PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 30 de setembro de 2017

O MUNDO SELVAGEM

Levo comigo fontes incultas
de persuasão,
retóricas embaladas de puro vício,
elencos pútridos de esquemas
corrutos como vilanias,
sestas em comandos
de ataque,
surpresas suicidas
de terror,
fornos em que se queimam
os corpos
de revolucionários,
ditadores posudos
com peitos de pombo,
rebeliões astrais
de vermes
chauvinistas,
planos militares
com operações
de assassinato,
genocídios poéticos
com venenos
nos lutos
infames
sem esperança,
poemas como
dinamites
no sorriso
das feras
putrefatas.

30/09/2017 Gustavo Bastos

A FORÇA

A força do homem não se dá
apenas no mistério das essências,
sua dor edifica todas as formas
possíveis e impossíveis
de felicidade,

a grande armadura contrasta
com o coração mole,
as estruturas rígidas
do caráter lutam
contra tentações
de aniquilamento
e rebelião,

a força toda da fé e do ceticismo,
o esforço ventral e muscular
junto com o espanto espiritual
de existir e persistir,

o elemento fundamental da
força, quem és?
eis o sentido universal
de toda a força do
homem :
sua fraqueza.

30/09/2017 Gustavo Bastos

O MUNDO REAL

Pontes levadiças, ossos perfurados
de rotas palavras secas.

Porto que dormita na antevisão
dos salões de vinho,
dos acadêmicos delirantes,
dos poetas brutamontes.

Sinta-se o poder das causas primeiras,
dos filósofos das origens,
dos monumentos estourados
do sistema de pensamento,

as categorias morrem exangues,
as formas morrem langues,
o tédio implodido
da essência
nutre
o catedrático,

oh, mundo caolho
do sangue e das vísceras,
quanta fome e sede
cercam
os monutros
de cinzas
do mundo da vida,
o mundo da dor,
o mundo real.

30/09/2017 Gustavo Bastos

CRISTAL E AÇO

Próprio do cristal, em sua forma acabada,
como um gládio rútilo movido a pedra
e reto com toda a virulência,

corta a sete facadas o poliedro
em seus lados de astúcia,
como um bólido ancestral.

Resta a fuligem do campo maestro,
e seu estro pontificado
de símbolos e potências,

como nobre porto cada qual uma pedra,
diamante que nutre o cedro,
madeira que esculpe a espada,
ferro queimando o corpo todo.

Diante do cristal e do aço,
a potência da força
e a delicadeza poética,
o coração mole
e a fala dura,

potente o estro como espanto,
rotação feita de pedra e caule,
de cristal e aço.

30/09/2017 Gustavo Bastos

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

PINTURA DE ULISSES (ESTRO MARÍTIMO)

O coração palpitava
com o estro medonho
das naus tontas de vício,
como teares fabulares o mito
vence as batalhas do mar,
um canto de sereia
abisma o sol e o sal,

festonado o vestuário das nereidas,
salpicando gotas de orvalho
as valkírias, sepultando os ermos
ascetas os fios de ariadne
no morto campo de caronte
e perséfone,

melismas na cantoria do fogo,
calipsos e circes
nas atrações do circo
oceânico das viagens
de ulisses
no campo mortal,

as naiades e as eumênides
lutavam nas flores
botânicas
de uma ofélia
suicidada
em pranto
de uma pintura
pré-rafaelita.

29/09/2017 Gustavo Bastos


O ESPÍRITO DA TRAGÉDIA

A noite, como um jorro de mel
ante as asas bucólicas,
estremecia o pântano em que
dormia o monge envolto
com sua túnica de cristal,

pelos montes fervilhava o néctar
e os lilases espoucavam com
tudo de real à monarquia
das estrelas estilizadas,

com vinho de vitral, cântaros marrons
de barro bruto, a vida crua do ventre
que o poema descrevia com sua febre
de águia e sua raiva de leão,

patas marcadas na trilha das rosas,
eram répteis com suas fagulhas
de escamas entre os dentes,
o rio de peixes elétricos
com bombas entre as guelras,

e o morticínio astuto da guerra
com os oris sucumbindo
com os mitos falanges
e tupinambás que se
afogavam no moinho
dos luares loucos,

sentia o poeta seu cadafalso
com a macilenta face de esteta,
entre seus versos nutria de mel
seu espanto como um ser cósmico
que descia da nave para uma nau,

náusea era seu potente canto,
como um trovador ou aedo
registrando as sunyatas
que das vedantas o hino
sussurrava como vímana
dos astros e dos sóis infinitos,

como um monolito negro como carvão
serpenteava o estro,
firme e decidido,
pronto ao ataque sutil
de que a pena brilhante
remexia em seus cantos
de batalhas sequiosas
e enamorado de poções
de amores luxuriantes,

perto do cais o poeta se suicidava
com todos os seus gáudios
e febricitantes sacerdotisas
como na inspirada consulta
à pitonisa depois do terror
com as fúrias,
era como um perseu
na rocha e no penhasco
matando a medusa,

deambulando pelos pórticos
saía à mão cheia os luares
espantados de sal,
os coros das tragédias
eram como fados
deste poeta
de farol.

29/09/2017 Gustavo Bastos













quarta-feira, 27 de setembro de 2017

VENUS IN FURS

“A ideia de beleza em Vênus, por fim, tem este duplo aspecto do amor celeste e do desejo carnal”

Afrodite, deusa grega de origem asiática, surgida sob a influência do culto fenício de Astarte, e mais remotamente da Ishtar acádia e babilônica, são estas e a citada representadas como deusas do amor, relacionadas a ritos de fertilidade, Afrodite que na era romana ganhará o nome Vênus. E aqui temos além da ideia fundante do amor, também o tema da beleza e do desejo, formas que ganham tanto sua pureza celeste como o sentido literal do desejo carnal, e logo veremos que Afrodite representa tudo isso.
A versão mais conhecida de seu nascimento vem do autor Hesíodo, que nos conta que ela nasceu quando Cronos, tendo cortado os órgãos genitais de Urano, os lançou ao mar, e da espuma nasceu a já bela e adulta Afrodite. Contudo, temos também o relato de Homero, que coloca Afrodite como filha de Zeus e Dione. Por conseguinte, vista esta dupla origem, seu culto se dividiu em duas versões, a primeira da Afrodite mais antiga, era da origem descrita por Hesíodo, a Afrodite Urânia, e a outra, da versão homérica, a Afrodite Pandemos.
Uma das pinturas mais famosas que retrata o surgimento de Afrodite da espuma do mar é uma têmpera sobre madeira intitulada O Nascimento de Vênus de Sandro Boticelli, este um pintor italiano do século XV e XVI, vindo da Escola Florentina do Renascimento, influenciado na pintura do Quatrocento por Masaccio, recebendo também em sua pintura o Gótico tardio.
Boticelli explorou bem as cores frias, com a veia visionária das pregações de Savonarola, e tendo nas esculturas da Antiguidade também o seu culto de adoração e inspiração, participando da corte de Lourenço de Médici, com a pintura O Nascimento de Vênus, por sua vez, sendo uma das pinturas de Boticelli que surgiu sob a influência da ideia de amor neoplatônica do filósofo Ficino.
E uma das possíveis versões modernas da ideia de beleza produzida pelo mito de Vênus, por sua vez, pode ser traduzida no fenômeno das bombshells do cinema, com Jean Harlow, que recebeu o epíteto de blonde bombshell pelo filme Platinum Blonde de 1931, culminando com Marilyn Monroe, um dos maiores ícones femininos do cinema de todos os tempos.
Mas logo Hollywood expande o conceito da versão original loura, indo para versões exóticas e étnicas, fenômeno este que foi bem intenso entre os anos de 1940 e os anos de 1960. Depois tal intensidade da ideia de beleza feminina passou a ser consumida comercialmente no mundo pop em geral, exigindo do imaginário coletivo algo somente vendido como produto, mais um fenômeno midiático do que algo palatável aos pobres mortais, resultando numa idealização mais potente até que a figura dos poetas românticos do século XIX, pois agora a dinâmica passava o bastão da paixão pura e casta para o desejo sexual propriamente dito.
Venus in Furs, por sua vez, diz respeito tanto a uma novela do autor austríaco Leopold von Sacher-Masoch, publicada em 1870, como se refere a uma música da banda americana The Velvet Underground, música esta que figura no debut da banda, o álbum The Velvet Underground & Nico, e que tem toda a letra baseada nesta novela do autor austríaco, focando no aspecto masoquista da relação de Severin com a sua dominadora, Wanda.
A Vênus das Peles (Venus in Furs), por sua vez, é a obra mais conhecida de Leopold von Sacher-Masoch, que tem o personagem Severin, bem citado na letra da banda The Velvet Underground, como um jovem nobre, que conhece Wanda, e que então tem o começo de uma história que coloca o tema da paixão entre eles no sentido de uma relação que gerasse felicidade e que durasse.
Nessa busca da felicidade e de uma relação duradoura aparece então o tema da dominação, tema masoquista que a letra da banda The Velvet Underground enfatiza, na sua versão fetichizada da novela austríaca, e a figura de um martelo que golpeia uma bigorna passa a reger as ações das personagens. Severin pede a Wanda que ele mesmo se torne seu escravo, no que é feito um contrato e a história se torna a descrição de cenas torturantes de um Severin dominado por sua amante no culto do prazer através do sofrimento físico, tema do prazer em sentir dor e humilhação que ganhou o nome de masoquismo pelo psiquiatra Richard von Krafft-Ebing.
Portanto, o tema de Vênus tem no mito a sua origem, e que descreve também o fenômeno artístico da beleza como ideal da arte, passando pelo culto midiático desta ideia de beleza e culminando no tema levantado de Venus in Furs, tema final deste texto, que tem na relação masoquista também um dos segredos do desejo.
Aqui então passamos tanto pelo tema celestial da beleza, o tema do amor, como ao fim caímos na gandaia do desejo carnal como fonte primária das dores e prazeres recônditos que governam os instintos tanto da arte como dos humanos na vida comum. A ideia de beleza em Vênus, por fim, tem este duplo aspecto do amor celeste e do desejo carnal, a dupla face reina em seu duplo culto, Afrodite de Hesíodo e de Homero, a Vênus das Peles do autor austríaco e da letra de Lou Reed da banda The Velvet Underground.  

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/35917/14/venus-in-furs




segunda-feira, 25 de setembro de 2017

LIRA DOS VINTE ANOS, ÁLVARES DE AZEVEDO – PARTE II

“Na crítica literária temos um Álvares de Azevedo que hoje soa datado”

A POESIA, A PROSA E A CRÍTICA EM ÁLVARES DE AZEVEDO

Álvares de Azevedo é também o único poeta antes do Modernismo a levantar temas prosaicos e cotidianos em sua poesia, uma dicotomia surge, sobretudo com o prefácio da segunda parte de seu livro Lira dos Vinte Anos, que aqui sai do mundo ideal, visionário e platônico, para mergulhar em poemas mais avançados como Lembrança de morrer, Um cadáver de poeta, Soneto à virgem do mar e É ela! É ela! É ela! É ela!, citando também o salto que ele dá em seu Macário, este sendo um trabalho de prosa do poeta.  
Tal dicotomia pode ser uma contradição ou ainda um paradoxo, pois o poeta romântico se levanta contra a idealização da mulher feita por poetas como Mendes Leal, mas sendo o próprio Álvares de Azevedo em seus poemas também um cultor de uma imagem ideal do feminino, e que coloca o poeta como um crítico literário que algumas vezes se distancia de sua prática poética para apontar defeitos que ele mesmo cultiva, ou se isso seria mais uma limitação da poesia romântica do que propriamente um defeito ou uma falha.
Em sua prosa Noite na Taverna, por sua vez, Álvares de Azevedo defende um fim moralizador para o teatro, enfrentando a estética e o gosto de seus contemporâneos, e temos que o trabalho teatral do poeta nos dá um tanto da boêmia em que o temperamento tanto poético como romântico se dissipava como se não houvesse amanhã.
Na crítica literária temos um Álvares de Azevedo que hoje soa datado, pois seu universo de citações já se perdeu no tempo, de uma cepa inteligente, não evitou pegar bolor com o que veio depois, e o interesse de seu trabalho nesta área se dissipou na nuvem do tempo e da evolução literária posterior, sua teoria literária sendo, por sua vez, enfadonha, salvando-se em sua crítica apenas a sua referência a uma peça de Antonio Ferreira.
Por fim, temos então a percepção de que sua poesia e sua prosa sobrevivem mais como documento histórico e exemplares de uma geração de poesia e literatura do que seus trabalhos de crítica e teoria literária, o poeta Álvares de Azevedo, ou ainda o escritor, são de mais valor que a deterioração do tempo que sofreu o seu trabalho como crítico e teórico.

POEMAS :

ANIMA MEA : O poema tem um clima de idílio e nos convida a um transe onírico, ou ainda o próprio sono como um dos modelos ideais da poesia de Álvares de Azevedo : “Quando nas sestas do verão saudoso/A sombra cai nos laranjais do vale” (...) “Parece que de afã dorme a natura,/E as aves silenciosas se mergulham/No grato asilo da cheirosa sombra./E que silêncio então pelas campinas!” (...) “É doce então das folhas no silêncio/Penetrar o mistério da floresta,/Ou reclinando à sombra da mangueira/Um momento dormir, sonhar um pouco!/Ninguém que o indolente adormecido/Roube das ilusões que o acalentam/E do mole dormir o chame à vida!”. O sono em meio à natureza, o poeta se encanta e continua seu périplo idílico e cancioneiro : “Criaturas de Deus se peregrinam/Invisíveis na terra, consolando/As almas que padecem, certamente/É um anjo de Deus que toma ao seio/A fronte do poeta que descansa!”. E a idealização da natureza logo se torna em mulher, Ilná, que nos aparece em todo seu esplendor, edulcorada pela pena romântica do poeta idílico, no que temos : “E tu, Ilná, vem pois : deixa em teu colo/Descanse teu poeta : é tão divino/Sorver as ilusões dos sonhos ledos,/Sentindo à brisa teus cabelos soltos/Meu rosto encherem de perfume e gozo!/Tudo dorme, não vês? dorme comigo,/Pousa na minha tua face bela/E o pálido cetim da tez morena .../Fecha teus olhos lânguidos .../no sono/Quero sentir os túmidos suspiros,/No teu seio arquejar, morrer nos lábios/E no sono teu braço me enlaçando!/Ó minha noiva, minha doce virgem,/No regaço da bela natureza,/Anjo de amor, reclina-te e descansa!”. O sono é a imagem que se expande no poema, e aqui se junta às imagens da mulher e da natureza, formando uma tríade romântica de temperamento amolecido, tal como é todo transe amoroso e onírico, no que o poema segue : “Além, além nas árvores tranquilas/Uma voz acordou como um suspiro./São ais sentidos de amorosa rola/Que nos beijos de amor palpita e geme?” (...) “Eu sinto a vida bela em teu regaço,/Sinto-a bela nas horas do silêncio/Quando em teu colo me reclino e durmo,/E ainda os sonhos meus vivem contigo!”. O poeta continua em sua obcecada viagem poética pelo sono, e o poema canta então seu anjo, ou sua mulher, no átimo que o poema revela, em luz e canto de amor : “Anjo do meu amor! se os ais da virgem/Têm doçuras, têm lágrimas divinas,/É quando no silêncio, no mistério,/Sobre o peito do amante se derramam/No sufocado alento os moles cantos,” (...) “Ouves, Ilná? meu violão palpita :/Quero lembrar um cântico de amores;” (...) “Virgem do meu amor, vem dar-me ainda/Um beijo! – um beijo longo transbordando/De mocidade e vida, e nos meus sonhos/Minh`alma acordará”. O sono que reinou em todo o poema então ao fim acorda, e o regaço, o silêncio, a natureza, são elementos do bel canto de que o poeta é o mensageiro.

A HARMONIA : O poema lírico vai cantar a harmonia, e tem como tema a música, no que temos personagens reais figurando no poema como Paganini, violinista e compositor, Bellini, operista e compositor, e a cantora lírica Malibran, no que temos : “Meu Deus! se às vezes na passada vida/Eu tive sensações que emudeciam/Essa descrença que me dói na vida,” (...) “Foi quando às vezes a modinha doce/Ao sol de minha terra me embalava,/E quando as árias de Bellini pálido/Em lábios de Italiana estremeciam!/Oh! Santa Malibran! fora tão doce/Pelas noites suaves do silêncio/Nas lágrimas de amor, nos teus suspiros,/Na agonia de um beijo, ouvir gemendo/Entre meus sonhos tua voz divina!/Oh! Paganini! quando moribundo/Inda a rabeca ao peito comprimias,/Se o hálito de Deus, essa alma d `anjo/Que das fibras do peito cavernoso/Arquejava nas cordas entornando/Murmúrios d `esperança e de ventura,”. O poema todo é uma grande homenagem à música, e o som encanta o poeta por todo verso que ele derrama neste poema, no que o poema segue : “Ah! se nunca te ouvi, se teus suspiros,/Desdêmona sentida e moribunda,/Nunca pude beber no teu exílio,/Nos sonhos virginais senti ao menos/Tua pálida sombra vaporosa/Nesta fronte que a febre incandescera/Depor um beijo, suspirar passando!” (...) “Pobre! pobre mulher! esses mancebos/Que choravam por ti quando gemias,/Quando sentias a tua alma ardente/No canto esvaecer, pálida e bela,/E teu lábio afogar entre harmonia” (...) “E hoje riem de ti! da criatura/Que insana profanou as asas brancas,” (...) “E as sentia boiando solitárias,/As flores da coroa, como Ofélia! .../Que iludida do amor vendeu a glória/E deu seu colo nu a beijo impuro .../Eles riem de ti – mas eu, coitada,/Pranteio teu viver e te perdoo!”. As citações à Shakespeare aqui dão ao poema a mistura entre a cena teatral e as sensações que traz a música ao poeta romântico, que segue no poema : “Por que foste gemer na orgia ardente/A santa inspiração de teus poetas,/Perder teu coração em vis amores?” (...) “Pálida Italiana! hoje esquecida,/O escárnio do plebeu murchou teus louros:/Tua voz se cansou nos ditirambos,/E tu não voltas com as mãos na lira”. No fim, no entanto, temos a decadência de Malibran, que os louros agora murcharam, e que a lira de Álvares de Azevedo ainda tenta resgatar.

VIDA : O poema romântico que canta a vida, é o produto de um afã idealizado, no que temos : “Oh! fala-me de ti! eu quero ouvir-te/Murmurar teu amor :/E nos teus lábios perfumar do peito/Minha pálida flor.” (...) “Nos delíquios de amor, ó minha amante,/Eu sonho o seio teu,”. O derramamento é evidente, o poema prorrompe em cantos sublimes de amor embonecado, próprio do estro romântico, e prática usual do poeta Álvares de Azevedo, no que o poema segue : “A nós a vida em flor, a doce vida/Recendente de amor!” (...) “A tua alma infantil junto da minha/No fervor do desejo,/Nossos lábios ardentes descorando/Comprimidos num beijo,/E as noites belas de luar, e a febre/Da vida juvenil,/E este amor que sonhei, que só me alenta/No teu colo infantil!/Vem comigo ao luar – amemos juntos/Neste vale tranquilo,”. E a noite cai, e a ideia de amor ferve a pena que de encanto goza seu amor puro e incandescente, no que o poema segue : “À noite encostarei a minha fronte/No virgem colo teu;/Terei por leito o vale dos amores,/Por tenda o azul do céu!” (...) “Que importa que o anátema do mundo/Se eleve contra nós,/Se é bela a vida num amor imenso/Na solidão – a sós?/Se nós teremos o cair da tarde/E o frescor da manhã :” (...) “Bate a vida melhor dentro do peito/Do campo na tristeza/E o aroma vital, ali, do seio/Derrama a natureza!/E, aonde as flores no deserto dormem/Com mais viço e frescor,/Abre linda também a flor da vida”. Enfim, a vida e a natureza são as imagens que se fundem neste amor ideal do estro que derrama como é do feitio do século de Álvares de Azevedo, parte de nossa história literária.

POEMAS :

ANIMA MEA

Quando nas sestas do verão saudoso
A sombra cai nos laranjais do vale
Onde o vento adormece e se perfuma,
E os raios d `ouro, cintilando vivos,
Como chuva encantada se gotejam
Nas folhas do arvoredo recendente,
Parece que de afã dorme a natura,
E as aves silenciosas se mergulham
No grato asilo da cheirosa sombra.

E que silêncio então pelas campinas!
A flor aberta na manhã mimosa,
E que os estos do sol d `estio murcham,
Cerra as folhas doridas e procura
Da grama no frescor doentio leito.
É doce então das folhas no silêncio
Penetrar o mistério da floresta,
Ou reclinando à sombra da mangueira
Um momento dormir, sonhar um pouco!
Ninguém que o indolente adormecido
Roube das ilusões que o acalentam
E do mole dormir o chame à vida!

E é tão doce dormir! é tão suave
Da modorra no colo embalsamado
Um momento tranquilo deslizar-se!
Criaturas de Deus se peregrinam
Invisíveis na terra, consolando
As almas que padecem, certamente
É um anjo de Deus que toma ao seio
A fronte do poeta que descansa!

Ó florestas! ó relva amolecida,
A cuja sombra, em cujo doce leito
É tão macio descansar nos sonhos!
Arvoredos do vale! derramai-me
Sobre o corpo estendido na indolência
O tépido frescor e o doce aroma!
E quando o vento vos tremer nos ramos
E sacudir-vos as abertas flores
Em chuva perfumada, concedei-me
Que encham meu leito, minha face, a relva
Onde o mole dormir a amor convida!

E tu, Ilná, vem pois : deixa em teu colo
Descanse teu poeta : é tão divino
Sorver as ilusões dos sonhos ledos,
Sentindo à brisa teus cabelos soltos
Meu rosto encherem de perfume e gozo!

Tudo dorme, não vês? dorme comigo,
Pousa na minha tua face bela
E o pálido cetim da tez morena ...
Fecha teus olhos lânguidos ... no sono
Quero sentir os túmidos suspiros,
No teu seio arquejar, morrer nos lábios
E no sono teu braço me enlaçando!

Ó minha noiva, minha doce virgem,
No regaço da bela natureza,
Anjo de amor, reclina-te e descansa!
Neste berço de flores tua vida
Límpida e pura correrá na sombra,
Como gota de mel em cálix branco
Da flor das selvas que ninguém respira.

Além, além nas árvores tranquilas
Uma voz acordou como um suspiro.
São ais sentidos de amorosa rola
Que nos beijos de amor palpita e geme?
Ah! nem tão doce a rola suspirando
Modula seus gemidos namorados,
Não trina assim tão longa e molemente.
Em argentinas pérolas o canto
Se exala como as notas expirantes
De uma alma de mulher que chora e canta ...

É a voz do sabiá : ele dormia
Ebrioso de harmonia e se embalava
No silêncio, na brisa e nos eflúvios
Das flores de laranja ... Ilná, ouviste?
É o canto saudoso da esperança,
É dos nossos amores a cantiga
Que o aroma que exalam teus cabelos,
Tua lânguida voz talvez lhe inspiram!

Vem, Ilná : dá-me um beijo – adormeçamos.
A cantilena do sabiá sombrio
Encanta as ilusões, afaga o sono ...
Oh! minha pensativa – descuidosa,
Eu sinto a vida bela em teu regaço,
Sinto-a bela nas horas do silêncio
Quando em teu colo me reclino e durmo,
E ainda os sonhos meus vivem contigo!

Ah! vem, ó minha Ilná : sei harmonias
Que a noite ensina ao violão saudoso
E que a lua do mar influi na mente;
E quando eu vibro as cordas tremulosas,
Como alma de donzela que respira,
Coa nas vibrações tanta saudade,
Tanto sonho de amor esvaecido,
Que o terno coração acorda e geme,
E os lábios do poeta inda suspiram!

Anjo do meu amor! se os ais da virgem
Têm doçuras, têm lágrimas divinas,
É quando no silêncio, no mistério,
Sobre o peito do amante se derramam
No sufocado alento os moles cantos,
_ Cantos de amor, de sede e d`esperanças
Que nos lábios febris lhe afoga um beijo!

Ouves, Ilná? meu violão palpita :
Quero lembrar um cântico de amores;
Fora doce ao poeta, ao teu amante,
Nos ais ardentes das maviosas fibras
Ouvir os teus alentos de mistura,
E as moles vibrações da cantilena
Este meu peito remoçar um pouco!

Virgem do meu amor, vem dar-me ainda
Um beijo! – um beijo longo transbordando
De mocidade e vida, e nos meus sonhos
Minh`alma acordará – o sopro errante
Da alma da virgem tremerá meus seios
E a doce aspiração dos meus amores
No condão da harmonia há de embalar-se!

A HARMONIA

Meu Deus! se às vezes na passada vida
Eu tive sensações que emudeciam
Essa descrença que me dói na vida,
E, como orvalho que a manhã vapora,
Em seus raios de luz a Deus me erguiam,
Foi quando às vezes a modinha doce
Ao sol de minha terra me embalava,
E quando as árias de Bellini pálido
Em lábios de Italiana estremeciam!

Oh! Santa Malibran! fora tão doce
Pelas noites suaves do silêncio
Nas lágrimas de amor, nos teus suspiros,
Na agonia de um beijo, ouvir gemendo
Entre meus sonhos tua voz divina!

Oh! Paganini! quando moribundo
Inda a rabeca ao peito comprimias,
Se o hálito de Deus, essa alma d `anjo
Que das fibras do peito cavernoso
Arquejava nas cordas entornando
Murmúrios d `esperança e de ventura,
Se a alma de teu viver roçou passando
Nalgum lábio sedento de poesia,
Numa alma de mulher adormecida,
Se algum seio tremeu a concebê-lo,
Esse alento de vida e de futuro,
Foi o teu seio, Malibran divina!

Ah! se nunca te ouvi, se teus suspiros,
Desdêmona sentida e moribunda,
Nunca pude beber no teu exílio,
Nos sonhos virginais senti ao menos
Tua pálida sombra vaporosa
Nesta fronte que a febre incandescera
Depor um beijo, suspirar passando!

Meu Deus! e outrora se um momento a vida
De poesia orvalhou meus pobres sonhos
Foi nuns suspiros de mulher saudosa,
Foi abatida, a forma desmaiada,
Uma pobre infeliz que descorando
Fazia os prantos meus correr-me aos olhos!

Pobre! pobre mulher! esses mancebos
Que choravam por ti quando gemias,
Quando sentias a tua alma ardente
No canto esvaecer, pálida e bela,
E teu lábio afogar entre harmonia
_ Almas que de tua alma se nutriam,
Que davam-te seus sonhos, e amorosas
Desfolhavam-te aos pés a flor da vida,
Ai quantas não sentiste palpitantes,
Nem ousando beijar teu véu d `esposa,
Nas longas noites nem sonhar contigo!

E hoje riem de ti! da criatura
Que insana profanou as asas brancas,
Que num riso sem dó, uma por uma,
Na torrente fatal soltava rindo,
E as sentia boiando solitárias,
As flores da coroa, como Ofélia! ...
Que iludida do amor vendeu a glória
E deu seu colo nu a beijo impuro ...
Eles riem de ti – mas eu, coitada,
Pranteio teu viver e te perdoo!

Fada branca de amor, que sina escura
Manchou no teu regaço as roupas santas?
Por que deixavas encostada ao seio
A cabeça febril do libertino?
Por que descias das regiões douradas
E lançavas ao mar a rota lira
Para vibrar tua alma em lábios dele?
Por que foste gemer na orgia ardente
A santa inspiração de teus poetas,
Perder teu coração em vis amores?
Anjo branco de Deus, que sina escura
Manchou no teu regaço as roupas santas?

Pálida Italiana! hoje esquecida,
O escárnio do plebeu murchou teus louros:
Tua voz se cansou nos ditirambos,
E tu não voltas com as mãos na lira
Vibrar nos corações as cordas virgens
E ao gênio adormecido em nossas almas
Na fronte desfolhar tuas coroas! ...

VIDA

I
Oh! fala-me de ti! eu quero ouvir-te
Murmurar teu amor :
E nos teus lábios perfumar do peito
Minha pálida flor.

De tua letra nas queridas folhas
Eu sinto-me viver,
E as páginas do amor sobre meu peito
Fazem-me estremecer!

E, quando à noite delirante durmo,
Deito-as no peito meu :
Nos delíquios de amor, ó minha amante,
Eu sonho o seio teu,

A alma que as inspirou, que lhes deu vida
E o fogo da paixão,
E derramou as notas doloridas
Do virgem coração!

Eu quero-as no meu peito, como sonho
Teu seio de donzela,
Para sonhar contigo o céu mais puro
E a esperança mais bela!

II
A nós a vida em flor, a doce vida
Recendente de amor!
Cheia de sonhos d `esperança e beijos
E pálido langor!

A tua alma infantil junto da minha
No fervor do desejo,
Nossos lábios ardentes descorando
Comprimidos num beijo,

E as noites belas de luar, e a febre
Da vida juvenil,
E este amor que sonhei, que só me alenta
No teu colo infantil!

III
Vem comigo ao luar – amemos juntos
Neste vale tranquilo,
De abertas flores e caídas folhas
No perfumado asilo.

Aqui somente a rola da floresta
Da sesta no calor
O tremer sentirá dos longos beijos
E verá teu palor.

À noite encostarei a minha fronte
No virgem colo teu;
Terei por leito o vale dos amores,
Por tenda o azul do céu!

E terei tua imagem mais formosa
Nas vigílias do val :
Será da vida meu suave aroma
Teu lírio virginal.

IV
Que importa que o anátema do mundo
Se eleve contra nós,
Se é bela a vida num amor imenso
Na solidão – a sós?

Se nós teremos o cair da tarde
E o frescor da manhã :
E tu és minha mãe, e meus amores
E minh`alma de irmã?

Se teremos a sombra onde se esfolham
As flores do retiro –
E a vida além de ti – a vida inglória –
Não me vale um suspiro?

Bate a vida melhor dentro do peito
Do campo na tristeza
E o aroma vital, ali, do seio
Derrama a natureza!

E, aonde as flores no deserto dormem
Com mais viço e frescor,
Abre linda também a flor da vida
Da lua no palor.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/35892/17/na-critica-literaria-temos-um-alvares-de-azevedo-que-hoje-soa-datado
   


domingo, 24 de setembro de 2017

MAR E VINHO

Uma pele retorcia nos poros
os olhares de relance,
o respiro das águas turvas
molhava o tecido mais
manso que dormia.

O poema, qual leve pele em canção,
molhava-se nos versos
como um derramamento
em que o estro explodia
de paixão.

Nos poros e nas pupilas dilatadas,
o poeta acariciava os versos
como sublimes poeiras de estrelas,
como galáxias pretéritas
na visão do futuro,

eis que na anarquia da pele arrepiada
o poema se exaltava como um grande
rio nervoso com todas as nuances
de uma música que irrompia
em mar e vinho.

24/09/2017 Gustavo Bastos

MAIÊUTICA

O parto que ali nascia
tinha o frio da faca,
um corte reto
que alinhava
delicadeza
e espanto.

Linha constante que do grito lancinante
estremecia o sangue fervido
das pestanas e do caos
poético de outrora.

O parto sequioso que alumiava
o ventre seco das ancas
ventiladas de estro
e potência.

O poeta, tal qual um Sócrates trovador,
perdia suas linhas com o frio da faca
em corte rente como um grande bisturí
de ponta e de coração aturdido,
uma grande arcada dentária
que abria o abismo,
o parto do poema.

24/09/2017 Gustavo Bastos

LEIS NARCOS

Deu com os burros n`água
o legislador lunático
que elencava as normas
comezinhas do caos.

Decerto que um juizeco pavonudo
contorcia suas demências
com licores e arrotos
de pinga.

Borboleteia o poeta como
um pássaro de bico torto,
desajustado da lei,
farol para o álcool
que brio incendeia.

Deu com a cara na porta
o delegado que exaltava
seus peritos com digitais
no sangue do cárcere.

Eles : poeta, juiz, lei, delegado.
Todos reunidos diante
do patíbulo,
todos comendo restos de nada
no púlpito,
todos lutando entre si
nas teias versadas
do crime e da polícia.

24/09/2017 Gustavo Bastos

CHÃO DO DESALENTO

Faz tanto sol no Brasil, que de noite
o frio tilinta com os cobres metais
dos ossos de gelo da lua.

Frita uma manada, enquanto o deputado
empilha seu quinhão, e o monsenhor
dos ares de festa zurra e pavoneia
seus salamaleques com sedes
de frutas e legumes na fome
que grita no cais,

levo meus poemas como laranjas doces,
e o crime conspira com forças obscuras
contra o grito sublime
do olor florido da cultura
botânica,

neonazistas campeiam contra
os crackudos e os prefeitos
da várzea dão com jatos
contra os mendigos aziagos,

uma baderna, bulhufas de espantos
com mordidas na pitomba,
peneirando o leite e comendo
o pão amassado do diabo
com gotas de suor
no chão do desalento.

24/09/2017 Gustavo Bastos