraram meu suspiro ao céu.

12/01/2013 Sonetos da Eternidade
(Gustavo Bastos)

CRÔNICA SOBRE A RAIVA

   Como se faz ao se perder a calma? Odeio a raiva, mas de odiar já se tem raiva. O ódio é o paroxismo da raiva. Como lidar com o fígado quando ele explode? A pressão da vida seria justificativa plausível para a raiva?
   Eu olho o dia calmo lá fora, fora da minha janela. Moro em Copacabana, um lugar nada calmo. Quantas raivas devem passar despercebidas pelo vão alcoólico de Copacabana? Onde mais a raiva senão na miséria? A miséria do coração é a raiva, a miséria da alma é o paroxismo da raiva, o ódio. As lições de tolerância são repetidas como mantra, eu quero ser tolerante, mas aonde fica este ideal filosófico no momento da explosão atômica da raiva? A desdita é mãe da raiva. Vai tudo bem, até que algo dá errado e .... Pronto! Um grito se dá no meio do vazio da existência que nada nos dá senão desditas e alegrias também. Na alegria normalmente se está calmo. A mansidão herdará a terra. E será do inferno a raiva? Será do inferno a terra dos raivosos?
   A poesia é tão bonita! Mas onde há poetas da raiva? Onde há escritores da raiva? Ademais, o coração fica forte depois de um surto de raiva. Você chuta o ar. Os pés são um ótimo instrumento da raiva, você procura o que chutar instantaneamente. A vida é complexa em seus desvãos, a paixão da vida tem um pouco desta raiva. Seria herança genética a tal da raiva? Na época das cavernas, como seriam raivosos os homens das cavernas, ah! E depois? A civilização! Onde está a raiva entre os homens das cavernas e a civilização? O ideal da civilização é o bem estar, almejado bem estar civilizatório que muitos costumam chamar de paz social, justiça social, sociedade do bem estar, buscamos incessantemente o bem estar até que ... Zás! Você esqueceu a sua carteira em casa, você foi contrariado em suas expectativas, algo deu errado, você terá que pagar uma multa de uma conta que se esqueceu de pagar, você terá raiva daquela hora que você não beijou a mulher que deveria ter beijado, você terá raiva de ter tentado passar naquela prova de concurso e nada! E terá raiva do óbvio, terá raiva de si mesmo ao não tentar ser feliz apesar de tudo, terá raiva de tudo que deveria ter sido, de tudo que ainda será, de tudo que se foi, terá amor e raiva dos pais, terá raiva do insucesso, terá raiva até de teus sonhos não realizados!
   No amor tudo é bom, quase tudo. Quando se ama e não é amado? Oh, mundo cruel! Esta é a pior de todas as raivas. E a desdita do amor não correspondido é a maior das dores, é a maior de todas as desditas. E nos perguntamos? Sou tão ruim? Tenho raiva de quem sou porque ela não me quer! Que raiva do mundo! Logo agora que me apaixonei! A raiva é um plus para a desdita. Não haveria graça nenhuma na desdita sem a raiva e nehuma solução para as dores do coração sem a busca da felicidade, pois a raiva é um reflexo difuso da busca da felicidade, e a desdita é o motor indesejável de uma raiva que vai ao paroxismo do ódio em busca do amor e da felicidade, esta tão amada felicidade que nos parece uma ideia tão ideal, um lago plácido onde todos queremos morrer de êxtase, e a raiva, coitados de nós, mortais, é um soluço nesta grande navegação do que chamamos vida ou existência.

12/01/2013 Crônica
(Gustavo Bastos)

A RODA DO AMOR

A roda da fortuna
tem seus desígnios,
vida em roda é a roda viva
que muda e metamorfoseia.

Faz do verso a roda da palavra,
e da dança dos dias
a cavalgada ao eterno,
das palavras de relento,
e os caules e flores
de um martírio na floresta.

Os sóis, já sem alma de flor,
fazem folhas na folhagem
de minhas caçadas,
e arte de minhas deambulações.

Com um pouco de ouro vivo,
saio em festa com a mão no bolso,
vejo e corro, pulo e morro.

A roda da fortuna é a vida sideral
de um habitante desta galáxia
tão distante para os meus poemas
de humilde amante.

11/01/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

POEMA DE SOL E LUA

A lembrar dos anos idos,
puro sabor da memória.
A esquecer das dores idas,
um futuro de glória.

Como cada sol é o mesmo sol?
Se dos dias de sol
este mesmo sol
é sempre outro?

Como, das fases da lua,
se tem sempre a mesma
lua?
Da fase minguante
o vermelho cintilante,
seu sol é quente
quando nova,
cheia é total em sua ceia,
e crescente envolve
o corpo que é quente.

Sol, qual sol é o melhor?
O sol da praia?
O sol do deserto?

Onde há sol e lua?
Eclipse, solstício, equinócio.
O sol engole a lua
e a lua engole o sol,
das estrelas eu tenho todas,
e o sol e a lua não mudam.

A lembrar dos pensamentos
lunáticos, eu sofro.
Ao perder os meus dias de sol,
eu choro.

Mas quando uivo à lua,
estou apaixonado.
E quando vejo a aurora,
que me dá o primeiro raio de sol,
estou vivo.

11/01/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

VERSOS VERTIDOS

Verte o meu sangue,
flor da idade branda!

Verte o tesão da flor,
a lágrima de amor.

Me tem e esquece,
me quer e fenece,
flor da nau florida
como queda
e como vida!

Vai agora a sempre-viva!
Sei de tua rosa a mais rosa
da vida, a mais viva
de minha vida,
qual rosa estremecida,
qual flor dormida!

Eu adianto o passo,
guardo em meu regaço
as fotos de um dia,
guardo no caderno
o registro de todas
as minhas horas
de paixão, e acordo suado
e livre de viver,
acordo exausto
e perdido
na madrugada fria
da dor de amor.

11/01/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

SABOR DE INCENSO

Invade a selva de almíscar
o templo enevoado do farol.
Resta do âmbar de suas luzes
o corcel em fogo indômito.

Leva, da veste à plumagem,
ouro vítreo de poema,
algas róseas de fumo,
labor de esmeralda
no prumo.

Qual espuma de vaga,
ondula o sêmen na cor
azulada, sua flor é estrela
de prata em dura canção.

Vai, invade o meu peito
a paixão,
e faz do meu coração
abrigo de mulher,
leva o meu coração embora!

Vai, cântaro de meu rio seco,
saborear o devaneio
enquanto choro o topázio
de minhas flores roxas,
enquanto eu caio no abismo
do meu céu sem praia,
deserto da virtude
num vício de poesia.

11/01/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

LUGAR DO POETA

Lá! Onde mais eu descanso,
onde o mar é manso,
onde o sol não se põe.

Aqui eu me entrego bêbado,
lá eu sonho acordado.

Que me entrego, de vil fel e fuga,
de puro mel o amor.

Que me enterro, de tuas roupas
o meu calor, de tua lua
o meu sol.

Lá! Onde não há mais nada,
onde o fogo beija a água
sem ar pela terra afora.
Lá, qual lugar sem mirante,
qual horizonte, qual fuga
do meu ser.

Aqui, onde devo o meu corpo
ao sal encarnado de meu mar.
Lá, onde a música é eterna
e tudo está a bailar.

11/01/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ALMA EM CORAÇÃO

Durante a última navegação
de um poeta,
brilhou a estrela numa só couraça.

Frio, sal dos meus alaridos.
Disfarça a noite, já é dia.
Lembra dos olhos salgados
de tua morte,
de tua dor ao norte
mais que forte!

Diorama, pedra filosofal.
Remenda o coração já gasto
das sombras mortas,
faz de mim o líquido precioso
que corre em teu coração.

Das almas, leva o teu corpo.
Do corpo, fica com a tua alma.

11/01/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)


segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

HISTÓRIAS DE FAUNOS

Que da nau própria de Rimbaud
eu rime um soneto com Mallarmé.
Os feixes árabes de Omar Kayaan
surgem num Islã perfeito,
o ideograma chinês
restaura o Tibete imaginário,
quimeras fogem do firewall,
contornos se constróem
em páginas perdidas
de um poeta do desassossego,
eu pinto o karma de Ionesco,
as figuras apáticas
de Esperando Godot,
eu leio o sinistro fim
de Qorpo-Santo,
refazem nele os passos
de Jean Genet,
leio uns esquetes
de Pinter,
pinto a tragédia,
Aristóteles faz uma revisão
da inovação de Ésquilo,
Sófocles desmonta Téspis,
e no fim os coros voam
com o torpedo de Eurípides.
Sílfides ressoam nos rios,
oceânides lutam bravamente
pelo sêmen das flores negras,
a cor de alabastro de Álvares de Azevedo
vira azedume e riso de Gregório,
o cão Diógenes ri sem ter porquê.
Assinando pseudônimos,
os heterodoxos oximoros
de Pessoa e uma mensagem
sem fim em baús,
Moliére morre em pé
no último ato do "malade",
as epístolas de São Paulo
são queimadas pelo pagão
Saulo, a sina do violeiro
é ler anedotas de
um sambista morto,
Caetano e Gil,
Tom Zé ressurge endêmico,
Chico descansa em Praga,
faz festa em Budapeste,
Tom Jobim marca um encontro
com Villa-Lobos,
Jim Morrison na banheira,
Janis Joplin amontoada
em meus poemas,
Jimi Hendrix morto
aos 27 anos,
lupanares de folguedo,
Luz Del Fuego,
a serpente do caos
é lembrada no teatro
de revista,
eu leio a sonoridade
saída da boca de um Sinatra
com dores atávicas
de Mozart e Beethoven,
caio em mim ao ler
o poema sujo,
a política suja devia
ser mais sofista
que o pensamento de Protágoras,
já estaríamos salvos
se Sócrates ensinasse
a Platão como tomar
Siracusa.
Equanto isso os déspotas
coroam Luís XIV
e Cromwell na Revolução Gloriosa
nos enche da esperança
de um adventício Montesquieu
que come a cabeça de Robespierre
e nos dá Napoleão Bonaparte
num hospício com Artaud,
a mágica se faz,
Aleister Crowley desafia
Paracelso a um duelo,
e a tábua da esmeralda
nasce das mãos
de Hermes Trismegistos.
Toda a poesia vindoura
será de alquimista,
o verso se faz
corpo e alquimia,
e o ouro do corpo
é a alma do êxtase
de um ioguim na montanha.

07/01/2013 Libertação
(Gustavo Bastos)

O SUBLIME DAS RIQUEZAS

Pobres dos atores mortos,
pobres dos poetas mortos,
ricos os mercadores dos portos,
ricos os mendicantes,
eles ficam ricos de descanso,
ricos de remanso,
e pobres de labuta!

Donde vem o amor salutar?
Pobres dos amantes,
pobres das serenatas,
ricos os amadores,
ricos os perdedores.

Onde mais a casta lascívia?
Onde tem o fogo do meu poder?
Onde a faca que me mata?

Liberto-me, tenho a espada
em sangue de pólvora,
em transe de gólgota.
Liberto-te, tua amada
está danada,
ela se afundou
em amor de santuário,
no púlpito estavam
as flores do canto sublime
dos corações queimados.

Pobre o indigente,
rica a noite estrelada.

07/01/2013 Libertação
(Gustavo Bastos)

SEMENTE DO FUTURO

Folhagens fincam suas raízes
no solo da canção,
o verão rima na causa da essência,
ouro transformado em rosa,
limo descansando na pedra.

As palavras encantam nos ares
com plenitude da dor em armas,
o canto da relva circunda
a mágica natural das árvores,
os frutos caem na boca
dos poetas.

O drama socorre o coração tempestuoso
na noite da liberdade dos corsários.
A poesia simula o naufrágio
num grito de salvamento.

As odes e hinos afundam
no livro dos romances,
um cantor ressuscita
com um labor de voz plácida.
As cantilenas das sombras do sono
acordam em acordes de sândalo
com as almas litúrgicas
de um poema-pomba.

Os ares, as casas, os jardins,
tudo é decomposto em verso
na futura sensação
de um poeta livre.

Folhagens do assombro
de uma pátria sem cidades,
só o campo e os olhos
no campo,
o jardim do descanso
na harmonia
da semente
do futuro.

07/01/2013 Libertação
(Gustavo Bastos)

ARTE DO PRAZER

Espera a chuva
o silêncio do mar.
Veste o corpo a tormenta
da passagem ao nada.
Enluta o corpo fabril
dos teares dos poros,
rotinas da respiração,
exasperado de tanto fogo.

E, lembra, concentra-te!
As asas vão embora
no voo da letargia.
Os olhos vão embora
no fulgor da andorinha.

As ondas, eu recordo,
quão grandes em susto
de sol tão dourado!

A luta que definhou
os altares do meu sangue,
é o ópio que espera
na gruta funda
que os corpos
cavaram
com dor de frio
e calor de prazer,
teares de carne
na voz garganta
boca estupefata.

Eu li com os odores
uma flor restaurada
em anos de assassínios.
Olhei a paisagem
com sentimento de luas nobres
na cova dos amores profundos.

As cores estavam em noites
de tanto vinho,
eu olhei os suntuosos livros
das eras de gelo e temor,
eu criei as plêiades
no corpo do meu amor fatal,
revi as chamas das odes
com fantasmas em meu corpo,
corpo da santidade com a virgem
numa síncope de salvação,
corri nas sombras com o abismo
em um sol doente
de luz e cruz.

O trabalho árduo do horror
das figuras do inferno
são oásis em flores trôpegas,
nau do desencanto
em que o sêmen afoga
o prazer da dança,
eu tenho o sol na casca
de um fruto proibido,
os rouxinóis cantam
soberbos na flutuação.

Eu me lanço no olor
das noites sem sede,
das horas sem fome,
dos dias no horizonte.

Lembro a catarse na criatura
que se afogou no vinho do desterro,
o esterco dos jardins floriram
no sorriso das águas mansas,
os rios corriam pelos campos
em valsas e sinfonias,
o castelo que ergui em sonho
desmoronou em coma profundo,
como a poesia inominada
das quedas brutais
de um vil vacilante
que se perdeu na fúria
decadente de seus
delírios de morte.

Os anjos descem na arte horrenda
de seus flautins,
versos de cobre e prata
se derramam
na veste vermelha
de uma paixão incriada
que descansa na eternidade,
o canto doce da saudade
acorda na flor da idade,
e o sol se põe em crepúsculo
de poema absurdo.

07/01/2013 Libertação
(Gustavo Bastos)

domingo, 6 de janeiro de 2013

A PARANOIA DE ROBERTO PIVA

  Roberto Piva, que muitas vezes passa por poeta maldito, se destacou no cenário da poesia paulistana ao publicar sua principal obra Paranoia em 1963. Piva teve influência, sobretudo, do surrealismo e da geração beat americana. Destacando-se que Piva foi, junto com Cláudio Willer e Sérgio Lima, um dos únicos poetas brasileiros a ser resenhado pela revista francesa La Bréche - Action Surrealisté, dirigida por um dos magos do Surrealismo, André Breton.
   Acabei de ler o livro Paranoia de Roberto Piva. Devorei rapidamente suas páginas como um louco feroz que se ensandeceu na geração beat. O poeta faz um percurso por São Paulo, e suas influências vão de Garcia Lorca a Jorge de Lima. Esse caldo poético resulta num apanhado de imagens originalíssimas que não devem nada à beat generation americana.

   Por muito tempo presente apenas no meio culto dos poetas, a poesia de Piva reaparece e está sendo revitalizada. O valor de sua escrita está finalmente saindo do submundo dos poetas e vindo ao público com justiça, mesmo que tardiamente. Aliás, o atraso no reconhecimento de alguns poetas é um mal brasileiro.

   Para mim, se destacam no livro Paranoia, quatro poemas: "Praça da República dos meus Sonhos"; "Jorge de Lima, panfletário do Caos"; "Os anjos de Sodoma" e "Poema Porrada". A obra de Piva é bem intensa. Mas, a geração beat brasileira foi ofuscada pela geração conservadora de 45 e pelos neoconcretos. Espremida entre essas duas correntes, os beats brasileiros passaram despercebidos do grande público, que hoje pode ter acesso à obra de Piva e de seus amigos “beats” com mais facilidade, sem falar na publicação da obra de Piva pela editora Globo, que relançou o poeta e lhe tirou da nuvem tóxica da obscuridade. Parabéns aos editores que fizeram isso, assim poderemos sair de poucas opções de leitura na poesia de língua portuguesa que, cada vez mais, se excede nas citações de Drummond e Pessoa, e se esquece de milhares de outros que honraram a nossa língua com tanta maestria quanto eles. Faça-se a justiça e evite-se os excessos reverentes que deturpam a grande criatividade de nossos poetas.

   Voltando-me à qualidade da escrita formidavelmente caótica de Piva, no poema “Praça da República dos meus Sonhos”, temos os nomes ilustres de Álvares de Azevedo e de Garcia Lorca citados logo de saída, tudo num clima urbanoide de ritmo narcotizado. Esse poema é um fruto proibido do pecado alucinógeno, donde se tem o Delirium Tremens de um alcoólatra poeta, nascido do caos de seus versos para o mundo que lhe cerca, e logo adiante, trombando com pederastas e Dom Casmurro. Um papo cabeça genial em forma poética invade a minha mente, em que putas logo passam e o poeta se depara com o jovem prodígio Rimbaud, poema que se encerra numa sabedoria debruçada numa porta santa.

   O segundo poema que eu destaco é “Jorge de Lima, panfletário do Caos”, em que Piva demonstra seu entendimento sobre o poeta, com a palavra azul que cintila em Piva dando o tom do poema, decifrando numa constelação de cinza o poeta Jorge de Lima, despedaçando vagalumes contra os ninhos da Eternidade, chamando o poeta de professor do Caos; aliás, uma virtude também presente em Piva que, em relação ao mestre Jorge de Lima, Piva se comporta como o seu aluno do Caos.

   O terceiro poema que eu cito é “Os anjos de Sodoma”, um poema de anáfora, recurso exaustivamente usado por quase todos os poetas alguma vez na vida, e que nesse poema de Piva é usado discretamente, evocando o mantra do título do poema que é um voo de anjos até o céu que têm suas asas destruídas pelo fogo. Algo meio como Ícaro? Certamente. É um poema curto, e que se funda na mística dos anjos, e que se encerra com o arrependimento de Deus, imagem poética perfeita que fecha a ideia de Piva para o poema.

    Finalmente, encerro a minha análise com o curioso “Poema Porrada”. Seria algo semelhante ao “Poema em Linha Reta” de Fernando Pessoa? Pode ser. Fui ver e ler,  e então percebi que era algo tão forte, intenso e criativo quanto o poema de Pessoa (que é o meu favorito do poeta junto com A Tabacaria). Pois bem, Piva “desce a lenha” nesse poema, honrando o título que lhe deu. É uma porrada mesmo, ele desfere golpes impiedosos com versos que não devem nada a nenhum gênio da raça, citando Oscar Wilde e Modigliani, com o universo sendo cuspido por um cú sangrento de um Deus-Cadela, imagem escatológica que pode ser uma boa alegoria para a criação do mundo. Deus talvez tenha nos regurgitado em seu sonho megalomaníaco (licença poética de minha autoria). Piva delira e encerra o poema com uma porrada monumental, realizando o seu desejo de destruição e fuga com a loucura como um “espelho na manhã de pássaros sem Fôlego”. Genial!

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://www.seculodiario.com.br/exibir.php?id=4343&secao=14