PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 17 de agosto de 2014

UM COMEDOR DE ÓPIO

"incrivelmente, o nosso escritor Thomas de Quincey, ao final, consegue se livrar do ópio"

   Thomas de Quincey foi um escritor inglês. Além de Confissões de um Comedor de Ópio, escreveu diversas outras obras, das quais destaco, também, a título de curiosidade, dentre seus artigos publicados em jornais, O assassinato como uma das belas-artes. Dando continuidade ao que foi relatado na resenha anterior, O Poema do Haxixe, de Charles Baudelaire, de seu livro Os Paraísos Artificais, sigo agora na segunda parte deste livro, intitulada Um Comedor de Ópio, que é uma crítica literária ou visão particular do poeta francês Charles Baudelaire, baseada na sua leitura da obra de Thomas de Quincey, intitulada Confissões de um Comedor de Ópio.
   Neste livro de Thomas de Quincey, podemos citar o oratório inicial ou "iniciático" da experiência do ópio, que Baudelaire também cita no seu capítulo específico de Os Paraísos Artificiais: "Ó justo, subtil e poderoso ópio! Tu, que ao coração do pobre como do rico, para as feridas que não cicatrizarão jamais e para as angústias que induzem o espírito em rebelião, levas um bálsamo suavizante: eloquente ópio!". Thomas de Quincey vai às raias da idealização, talvez num empenho mais literário do que de fascinação, e coloca seu itinerário do ópio em ação: "Que constróis nos seios das trevas, com os materiais imaginários do cérebro, com uma arte mais profunda que a de Fídias e de Praxíteles, cidades e templos que excedem em esplendor Babilônia e Hecatompilos".  E continua: "Só tu dás ao homem esses tesouros e possuis as chaves do paraíso".
   Faz-se em tal obra de Thomas de Quincey uma verdadeira instrução ao usuário do ópio, mais do que um suposto alerta das dores de libertação do vício, caso em que Thomas de Quincey passa, pois conquista o livramento, já que, incrivelmente, este escritor sobreviveu e largou este vício de aparência de um labirinto inescapável. Pelas palavras de Baudelaire: "no caso do Comedor de Ópio, não há crime, há apenas fraqueza, e tão fácil de desculpar ela é!"
   Baudelaire segue seu rumo na leitura de Thomas de Quincey, e seu aproveitamento tem um resultado ao mesmo tempo narrativo e crítico, ele se fideliza ao texto lido, e o coloca numa nova dimensão interpretativa: "Nesta mensagem ao leitor encontramos algumas informações sobre o povo misterioso dos comedores de ópio, essa nação contemplativa perdida no seio da nação ativa." E prossegue Baudelaire, com sua exegese: "Se naturezas grosseiras e embrutecidas por um trabalho diário e sem atrativo podem encontrar no ópio vastas consolações, qual será o efeito deste num espírito sutil e letrado, numa imaginação ardente e culta?" Baudelaire se admira, e propõe: "Tal é o tema do maravilhoso livro que desenrolarei como uma tapeçaria fantástica sob os olhos do leitor."
   Thomas de Quincey é essencialmente digressivo. A obra Confissões de um Comedor de Ópio está dividida em duas partes: uma Confissões, a outra, seu complemento, Suspiria de Profundis. A divisão da primeira parte é perfeitamente simples e lógica, nascida do próprio tema: Confissões Preliminares, Volúpias do Ópio, Torturas do Ópio.
   Dando seguimento a sua análise, Baudelaire pontua: "Não foi pela procura de uma volúpia culpada e preguiçosa que começou a usar ópio, mas simplesmente para abrandar as torturas de estômago nascidas de um hábito cruel da fome. Essas angústias datam da sua primeira juventude, e é na idade de vinte e oito anos que o mal e o remédio aparecem pela primeira vez na sua vida." Thomas de Quincey desde muito cedo se distinguiu pelas suas aptidões literárias, particularmente por um conhecimento precoce da língua grega. Ele passa por tutores, até que decide fugir da escola. Depois de um tempo, desloca-se para Londres. Passa por grande miséria. Faz uma peregrinação socrática, onde conversa com todo tipo de gente. Segundo Thomas de Quincey: "hábito favorável ao conhecimento da natureza humana, aos bons sentimentos e à franqueza de maneiras que convêm a um homem que quer merecer o título de filósofo."
   Thomas de Quincey, então, imprime ao mundo que vê, não um olhar de homem de sociedade, mas como um ser "verdadeiramente católico", em comunhão com tudo, um espírito de caridade e de fraternidades universais, que depois o escritor sentirá entre os prazeres produzidos pelo ópio. Nas ruas de Londres, segundo Baudelaire, o escritor Thomas de Quincey era: "uma espécie de peripatético, um filósofo da rua." E, então, nestas deambulações, Thomas de Quincey conhece uma moça de nome Ann, e os dois travam uma relação solidária entre si, já que nenhum dos dois tinham apoio de ninguém em Londres. Depois de uma pequena viagem, no entanto, Thomas de Quincey, ao retornar a Londres, nunca mais consegue reencontrar Ann. Só tornaria a vê-la nos delírios do ópio. Nas palavras de Baudelaire: "O Orestes do ópio encontrou a sua Electra, que durante anos lhe enxugou na fronte os suores da angúsitia e lhe refrescou os lábios ressequidos pela febre."
   Já, ao falar do capítulo do livro de Thomas de Quincey de nome "Volúpias do Ópio", Baudelaire relata: "Foi a necessidade de aliviar as dores de uma constituição debilitada pelas deploráveis aventuras da juventude que engendrou no autor destas memórias o uso, primeiro frequente e depois cotidiano, do ópio." O uso disciplinado deste regime de ópio durou, para Thomas de Quincey, de 1804 a 1812. Para o escritor, ao usar o ópio, ele pensou o seguinte: "o grande segredo da felicidade, sobre o qual os filósofos tinham disputado durante tantos séculos, estava decididamente descoberto!" Claramente, neste trecho, há um particular exagero, pois, independentemente das propriedades desta droga e de outras, nada nos diz que estas alcançam sutileza filosófica suficiente para competir com a própria filosofia.
   Por sua vez, no relato de Baudelaire, interpretando Thomas de Quincey, ao fazer a diferenciação entre o álcool e o ópio, pode-se dizer que: "a grande diferença está, sobretudo, em que o vinho perturba as faculdades mentais, ao passo que o ópio introduz nelas a ordem suprema e a harmonia." Seguindo: "O vinho priva o homem do governo de si mesmo, e o ópio torna esse governo mais brando e mais calmo." Falando do vinho, tem um trecho curioso e cômico dos eflúvios alcoólicos: "Os homens ébrios de vinho juram-se amizade eterna, apertam-se as mãos e vertem lágrimas, sem que ninguém possa compreender porquê". E o contraponto com o ópio, pelo texto de Baudelaire, de suas impressões sobre a obra de Thomas de Quincey, tem sempre um sentido, no ópio, de maior plenitude, ao passo que o álcool usurpa a soberania do que bebe. No texto de Baudelaire, pode-se ler que no ópio: "a sua inteligência adquire uma lucidez consoladora e sem nuvens."
   Do torpor dito do ópio que, supostamente, seria o responsável pelo embrutecimento dos Turcos, Thomas de Quincey nega tais efeitos à sua conformação inglesa. A estupefação do ópio, na obra Confissões de um Comedor de Ópio, por sua vez, é narrada por este escritor, por meio de ilustrações e pelos exemplos de seus chamados serões de ópio em Londres, isto ainda, nos oito anos de seu uso racional do regime de ópio, que vai dos anos 1804 a 1812.  Neste período, Thomas de Quincey ainda era grande trabalhador e tinha seu tempo preenchido com severos estudos. Dentre alguns efeitos do ópio, pode-se citar, por sua vez, no caso do escritor, um certo "diletantismo da caridade", ao fato de Thomas de Quincey se apiedar do mais pobre, e a vontade de tomar banho de multidão, resquícios de sua vida de juventude nas andanças por Londres.
   A partir do capítulo "Torturas do Ópio", temos uma guinada para baixo na biografia de Thomas de Quincey. Pois, a partir de 1812, após 8 anos de uso racional do ópio, o escritor vai morar no fundo das montanhas, aonde começará por tomar ópio em meio a estudos da metafísica alemã, quando lê Kant, Fichte e Schelling. E, em 1813, então, começa uma nova era, pois, em vista de seu sofrimento de irritação no estômago, Thomas de Quincey passa a aumentar a sua dieta de ópio, e passa a tomar a droga cotidianamente, pois agora viver de outro modo já não lhe era mais possível. E Baudelaire diz, indubitavelmente: "Durante mais de três anos, o nosso sonhador será como um exilado, expulso do território da felicidade comum, porque chegou agora a uma ilíada de calamidades, chegou às torturas do ópio." Como nos versos de Shelley: "Era como se um grande pintor tivesse molhado/O seu pincel na negrura do tremor de terra e do eclipse." Este clima miltoniano citado nas palavras de Shelley definem bem a cor da paisagem opiácea. Tal é o céu baço e o horizonte impermeável que envolve o cérebro escravizado pelo ópio.
   E, incrivelmente, o nosso escritor Thomas de Quincey, ao final, consegue se livrar do ópio, diminuindo suas doses gradativamente. Tudo isso, claro, com lamentáveis batalhas e recaídas. Pelas palavras de Baudelaire: "A diminuição do ópio aumenta a vitalidade, o pulso é melhor, a saúde aperfeiçoa-se; mas dela resulta uma terrível irritação do estômago, acompanhada de suores abundantes e de uma sensação de mal-estar geral, que nasce da falta de equilíbrio entre a energia física e a saúde do espírito." Ou seja, na abstinência o ópio tenta retomar seus direitos sobre o corpo do que lhe quer se libertar, assim como o espírito. Para Baudelaire: "É um equilíbrio quebrado que quer restabelecer-se, e que não pode restabelecer-se sem crise."
   Thomas de Quincey, a esta altura, já interrompera havia muito tempo os estudos, interessava-se ainda momentaneamente pelos grandes poetas, mas a sua verdadeira vocação, a filosofia, estava completamente desprezada. Uma grande obra, inspirada num título de Espinosa, continuava na banca, inacabada e suspensa, com o ar desolado desses grandes edifícios empreendidos por governos pródigos e arquitetos imprudentes. Sobrando-lhe os divertimentos da economia política, um triste alimento para um literato profundo e erudito. Contentou-se, então, Thomas de Quincey, com o economista Ricardo, este até lhe inspirou. E deste esforço de doente resultaram os chamados "Prolegômenos para todos os sistemas futuros de economia política." Mas, porém, tal obra também se deitou, após a fadiga para um prefácio irrealizado, ao lado do famoso livro sugerido por Espinosa. Ou seja, as necessidades da produção lutavam contra um enfeitiçamento paralisante. A diminuição da vontade citada por Baudelaire em seu "O Poema do Haxixe" era a mesma quanto ao ópio. Era o peso de um pesadelo esmagando toda a vontade.
   Só que Thomas de Quincey, depois de sua luta para sair do labirinto do ópio, e tendo êxito, ficou num estado de saúde relativo, e que lhe permitiu entregar-se a um trabalho literário. Para Baudelaire, este livro de Thomas de Quincey não tinha um sentido moral típico. Pois, "o objetivo do livro era mostrar o maravilhoso poder do ópio, quer no prazer, quer na dor; o livro está pois acabado. A moral da narração dirige-se apenas aos comedores de ópio."

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/18321/14/um-comedor-de-opio