PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 14 de janeiro de 2017

CHARLES BAUDELAIRE E AS FLORES DO MAL – PARTE IV

“As Flores do Mal, seu único livro de poesia, possui apenas 166 poemas”

CHARLES BAUDELAIRE

SENTIDO MODERNO DE AS FLORES DO MAL

CONTEXTO HISTÓRICO E CRÍTICO

Baudelaire tinha cerca de 20 anos quando começou a escrever os primeiros poemas de As Flores do Mal, só que o poeta não teve pressa em publicar seus poemas, os quais passaram por um processo exigente de escrita e reescrita, com poemas provavelmente destruídos, fundidos, refundidos, e sobretudo esmerilhados. Tudo isso num espaço de tempo de 27 anos, no qual Baudelaire fez sua concepção estética amadurecer, tornando-se um artista com alto grau de lucidez e consciência poética. Tal era a entrega e a exigência de seu trabalho, que Baudelaire, de suas cartas, no entanto, podia inferir a ideia de que sua obra não seria reconhecida rapidamente, pois Baudelaire se via num contexto de uma sociedade e de uma época que tinha apego por certos juízos oficiais e que tinha nas palavras de Victor Hugo uma lei, este que, consagrado, reconheceu de pronto o gênio de Baudelaire, pois sabia das coisas.
No entanto, como poderia a França de sua época e tal espírito francês da primeira metade do século XIX tolerar o que deles dizia Baudelaire? Num contexto histórico de uma época contaminada pela agonia do romantismo, como As Flores do Mal seriam bem recebidas pelo austero e discricionário regime de Napoleão III, levando até mesmo a entidade que era Victor Hugo ao exílio? Baudelaire poderia ser encarado então como um poeta já escolhido pela posteridade, aonde de fato morava, pois não estava inserido na hipocrisia e no irrespirável prosaísmo do espírito francês de sua época.
Contudo, é com As Flores do Mal que Baudelaire antecipa tanto os temas como também todo o processo estético da poesia moderna. Baudelaire seguia com certa fidelidade as ideias expostas por Poe no Poetic principle, no que se via que Baudelaire, à exceção de uma meia dúzia de composições, expurgou o poema longo, que era um tipo de afetação cara ao gosto dos românticos. Mas, para além do Poetic principle de Poe, o verso baudelairiano tem outras fontes de inspiração e reflexão como nos textos dos escritores latinos, nas propostas estéticas da Pléiade, na Ars poetica de Boileau e, sobretudo, na obra de Racine, este que tem por uma das bases o mesmo citado Boileau. Mesmo sendo um poeta que antecipou a poesia moderna e como contemporâneo da febre romântica, Baudelaire, contudo, é um escritor de linhagem clássica, pois tem uma lucidez na expressão, com sua sintaxe sem floreios e um estilo conciso que são reflexo do que há de melhor nas tradições da língua francesa, revelando no poeta um diálogo criativo frutífero com muito do que houve no século XVII, daí advindo sua negação estética dos transbordamentos retóricos e do desleixo de estilo visto nos românticos.
E podemos ter uma medida da exigência baudelairiana se vermos que o poeta cuidou com afinco até da própria extensão de seu cânon poético: As Flores do Mal, seu único livro de poesia, possui apenas 166 poemas, aos quais se poderiam ajuntar, se quiser, o legado talvez irrelevante dos primeiros versos, ou ainda das Amoenitates Belgicae, que reúnem a poesia epigramática e os versos de circunstância que nos deixou o autor. E vem a questão de se de fato Baudelaire escreveu pouco, já que isso seria uma insinuação, por exemplo, de Jean-Paul Sartre, que em sua súmula idiossincrática e irritada sobre o poeta levanta tal polêmica. Mas se Baudelaire foi exigente com o próprio trabalho, pode-se inferir também o contrário, de que escreveu muito, já que uma obra do quilate de As Flores do Mal não nasce da noite para o dia, lembrando aqui os 27 anos que o poeta maturou para vir à luz, podendo então ter como objeto o fato de que os poemas de Baudelaire são produto de alguém que escreveu e reescreveu incontáveis vezes esses 166 poemas da arte final, obra que lhe custou sua vida inteira de poeta e como escritor. Então, ao contrário da visão sartreana, pode-se ver que Baudelaire escreveu muitíssimo, mas somente publicou o que lhe parecia digno de seu gênio. E então acertou em cheio, independente, e muito!, da crítica reducionista de que era um escritor breve.
O verso baudelairiano revela tal exigência de uma vida inteira no que se pode ver em seu alexandrino impecável e infinito, numa senda ondulante de duração que rompe até mesmo os limites físicos da palavra, num jogo verbal que tem no mistério do processo criativo a sua fonte original. E tal sortilégio resultante das tensões que se polarizam em seu verso seria produto de uma imaginação na qual o significado das palavras não seria o bastante, pois era produto de uma intuição poderosa animada por entidades como as “opérations magiques” e a “sorcellerie évocatoire”, como o próprio Baudelaire sugere em suas notas, com o fito de explorar os sons, as formas e as cores.
Assim como o verso baudelairiano não pode ser confundido com o dos românticos, este tampouco pode ser incluído entre os parnasianos e no modo como Baudelaire concebia a tão controversa teoria da “arte pela arte”, que tem em seus poemas uma operação criativa diversa da rigidez ortodoxa de um Gautier ou de um Banville, causando espanto, para quem está bem informado, esta associação que alguns críticos fazem de Baudelaire com o parnasianismo. Tal distinção entre Baudelaire e os parnasianos se dá sobretudo por ter o soneto baudelairiano se fundado nas “imperfeições” que são o caráter essencial de sua versificação e da poesia do autor, que passa ao largo de exigências formais tanto da Pléiade quanto do próprio Parnaso, com tal herança, guardadas as proporções, presentes apenas em cinco poemas. Pois toda a obra de Baudelaire será uma transgressão em relação a fôrmas, numa luta constante contra reduções paralisantes.
Quanto ao conceito da “arte pela arte”, portanto, também causa espanto que se haja tentado colocar Baudelaire como seu defensor, uma vez que as “defeituosas perfeições” da poesia baudelairiana lutavam contra escaninhos em que estavam entidades como Gautier e Banville, por exemplo. Com Baudelaire, por sua vez, fazendo uma inversão de princípios em que a feiura era também poesia, e não a ideia metafísica e da tradição filosófica da Estética que tinha no Belo com maiúscula  o fundamento exclusivo da sensação e aqui, no caso de Baudelaire, como fonte única para a inspiração poética. E foi exatamente com esta ruptura que Baudelaire abriu caminho para o que viria a ser a poesia moderna. E Baudelaire, por sua vez, foi quem conferiu todo o sentido metafísico que faltava à poesia musical e muitas vezes vazia de Poe, abrindo caminho para uma concepção de verso que seria livre de todos os elementos narrativos e didáticos que até então povoavam a poesia, lançando então os novos fundamentos da poesia moderna.
Embora o verso baudelairiano se expresse sobretudo em termos de estrita consumação sintático-verbal, este deve, contudo, muito à música,  e ainda mais à pintura. E então não é por acaso que Baudelaire tenha se destacado como o maior crítico musical e de artes plásticas de sua época. Como poeta, Baudelaire certamente tinha essa preocupação musical na sua relação às exigências do ritmo, que é, como se sabe, o elemento que faz a distinção estrutural entre a poesia e a prosa, mais do que a conhecida distinção formal. Há, pois, em Baudelaire, como se veria com Eliot bem depois, este interesse dinâmico pelo que era a “music of the poetry”, numa espécie de visão de herança pitagórica e matemática.
Baudelaire, por outro lado, não permitia que a música pudesse subverter ou adulterar os elementos discursivos do poema, pois a base do poema eram as palavras, e não as ideias, e então Baudelaire teve esta percepção de entender a ameaça da música aos fundamentos estéticos de sua poesia, mantendo-a sob controle crítico. Tal descaminho que ficaria, por sua vez, por conta de dois de seus herdeiros: Verlaine, cuja poesia se reduz a uma verdadeira orgia e embriaguez musical, e Mallarmé, com sua “musique des silences”.
Os textos baudelairianos são claros quanto a imagens, e ao contrário de Rimbaud, que iria colorir as vogais em célebre soneto, Baudelaire pretendia estabelecer uma forma de percepção como analogia entre as distintas manifestações do gênio artístico, numa sensibilidade espiritual, que era, ao fim, uma faculdade suprema da imaginação, com Baudelaire colocando a beleza para além dos elementos plásticos ou musicais que inspirava muitas vezes a sua escrita poética.
A inovação do verso baudelairiano não se dará, contudo, no nível da língua, pois a linguagem de Baudelaire segue critérios canônicos de clareza, não obstando nada para o plano da leitura, pois que tem como fonte histórica os poetas latinos e os grandes autores franceses do século XVII, principalmente Racine, mas observando-se no poeta, todavia, uma preocupação musical que faltava ao verso clássico, quase sempre comprometido com a eloquência e o afã analítico. O verso de Baudelaire é sempre lento, grave, solene, um alexandrino infindável ondulando com um ritmo próprio e original, tendo semelhanças, por vezes, com as litanias da decadência latina.
Fiel à cesura, esse alexandrino baudelairiano possui um vasto cabedal de recursos técnicos e estilísticos, como as rimas internas, o jogo habilidoso de rimas graves e agudas, típico da ordem clássica francesa, as aliterações, além das insólitas “perfeições defeituosas” das quais Baudelaire foi intenso praticante em seus versos. E mesmo quando Baudelaire recorre aos metros curtos, como as redondilhas maior e menor – o que é raríssimo -, pode-se perceber essa duração infindável, e no que tange ao octossílabo, metro muito frequente em As Flores do Mal, este é característico da língua francesa e, como no caso do alexandrino, Baudelaire o levou à perfeição.

POEMAS:

O CISNE : O poema do cisne é belo, mesmo vertido ao português, vem com música, em sentido de som e de fundo, como se vê: “Andrômaca, só penso em ti!” (...) “Fecundou-me de súbito a fértil memória,/Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel./Foi-se a velha Paris”. Há um quê de nostalgia, a velha Paris se evoca, mas o poeta tem então uma visão: “Ali eu vi, certa manhã,” (...) “Um cisne que escapara enfim ao cativeiro/E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo,/As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro./Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo,/No pó banhava as asas cheias de aflição,/E dizia, a evocar o seu lago natal:/“Água, quando cairás? quando soarás, trovão?””. A visão do cisne e sua fuga do cativeiro ainda possui um misto de esperança e sofrimento, a água é sentida como fonte redentora, no que Baudelaire continua: “Paris muda! mas nada em minha nostalgia/Mudou!” (...) “Também diante do Louvre uma imagem me oprime:/Penso em meu grande cisne, quando em fúria o vi,/Qual exilado, tão ridículo e sublime,/Roído de um desejo infindo!”. Aqui a velha Paris é o cisne outrora visto, a visão nostálgica funde a beleza do animal à da cidade, e os ventos da mudança como uma dor que quer se ver extirpada: “Andrômaca, às carícias do esposo arrancada,/De Pirro a escrava, gado vil, trapo terreno,/Ao pé de ermo sepulcro em êxtase curvada,/Triste viúva de Heitor e, após, mulher de Heleno!” (..) “Assim, a alma exilada à sombra de uma faia,/Uma lembrança antiga me ressoa infinda!”. A memória, por infinda, ressoa o infinito, que pode ser esperança ou lembrança. Pode-se ver o futuro e ao mesmo tempo evocar do passado algo que da memória não se esgota. O poema é o cisne e é Paris.
A UMA PASSANTE : O poema nos aparece com a sua musa em fuga, uma musa rarefeita, uma passante: “A rua em torno era um frenético alarido./Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,/Uma mulher passou,” (...) “Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia/No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,/A doçura que envolve e o prazer que assassina.” (..) “Não mais hei de te ver senão na eternidade?/Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!/Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,/Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!”. A visão é tão fugaz quanto os passos rápidos da passante, e com a mesma velocidade o poema se encerra, como algo que tenta captar a fuga.
SONHO PARISIENSE : O poema abre com sua visão da paisagem, o sonho parisiense se abre: “Desta fantástica paisagem,/Que ninguém viu jamais um dia,/Esta manhã ainda a imagem,/Vaga e longínqua, me extasia.” (...) “E, artista cônscio do que cria,/Eu saboreava em minha tela/A pertinaz monotonia/Do metal, do óleo e da aquarela.”. O poeta diante de Paris atua aqui tal pintor, pictórica figura se delineia, o poema vê a cidade como em pinceladas, no que Baudelaire prossegue: “Demiurgo de ébrias fantasias,/Fazia eu mesmo, ao meu agrado,/Sob um túnel de pedrarias,/Correr um mar enclausurado;” (...) “E sobre tais sonhos vividos/Pairava” (...) “Uma mudez de eternidade.”. O sonho parisiense tenta abarcar então o silêncio da eternidade, este ser da totalidade que muitas vezes se dá muito mais na meditação e na oração silenciosa do que no esforço do pensamento, no que o poema segue: “Quando meus olhos eu reabri,/O horror surgiu numa visão,/E na minha alma eis que senti/O gume agudo da aflição;/Funéreo pêndulo anunciava/Em dobre atroz o meio-dia,/E o céu as trevas derramava/Sobre este mundo em agonia.”. Mas do silêncio da eternidade, alvissareiro, o poeta se vê na verdade diante de sua finitude, e o mundo real é um mundo em agonia.
A ALMA DO VINHO : Na série famosa de Baudelaire em que ele, em As Flores do Mal, ele tem como o tema o vinho, o poeta coloca toda a riqueza poética que tal imagem possui, e tenta, de saída, captar a alma do vinho: “A alma do vinho, certa tarde, nas garrafas/Cantava: “Homem, elevo a ti, que me és tão caro,/No cárcere de vidro e lacre em que me abafas,/Um cântico de luz e de fraterno amparo!”. O vinho aparece aqui como amigo do homem, e dá as suas boas-vindas, como se vê: “sinto uma alegria imensa quando desço/Pela goela de quem ao trabalho se entrega,/E seu tépido peito é a tumba onde me aqueço/E onde me agrada mais estar do que na adega.”. O vinho foi feito para o homem e não para a adega, e a alegria do vinho é alegrar o homem, vindo da labuta, e aqui o vinho nos consola com sua alma ébria: “Repousarei em ti, vegetal ambrosia,/Grão atirado pelo eterno Semeador,/Para que assim de nosso amor nasça a poesia/Que rumo a Deus há de subir qual rara flor!””. E no fim está a poesia, a alma do vinho, que em Baudelaire, portanto, desperta a poesia, a qual ruma a Deus como flor rara.
O VINHO DOS TRAPEIROS : O vinho aqui aparece como lenitivo da labuta, esta ideia corrente entre operários, camponeses e demais trabalhadores que estão na hora do ócio entregues às seduções da bebida, e o vinho como este ser mais refinado entre várias outras bebidas, no que Baudelaire segue em poesia: “Muitas vezes, à luz de um lampião sonolento,/Do qual a chama e o vidro estalam sob o vento,/Num antigo arrabalde, informe labirinto,/Onde fervilha o povo anônimo e indistinto,/Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,/Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,” . O trapeiro aqui também é poeta, e o vinho sua alma de poeta, no que o poema segue: “E sob o azul do céu, como um dossel suspenso,/Embriaga-se na luz de seu talento imenso.” (...) “Assim é que através da ingênua raça humana/O vinho, esplêndido Pactolo, do ouro emana;/Pela garganta do homem canta ele os seus feitos/E reina por seus dons tal como os reis perfeitos.”. O vinho e seus dons depende do homem, a poesia que do vinho temos a noção vem do homem embriagado, o vinho só tem alma com esta alma que é a do homem, e os dons de ambos são um só, exatamente nesta interação de virtude, no que Baudelaire dá a coda magistral, concluindo esta invenção sagrada: “O Homem o Vinho fez, do Sol filho sagrado!”
O VINHO DO ASSASSINO : O poema é visceral, e se abre violentamente: “Livre, afinal! ela está morta!/Posso beber o tempo inteiro.” O vinho virtuoso aparece aqui em sua face de vício, tal o assassino que bebe o tempo inteiro: “Sou tão feliz quanto é um rei;/O ar é puro, o céu adorável .../Era um verão incomparável/Quando por ela me encantei!” (...) “Atirei-a ao fundo de um poço,/E eu mesmo pus, para cobri-la,/De suas bordas toda a argila./_ Hei de esquecê-la, se é que posso!” (...) “Eu lhe implorei uma entrevista,/À noite, numa estrada escura./Ela veio! – a louca criatura!/Talvez em nós um louco exista!”. Diante da louca criatura, a loucura é descoberta pelo poeta como habitante da alma humana, e aqui possuída dos miasmas do assassínio: “Quanto eu a amava! e foi por isso/Que lhe ordenei: Sai desta vida!” (...) “_ Eis-me liberto e a sós comigo!/Serei à noite um ébrio morto;/Sem nenhum medo ou desconforto,/Farei da terra o meu abrigo,” (...) “Eu zombo de tudo, do Diabo,/De Deus ou da Ceia Sagrada!”. O assassino é um zombeteiro, que não reconhece autoridade e não deve obediência, desertou de Deus e até mesmo do Diabo.
O VINHO DOS AMANTES : O poema é um caminho, uma cavalgada de dois amantes, é um poema belo, com astral positivo, e se sucede bem como imagem de amor: “O espaço hoje esplende de vida!/Livres de esporas, freio ou brida,/Cavalguemos no vinho:”. A vida aparece aqui como afirmativa e alvissareira, no que os amantes se juntam, nesta imagem poética de Baudelaire, o poeta do vinho: “Como dois anjos que tortura/Uma implacável calentura,/No límpido azul da paisagem/Sigamos a fugaz miragem!” (...) “Chegaremos enfim, risonhos,/Ao paraíso de meus sonhos!”. O paraíso da poesia que é o do vinho e, por fim, o do amor. Fim sonhador do poema no sonho do vinho e do amor, o vinho dos amantes, poema bem semeado, poesia linda.

POEMAS:

O CISNE

                             A Victor Hugo
I
Andrômaca, só penso em ti! O fio d`água
Soturno e pobre espelho onde esplendeu outrora
De tua solidão de viúva a imensa mágoa,
Este mendaz Simeonte em que teu pranto aflora,

Fecundou-me de súbito a fértil memória,
Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel.
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história
Depressa muda mais que um coração infiel);

Só na lembrança vejo esse campo de tendas,
Capitéis e cornijas de esboço indeciso,
A relva, os pedregulhos com musgo nas fendas,
E a miuçalha a brilhar nos ladrilhos do piso.

Ali havia outrora os bichos de uma feira;
Ali eu vi, certa manhã, quando ao céu frio
E límpido o Trabalho acorda, quando a poeira
Levanta no ar silente um furacão sombrio,

Um cisne que escapara enfim ao cativeiro
E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo,
As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro.
Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo,

No pó banhava as asas cheias de aflição,
E dizia, a evocar o seu lago natal:
“Água, quando cairás? quando soarás, trovão?”
Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal,

Tal qual o homem de Ovídio, às vezes num impulso,
Erguer-se para o céu cruelmente azul e irônico,
A cabeça a emergir do pescoço convulso,
Como se a Deus lançasse um desafio agônico!

II
Paris muda! mas nada em minha nostalgia
Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
E essas lembranças pesam mais do que rochedos.

Também diante do Louvre uma imagem me oprime:
Penso em meu grande cisne, quando em fúria o vi,
Qual exilado, tão ridículo e sublime,
Roído de um desejo infindo! e logo em ti,

Andrômaca, às carícias do esposo arrancada,
De Pirro a escrava, gado vil, trapo terreno,
Ao pé de ermo sepulcro em êxtase curvada,
Triste viúva de Heitor e, após, mulher de Heleno!

E penso nessa negra, enferma e emagrecida,
Pés sob a lama, procurando, o olhar febril,
Os velhos coqueirais de uma África esquecida
Por detrás das muralhas do nevoeiro hostil;

Em alguém que perdeu o que o tempo não traz
Nunca mais, nunca mais! nos que mamam da Dor
E das lágrimas bebem qual loba voraz!
Nos órfãos que definham mais do que uma flor!

Assim, a alma exilada à sombra de uma faia,
Uma lembrança antiga me ressoa infinda!
Penso em marujos esquecidos numa praia,
Nos párias, nos galés ... e em outros mais ainda!

(Andrômaca: em grego Andromákhë, esposa de Heitor e mãe de Astíanax. Após a tomada de Troia, tornou-se escrava de Pirro, filho de Aquiles, com quem teve três filhos e que depois a repudiou, dando-a a Heleno, irmão de Heitor/ Simeonte: em grego Simóeis, rio da Tróade no qual outrora desembocava o rio Escamandro/Pirro: em grego Pýrros, em latim, Pyrrhus (c.318-272 a.C.), rei de Epiro (295-272), célebre pela dura vitória (por isso conhecida como ‘vitória de Pirro’) que obteve sobre os romanos em Heracleia (280). Morreu em Argos, após invadir o Peloponeso, durante uma batalha/Heitor: em grego Héktör, herói troiano, filho de Príamo e Hécuba, esposo de Andrômaca e pai de Astíanax. Após realizar várias proezas militares, foi morto por Aquiles, que o arrastou ao redor das muralhas de Troia amarrado a seu carro/Heleno: em grego, Hélenos, em latim, Helenus, guerreiro e adivinho troiano, filho de Príamo e Hécuba, irmão de Heitor e esposo de Andrômaca, que lhe foi dada em casamento por Pirro).

A UMA PASSANTE
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz ... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

SONHO PARISIENSE
                          A Constantin Guys

I
Desta fantástica paisagem,
Que ninguém viu jamais um dia,
Esta manhã ainda a imagem,
Vaga e longínqua, me extasia.

O sono engendra assombros vários!
Por um capricho singular,
Banira eu já desses cenários
O vegetal irregular,

E, artista cônscio do que cria,
Eu saboreava em minha tela
A pertinaz monotonia
Do metal, do óleo e da aquarela.

Babel de umbrais e colunatas,
Era um palácio ilimitado,
Cheio de fontes e cascatas
Sobre ouro fosco ou cinzelado;

E cataratas vagarosas,
Como cortinas de cristal,
Se despenhavam, luminosas,
Pelas muralhas de metal.

Colunas (árvores, jamais)
Os tanques quietos circundavam,
Onde náiades colossais,
Como donzelas, se miravam;

Azuis lençóis de água fluíam
Por entre os cais de tom diverso,
E por milhões de léguas iam
Rumo às origens do universo;

Havia seixos nunca olhados
E vagas mágicas havia;
Grandes espelhos deslumbrados
Pelo que ali se refletia!

Apáticas e taciturnas,
As torrentes, no azul distante,
Vertiam todo ouro das urnas
Sobre penhascos de diamante.

Demiurgo de ébrias fantasias,
Fazia eu mesmo, ao meu agrado,
Sob um túnel de pedrarias,
Correr um mar enclausurado;

E tudo, a cor mais merencória,
Era solar, claro, irisado;
A água engastava a sua glória
Num raio em si cristalizado.

Além, nem astros nem vestígios
Do sol, sequer nos céus mais baixos,
Para clarear esses prodígios
Ardendo à luz dos próprios fachos!

E sobre tais sonhos vividos
Pairava (hedionda novidade,
Não aos olhos, mas aos ouvidos!)
Uma mudez de eternidade.

II
Quando meus olhos eu reabri,
O horror surgiu numa visão,
E na minha alma eis que senti
O gume agudo da aflição;

Funéreo pêndulo anunciava
Em dobre atroz o meio-dia,
E o céu as trevas derramava
Sobre este mundo em agonia.

A ALMA DO VINHO

A alma do vinho, certa tarde, nas garrafas
Cantava: “Homem, elevo a ti, que me és tão caro,
No cárcere de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico de luz e de fraterno amparo!

Bem sei quanto custou, na tórrida montanha,
De causticante sol, de suor e de mau trato
Para forjar-me a vida e enfim a alma ter ganha.
Mas não serei jamais perverso nem ingrato,

Pois sinto uma alegria imensa quando desço
Pela goela de quem ao trabalho se entrega,
E seu tépido peito é a tumba onde me aqueço
E onde me agrada mais estar do que na adega.

Não ouves os refrãos da domingueira toada
E a esperança que me unge o seio palpitante?
Cotovelos na mesa e a manga arregaçada,
Tu me honrarás e o riso há de ter constante;

Hei de acender-te o olhar à esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e as cores,
E serei para tão tíbio atleta da vida
O óleo que os músculos enrija aos lutadores.

Repousarei em ti, vegetal ambrosia,
Grão atirado pelo eterno Semeador,
Para que assim de nosso amor nasça a poesia
Que rumo a Deus há de subir qual rara flor!”

O VINHO DOS TRAPEIROS
Muitas vezes, à luz de um lampião sonolento,
Do qual a chama e o vidro estalam sob o vento,
Num antigo arrabalde, informe labirinto,
Onde fervilha o povo anônimo e indistinto,

Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,
Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,
E, alheio aos guardas e alcaguetes mais abjetos,
Abrir seu coração em gloriosos projetos.

Juramentos profere e dita leis sublimes,
Derruba os maus, perdoa as vítimas dos crimes,
E sob o azul do céu, como um dossel suspenso,
Embriaga-se na luz de seu talento imenso.

Toda essa gente afeita às aflições caseiras,
Derreada pela idade e farta de canseiras,
Trôpega e curva ao peso atroz do asco infinito,
Vômito escuro de um Paris enorme e aflito,

Retorna, a trescalar do vinho as escorralhas,
Junto aos comparsas fatigados das batalhas,
Os bigodes lembrando insígnias espectrais.
Os estandartes, os pendões e arcos triunfais

Erguem-se ante essa gente, ó solene magia!
E na ensurdecedora e luminosa orgia
Dos gritos, dos clarins, do sol e do tambor,
Trazem eles a glória ao povo ébrio de amor!

Assim é que através da ingênua raça humana
O vinho, esplêndido Pactolo, do ouro emana;
Pela garganta do homem canta ele os seus feitos
E reina por seus dons tal como os reis perfeitos.

E para o ódio afogar e o ócio ir entretendo
Desses malditos que em silêncio vão morrendo,
Em seu remorso Deus o sono havia criado;
O Homem o Vinho fez, do Sol filho sagrado!

(Pactolo: Em grego Paktolós, pequeno rio da Lídia, afluente do Hermo, célebre pelas pepitas de ouro que abundavam em suas águas, origem da riqueza de Midas e Creso.)

O VINHO DO ASSASSINO
Livre, afinal! ela está morta!
Posso beber o tempo inteiro.
Quando eu voltava sem dinheiro,
Se ouviam gritos logo à porta.

Sou tão feliz quanto é um rei;
O ar é puro, o céu adorável ...
Era um verão incomparável
Quando por ela me encantei!

A sede atroz que me põe louco
Para saciá-la exigiria
O que de vinho caberia
Em sua tumba. E não é pouco:

Atirei-a ao fundo de um poço,
E eu mesmo pus, para cobri-la,
De suas bordas toda a argila.
_ Hei de esquecê-la, se é que posso!

Em nome das eternas juras,
Pois nada nos pode afastar,
E para nos reconciliar
Como no tempo das venturas,

Eu lhe implorei uma entrevista,
À noite, numa estrada escura.
Ela veio! – a louca criatura!
Talvez em nós um louco exista!

Ela era então ainda garrida,
Embora exausta e já sem viço!
Quanto eu a amava! e foi por isso
Que lhe ordenei: Sai desta vida!

Ninguém me entende. Algum canalha,
Dentre esses ébrios enfadonhos,
Conceberia em seus maus sonhos
Fazer do vinho uma mortalha?

Essa devassa indiferente,
Como qualquer engenho hodierno,
Jamais, no verão ou no inverno,
Sentiu do amor o apelo ardente,

Com suas negras seduções,
Seu cortejo infernal de horrores,
Seus venenos e dissabores,
Seus timbres de ossos e grilhões!

_ Eis-me liberto e a sós comigo!
Serei à noite um ébrio morto;
Sem nenhum medo ou desconforto,
Farei da terra o meu abrigo,

E ali dormirei como um cão!
Podem as rodas da carroça,
Cheia de entulho e lama grossa,
Ou um colérico vagão

Esmagar-me a fronte culpada
Ou cortar-me ao meio, que ao cabo
Eu zombo de tudo, do Diabo,
De Deus ou da Ceia Sagrada!

O VINHO DOS AMANTES
O espaço hoje esplende de vida!
Livres de esporas, freio ou brida,
Cavalguemos no vinho: adiante
Se abre um céu puro e fulgurante!

Como dois anjos que tortura
Uma implacável calentura,
No límpido azul da paisagem
Sigamos a fugaz miragem!

Embalados no íntimo anelo
De um lúcido e febril afã,
Qual num delírio paralelo,

Lado a lado nadando, irmã,
Chegaremos enfim, risonhos,
Ao paraíso de meus sonhos!

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/32258/17/charles-baudelaire-e-as-flores-do-mal-parte-4