PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 14 de março de 2020

ORFEU

Orfeu e seu canto, sua lira,
que aplacava as cizânias
dos argonautas, silenciava
as sereias, partiu ao Hades
para buscar Eurídice,
foi vendo seu fantasma
desaparecer para sempre,
um Orfeu triste
se mortificou,
o poeta dos poetas,
mito da poesia e da música,
em sua lira fundou
o orfismo, foi perseguido
pelas mênades  e despedaçado,
seu mito ecoa pelos tempos,
da poesia de sua lira
é um canto mitológico,
ele morre e se junta
novamente à Eurídice,
este poeta que descera
ao Hades ainda vivo,
como um poeta que
desafiou a morte,
adormeceu Cérbero
e foi conduzido por Caronte,
Orfeu, o poeta mitológico,
que em seu canto
fez da poesia seu
mito fundante,
a lira e seu destino.

14/03/2020 Gustavo Bastos

MAIAKÓVSKI

No verão da datcha,
segue o caminho aberto
por Khlébnikov,
para brilhar como poeta,
no caminho do sol,
rompendo com o imagismo
de Iessiênin, a cantar
a plenos pulmões
o seu canto do cisne,
ao passo de seu suicídio
diante das hordas stalinistas.

Maiakóvski, o poeta
panfletário, distante
das versões aguadas de rondós
e das expressões engessadas
no dogma de Pushkin,
este pai da literatura russa.

Maiakóvski passa ao coloquial
se mantendo sonoro,
seu som estridente
de militante e poeta
que desafia com seu
verso estourado
os cães da ordem,
o poeta soviético
que é da luta política
e que tem na veia
sua forma revolucionária.

14/03/2020 Gustavo Bastos

SAFO DE LESBOS

Em seu Hino a Afrodite
e dos inúmeros fragmentos
que lhe restaram, Safo
de Lesbos, vivendo
em Mitilene, caiu no
anedotário e na lenda
de seu lesbianismo,
sua lira era a da maior
poetisa da Hélade,
seu fulgor e sua poesia
foram notáveis
no mundo antigo,
assim como Alceu,
colocou a ilha de Lesbos
como lugar de uma lira
que encantava.

Safo, que da tradição
virou História, foi
peça biográfica e
pornográfica,
a poetisa e suas lendas
que foram idealizadas
por românticos e
imaginadas por artistas
inúmeros, de sua lenda
de poetisa que se suicidou
ao se jogar de um penhasco.

14/03/2020 Gustavo Bastos

BRECHT

Brecht, em seus tambores da
noite, em seus poemas políticos
de um ideólogo de teatro épico,
seu poema contra o fascismo,
sua militância de artista marxista,
seu humor rascante e a ironia
de sua pena em verso
que descrevia a sua vida
e suas ideias.

Bertolt, este que imprecava
contra Hitler e seus asseclas,
o que viveu na Alemanha
do holocausto toda a sua
bílis negra de porretes
nas noites do caos,

poeta e dramaturgo,
fazia da música e de
um distanciamento a
épica do século vinte,
poeta próprio
do século das guerras,
ideólogo de sua utopia
e de sua arte,
Brecht tem a coragem
das mães da miséria
e dos matadouros,
seus poemas politizam
a poesia que vai à luta.

14/03/2020 Gustavo Bastos

T.S.ELIOT

Na parte II dos quatro quartetos
no meu princípio está meu fim,
a terra está desolada
e o editor norte-americano
lê as cartas do Tarô
a ver a Senhora das Situações
lhe dizer, poeta, T.S.Eliot
é seu norte e que lê o Eclesiastes
como quem lê uma carta náutica
para a sabedoria, o poeta
que burilava e tinha um
cabedal de citações
como um plano-poema
urdido com técnica
e rigor.

A terra desolada é
seu clássico maior,
T.S.Eliot, que de
seu  mundo de
homens ocos,
edificou sua poesia
como uma máquina
metódica e implacável,
no seu fim estava
seu princípio e
seu legado.

14/03/2020 Gustavo Bastos

ANA CRISTINA CÉSAR

De um epílogo em sua valise
ela atua com suas luvas de pelica,
com o poema-confessional,
cartão-postal, escrevendo
suas cartas originais,
o documento de Ana C.
é misterioso, e que
nunca é óbvio, é
original, ponto
fora da curva de
sua geração marginal,
a dama dos anos 70
e 80, poeta que
falava naturalmente,
doce e irônica,
amante e amável,
aos pés de seu leitor
ávido, Ana C.
tem uma poesia astuta
de mulher livre
e inteligente,
suas letras e versos
de um cotidiano
descritivo e intuitivo,
como uma gatografia
que é retrato
e poema pronto.

14/03/2020 Gustavo Bastos

GINSBERG

A geração beat teve seu poeta
mais intenso em Ginsberg,
grande uivo que viu uma
chama nua e destruída,
testemunha ocular
de sua geração,
poeta do satori
e da convulsão.

Ele era o norte-americano
que, assim como Kerouac,
tinha um ar budista
de poeta dissipado,
junto com Cassidy
e Ferlinghetti,
junto com Corso
e demais asseclas,

o poeta do uivo,
que no verso e
sua prosa quase tartamuda,
explodia seu êxtase
como um poeta
de um mundo novo
que se abria,
a poesia que falava
da vida boêmia
e declamava
um sonho beat.

14/03/2020 Gustavo Bastos

LORCA

Do romanceiro gitano, a cantar
na guerra civil espanhola
a sua execução, Lorca
vinha da herança de Góngora
e Jiménez, seu poema
lustroso e frutífero,
seu canto gitano
como um barroco
plácido e sonoro.

Lorca, que do popular
cantou à intempérie
de uma Espanha convulsa,
em seu teatro poético,
Lorca que morreu
no front de seu poema,
com o peito aberto
como o seu coração.

14/03/2020 Gustavo Bastos

DEGELO NO TIBET


Andei no Tibetan Freedom, e com um olho atrevido pensei em burlar a máquina de caça-níqueis que o crupiê tinha programado para roubar a cada vinte minutos um incauto que se empolgava ganhando cem dólares antes da queda. Joguete do destino, este patife que opera via seus acasos mortais, os poemas aqui não cabiam no gelo do Himalaia, maiores topázios ou ópios que sussurravam o êxtase de seus mistérios.
Na nota de um fracasso de poeta suicida, o elenco de uma filmografia morria de tifo ou gota, os senhores que produziam faziam as cenas em um plano-sequência de vertigem, nada a dever aos fantasmas mais miseráveis de um expressionista maquiado de olheiras fundas a fazer do pré-guerra suas intuições sinistras.
Em Lhasa eu conheci um monge esteta, pintava suas astúcias e as destruía em seguida. A hipnose de que fui vítima tinha um ar viciado que simulava um satori cheio de diabinhos pintados na tela de minha mente extática. Rumorejava o vento em cantos sutis que abria a vertigem para uma nova paisagem onírica, os sete candelabros que urdiam um poema sacro com brios profanos e um chá alucinógeno que fazia ouvir música celeste com os ouvidos sinestésicos que pintavam o sol do meio-dia com asas de anjo e ardis bem diabólicos, como uma face dupla que ardia meus infernos com sentimentos de céu em meio ao caos da morte que me cercava.
Quando eu lia Ginsberg depois de uma passagem por Katmandu, eu nasci de novo antes de certos passos irrisórios e febris. Já antes ainda de eu nascer de novo, na sombra de dias mortiços, o cheiro de enxofre possuía meus rituais, ouvia os delírios de minha pena com certa delícia, mas a minha alma ainda estava morta, viciada nas flores oníricas e nos germes que eclodiam as farsas e as canções ditirâmbicas de antepassados que se perderam no tempo da História.
Lhasa ainda não tinha sido invadida por chineses e nem os lamas tinham ainda fugido para a Índia. Rinpoche Tarthang dizia certos enigmas mais possessos que todos os koans elencados pelo zen, sua fusão fazia Jazz e batia tambor com sede e fome como grandes deuses irados e famélicos, Shambala me dizia em quinze centúrias todas as regras do jogo e de como quebrá-las sem violência, apenas com o uso da mente clara e decidida, o poder da decisão como o cerne da escolha, e a consequência inaudita e planejada no mesmo diapasão, como um compasso de música que metrifica um destino inteligente.
O sol ardia na manhã calma da montanha, o Himalaia amanhecia com o canto dos lamas a fazer balões coloridos voarem naquele frio marmóreo que convidava à meditação. O sol que nascia vermelho e ficava amarelo, e Tarthang que pintava logo adiante um Shambala verde e azul, simulando demônios depois da alucinação do chá de flores oníricas que tomava o espaço e que um dos lamas delirava para testar se ficaria louco depois do êxtase e da sinestesia, pois tocava tambor alucinadamente enquanto cantava coisas incompreensíveis, num frenesi próprio e enigmático.
O jogral apareceu ao fim daquela manhã, o tal lama que tinha alucinado desde que o sol nasceu acordava de seu transe e caiu num sono de Morfeu. Tarthang fazia a sua palestra debaixo de uma araucária e depois dizia sobre os diversos venenos a evitar, sua doutrina sobre a atrabílis e como a saúde era mais forte com os dons bem cuidados e não apenas dependentes da inspiração. O poema metrificado em tibetano fazia novamente um tipo de jogo mais paradoxal, uma espécie de delírio armava o raciocínio como um joguete, samsara operava ali.
Em Lhasa aparecia Shambala como a deidade irada a provar o fracasso filosófico dos projetos doutrinários que buscavam a verdade, a sapiência era fraca e exangue, a meditação apenas evidenciava a morte da alma cognoscente, Tarthang então cantava para o sol inutilmente, a sua sabedoria também não era nada, virava pó de estrela em um gesto de morte, indo para o bardo para se livrar de sua verdade e de suas mentiras.
O jogral, a esta altura, não fazia mais ninguém rir, todos meditavam, e a imagem de Shambala no fólio desafiava a imaginação, um sinal de que a quietude era um exercício contra a perturbação da loucura alucinatória dos transes oníricos, o embusteiro que se jogava hipnotizado do penhasco, achando que iria voar, e sua morte suicida como um ser de asas que nunca existiu e que se espatifou no chão duro de sua finitude. Este era o jogral, ele se matou depois de falhar em sua peça de comédia, o bobo que se cortou depois de uma queda, o fraco da desdita que se jogou, que teve a queda definitiva depois de cair, o suicida que nem poeta era, o que conheceu a sua morte e nunca mais poderá rir.
Tarthang já sabia o que poderia acontecer ao que espera agradar com salamaleques, vira um joguete de seu próprio fracasso, e o sol só brilha a quem quer a si mesmo, a quem se edifica para si, a construção de uma alma forte que desafia os olhares, pois nunca será o jogral agradável que ri para fazer cena e chora por ocultar seu vazio. Os lamas então saíram de tarde com mais balões coloridos, os poemas de fogo foram embutidos em tais balões, em Lhasa tinha uma paz imortal que nada pedia ao sol, apenas agradecia. Tarthang meditava por mais uma hora, e a certo momento de um sol vermelho, levitou e entrou em um transe em que viu Shambala novamente, a lhe ensinar sem falar novas intuições que ele nem suspeitava, um êxtase e mais um dia vívido como fogo.
Depois de uma semana, voltei para Katmandu, tive a inspiração de fazer um poema esteta e bem afetado, um rito parnaso que empolava em língua morta, a fazer uma versão aguada adrede de uma experiência mística, tentava falar do jogral e de seu fracasso triste, e de como o sucesso só se fortalece ao não atender a qualquer expectativa, mas à verdade de valores inesperados, como um soco na barriga que dobra as línguas de almas mortas e sebosas.
Katmandu teve uma festa na noite em que estive lá, ao pé do Himalaia eu vi mulheres e crianças felizes em meio de uma pobreza, nada faltava, pois as ambições ali tinham virado uma quietude que me lembrava do sol de Lhasa, e o degelo da agonia que tinha passado depois de ver Shambala dançando na nuvem, com Tarthang flutuando a dizer que nada se salvava, as poeiras sumiriam no éter, o bardo provaria que não teria mais nada pela frente, o vento nos levaria para além, e nunca se soube do infinito o que ele nos diz, o céu sempre silencia, e assim se entende tudo no silêncio.

Gustavo Bastos – POEMA EM PROSA – 14/03/2020



quinta-feira, 12 de março de 2020

GURUS E CURANDEIROS – PARTE XXI

“temos um problema de transposição de tradições milenares, que envolvem práticas eróticas e sexuais”
O caso Ananda Joy ficou conhecido por reportagem de O Globo em janeiro de 2019, nome de um guru que tem como nome real Diógenes Mira, e na ocasião das denúncias de abuso sexual e estupro, tinha 39 anos e atuava como um tipo de mestre e sábio, condição esta comum a todo aquele que se autointitula “guru”.
Ananda Joy ministrava cerimônias tântricas em Piracicaba-SP. O guru se coloca como um estudioso do misticismo oriental e também é instrutor de yoga. Fazia vinte anos que ele ministrava o chá Ayahuasca nas suas cerimônias em Piracicaba, também conhecido como o Daime. E é em Piracicaba que ele mantém seu Instituto Tantra Shala. E as denúncias partiram de uma característica de suas cerimônias, que era a de o guru ter uma posição de poder sobre os que frequentavam tais encontros. A sua condição de guru, se colocando como mestre e sábio, lhe conferia poder de sugestão sobre os demais.
As sessões abertas ministradas por Ananda Joy não tinha ritual erótico, este ficava para as sessões fechadas, de onde vieram as denúncias de cunho sexual, em um caráter geral de coação e constrangimento. Ananda Joy avisava que tais rituais eróticos poderiam envolver relações sexuais, mas não estipulava em que limite aquilo se daria. As denúncias feitas por mulheres envolviam atos contra a vontade, no entanto, e não um ato espontâneo de contexto erótico-religioso. Limites foram ultrapassados para o que estas mulheres estavam dispostas a fazer.
A característica de atuação de Ananda Joy, segundo as denúncias, portanto, envolviam meios de força física e de discurso espiritual, e que tinham a orientação principal de fazer com que as mulheres que fizeram as denúncias fizessem sexo com o guru e outros membros do grupo. Ananda Joy negou as acusações. As denúncias de abuso reveladas por O Globo vão de 2009 a 2015.
As mulheres procuraram o MP-SP para relatar os abusos cometidos por Diógenes Mira, o Ananda Joy, e o MP afirmou que várias vítimas procuraram o órgão. Segundo as denúncias e relatos, uma das vítimas participou de uma dança em que houve carinhos e toques sensuais com o propósito de curar traumas e bloqueios. Ananda Joy a abraçou e esfregou seu órgão sexual na vítima, ele estava de roupa, e a vítima entendia tais esfregações como parte do trabalho de cura praticado pelas cerimônias tântricas.
Uma outra mulher disse que, durante uma relação sexual, Ananda fez uma prática que a vítima não concordara, mas que Ananda fez o ato mesmo assim, mesmo com a vítima pedindo para parar o ato. A posição de guru de Ananda Joy lhe colocava numa posição privilegiada e de poder, e isto operando pelo seu suposto status espiritual, o que, no contexto de suas cerimônias, se transformava imediatamente em poder de sugestão e manipulação. O argumento para qualquer prática feita em tais cerimônias tântricas é a de que se tratava de um trabalho espiritual.
Ananda Joy se defendeu das acusações nas redes sociais, e sua defesa afirma que o guru é inocente. Diante das várias denúncias, Ananda disse que acionou uma defesa técnica, por meio de um escritório de advocacia, e disse que só se manifestaria pelos advogados, tentando poupar a sua família da repercussão do caso, usando a defesa técnica como sua forma de comunicação sobre o caso.
O advogado de Ananda Joy, Luiz Auricchio, afirmou que o acusado é inocente, e um fato estranho é o de tais denúncias terem ido primeiro à imprensa e só depois para o MP-SP. Nenhuma vítima foi à delegacia, por exemplo, o que o advogado julga como num mínimo estranho. A Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou que não teve nenhum boletim de ocorrência contra Ananda Joy no Estado de São Paulo, e que a polícia ficou sabendo do caso e de sua repercussão pela imprensa.
Embora o caso seja controverso, pois há muitas denúncias, mas os meios usados, imprensa ao invés de delegacia, num primeiro momento, temos um problema de transposição de tradições milenares, que envolvem práticas eróticas e sexuais, e que talvez, nos tempos em que estas práticas foram criadas e aperfeiçoadas, tudo fazia parte de um contexto cultural e social específico.
Pode ser que tal adaptação aos tempos modernos e contemporâneos, de tais práticas e cerimônias tântricas e eróticas, possam trazer algumas ou muitas incoerências, sendo que o erotismo do tantra, num contexto do mundo antigo hindu, tem um sentido completamente diverso do que tentam aplicar hoje em dia, e que, por último, mas não menos importante, pode ser um chamariz para aproveitadores e manipuladores.
E a aplicação de ayahuasca, ou daime, no caso de Ananda Joy, aprofunda o problema, pois é mais um fenômeno comum de práticas espirituais muito mais conhecidas pelo seu ecletismo do que por fundamentos filosóficos realmente fortes.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.