PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

SWINGING LONDON

“a Swinging London que era um dos pontos de convergência em que a arte em geral se movia”

Swinging London é o termo que foi cunhado numa edição especial da revista semanal norte-americana Time, em abril de 1965, e que designava um cenário de forte efervescência cultural, sobretudo de moda e música, que surgia na Londres da segunda metade da década de 1960, com o termo swinging podendo ser traduzido por palavras como vibrante, descolado e arrojado, termo levantado pela editora-chefe da revista de moda Vogue, Diana Vreeland.
Temos aqui a nomeação de numa nova atitude moderna contra o conservadorismo britânico familiar e tradicional, em que o cinema também terá vez, documentando toda esta cena na qual surgiria o que viria a ser chamada “Juventude”, e que explodiria para o mundo, muito bem exemplificada pela chamada Invasão Britânica de Beatles e cia nos EUA, outro aspecto desta virada cultural que Londres tomaria à frente no chamado pós-guerra.
Por sua vez, a Swinging London também foi o cenário em que Mary Quant revolucionou a moda mundial com a minissaia em 1967. Moda que, por sua vez, também era ditada por lojas como a Biba, e também por outras lojas que envolviam as ruas que ficariam famosas como a Carnaby Street. Moda que também incluía a ascensão de supermodelos como Twiggy, Jean Shrimpton e Veruschka, retratadas pelo icônico fotógrafo David Bailey, o qual inspiraria Michelangelo Antonioni no filme Blow Up, que seria o fotógrafo protagonista do filme.
A Swinging London que também contava com a presença do movimento mod, que envolvia a música, podendo ser citada como uma das bandas icônicas desta cena o The Who. Atitude musical de um rock que vestia ternos e que se expandia junto com todo o movimento de moda e de renovação artística que colocava Londres na vanguarda daquela segunda metade da década de 1960, energia intensa que também incluía bandas como Small Faces, mas que era um movimento que logo seria eclipsado pela psicodelia hippie americana.  
É em meio a esta cena londrina que Antonioni irá filmar seu filme-cult Blow Up, filme em que estará presente toda a moda, música, e mídia em geral que compunha a Swinging London, um conjunto de moda jovem, composto por músicos, fotógrafos e modelos, ditando o rumo do Zeitgeist de então, citando novamente aqui a cultura mod como um desses movimentos que fazia Londres brilhar, mas que tinha um egocentrismo vazio de esclarecimento que era um cenário de consumo bem retratado na imagem das supermodelos, figuras que irão povoar Blow Up junto com o arrogante fotógrafo que é protagonista da trama.  
Portanto, Antonioni se via com um material riquíssimo para trabalhar em seu filme, egresso de sua famosa Trilogia da Incomunicabilidade e do esgarçamento final desta experiência, no seu trajeto ainda na Itália, por sua vez, com seu excelente filme Deserto Vermelho. Com Blow Up, por sua vez, Antonioni é testemunha de uma vida e moda londrina que vivia sua primavera e que era agora a renovação que o cinema de Antonioni descobria e buscava, o que seguiria depois na devastação americana de Zabriskie Point, e depois com Chung Kuo.  Mas o chamado Zeitgeist retratado através da Swinging London é a matéria preciosa do documento que se torna Blow Up, e que é lançado no Reino Unido em janeiro de 1967.
O filme tem como origem e inspiração o conto do escritor argentino Julio Cortázar “As Babas do Diabo”, com o filme modificando um tanto o modo em que o fotógrafo se coloca na trama, mas que tem a cena de um assassinato como mote tanto no conto como no filme, com Blow Up, no que tange ao aspecto fotográfico, sendo considerado também um filme que funciona como uma série de fotografias sobre uma série de fotografias, com o diretor Antonioni manipulando seu personagem fotógrafo, que, por sua vez, manipula suas modelos ao seu bel prazer.  
Como dito, o filme tem como uma das inspirações do mundo real o fotógrafo de moda David Bailey, em que o ator Hemmings faz um personagem que é retratado como um sujeito autocrático e pretensioso, como um tipo debochado em relação ao próprio trabalho, numa postura irreverente que é fiel ao que representava o chamado “Terrible Three”, grupo formado pelos três fotógrafos David Bailey, Terence Donovan e Brian Duffy, imagens perfeitas dos anos 1960, em que tudo é condensado no personagem fotógrafo de Hemmings.
A postura de extrema sexualidade da relação entre fotógrafo e modelo é bem retratada também por Antonioni em Blow Up, numa abordagem neste sentido intencional e com uma objetividade que busca o tempo todo ser autêntica na forma tratada, pois a tensão do corpo sensualizado das modelos e a atitude autocrática do fotógrafo faziam o que era chamado de fotografia “New Wave” dos anos 1960, com o disparo rápido da câmera do fotógrafo no filme sendo a imagem fiel do método fotográfico de David Bailey e, por conseguinte, do Terrible Three.
E, falando nos filmes New Wave, temos que Bailey se dizia influenciado por filmes como Jules et Jim do cineasta francês François Truffaut, uma vez que o movimento cinematográfico teve como inspiração a fotografia de moda da época, e os experimentos e técnicas elaboradas e desenvolvidas no cinema europeu, por sua vez, alimentaram também as revistas de moda. A fluência e o movimento da fotografia de moda podem, por sua vez, ser identificadas no ritmo inquieto dos filmes de Jean-Luc Godard, sendo então a relação entre fotografia de moda e cinema na época um cenário de mútua influência, e com a Swinging London que era um dos pontos de convergência em que a arte em geral se movia como uma unidade de atitude que poderia bem ser chamada de Juventude.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36103/14/swinging-london

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

ESTÓRIA DE UM ERMITÃO

Mata-borrão, evocação dos
meus demônios, arte potente
que livra os lírios
da loucura,

eis, perto da pátria perdida,
corre o sangue dos
anacoretas,

eis, defronte ao touro virulento,
corre o sangue dos
pássaros,

passo a faca ao espadachim,
ele verte o sangue
dos poetas,

qual irmão de morte
no fogo de pentecostes,
eis um santo extático
com a cara sulcada
no sol do deserto,

ermitão, renunciante,
anunciando
o evangelho
num pote de barro
com água salobra,

na carta náutica : era o louco.

09/10/2017 Gustavo Bastos

A PAZ

À tarde, lugar em que a ave guarda
o crepúsculo,
me dê à sorte dos sonhos
que havia olvidado,

pois, de uma penumbra ou chuva,
qual gélido rio de cascata,
ouve o coração
que sorri,

à tarde, queimando incenso
nas beiradas do sol,
sorvo o sal que
sucumbe
no mar,

ao olhar da poesia sacra,
sei dos sacrários e púlpitos
o mais puro poema,
uma ode,

à tarde, ao sabor do cais
no arrebol,
minhas mãos
colhem
a paz.

09/10/2017 Gustavo Bastos

LIRA DOS VINTE ANOS, ÁLVARES DE AZEVEDO – PARTE IV

“o poeta que serve de modelo ideal do intelectual romântico”

A NOVA CRÍTICA ROMÂNTICA

A abordagem crítica de uma obra de arte levanta uma das questões importantes no cenário do Romantismo alemão, e esta será de um tipo original, isto é, o modo de se aproximar e criticar uma obra de arte para esta corrente literária, artística e estética, terá uma inovação e um avanço em relação ao cânon consagrado no Iluminismo, que era a de um modelo já pronto e com regras claras a seguir, uma vez que tal roteiro ou script na nova crítica romântica se torna supérfluo ou apenas inexistente ou desnecessário, ou melhor, não temos um modelo de crítica exatamente, mas um método, e este será o de abordar romanticamente uma obra, o que é tomá-la em si mesma, num movimento de autorreflexão, do que tal obra de arte oferece ao crítico na sua interação direta, sem a mediação de uma regra universal que oriente o juízo estético em questão.
Pois, na autorreflexão temos o fenômeno de que a crítica realizará uma espécie de desdobramento infinito rumo ao Absoluto, mas sem, no entanto, fechar um juízo definitivo, a crítica romantizada nunca é acabada, pois ao se voltar à obra de arte, como diz Novalis, o crítico vai novamente romantizá-la. Por conseguinte, temos que na crítica romântica, por não ser um modelo pronto, esta segue o método de abordar a obra em si, o que quer dizer que aqui se valoriza a individualidade e a originalidade da obra de arte, o que ela oferece de singular e não de universal, é a ruptura de um modelo iluminista regrado para um método chamado de autorreflexão.

A OBRA AZEVEDIANA E SUA DIVISÃO

Tratando então da obra de Álvares de Azevedo como um todo, temos que ela na sua fortuna crítica e historiográfica é uma obra consagrada e que ocupa lugar honrado no cenário geral da nossa História da literatura brasileira, obra que envolve peças de qualidade, exames críticos dos fenômenos estéticos, sendo este então o poeta que serve de modelo ideal do intelectual romântico, tendo sua obra dividida, numa primeira onda de críticos, numa dupla face lírica e satírica, o que refletia uma poesia lírica com formas sólidas, e de outro lado uma mordacidade que rompia com os cânones dos gêneros literários, e como modelo do poeta e intelectual romântico, temos, por sua vez, a mescla entre vida e obra um tanto intensa, colocando o problema do texto azevediano num prisma bem complexo, tal complexidade que se torna também patente na sua dupla face amorosa e humorística.  
A divisão da crítica literária brasileira em relação à obra azevediana, por sua vez, é feita por dois momentos e abordagens distintos: a maior parte desta crítica se filiou às tendências mais evidentes do estro romântico, seja este o sentimentalismo, o pieguismo, um existencialismo de filosofia precária, uma expressão derramada de amores não correspondidos ou apenas sonhados, considerações do Eu ou egoísticas, satanismo, e o humor e temas tétricos, tudo isso compondo o imaginário no qual bebeu a segunda geração do Romantismo brasileiro, os ultrarromânticos.
O segundo momento da crítica literária brasileira em relação à obra de Álvares de Azevedo, por sua vez, escapa do cipoal de clichês de que a outra crítica anterior se embebeu, focando no que esta obra tem de caráter crítico, coerente, autorreflexivo, o que esta obra tem não somente de temáticas, mas de orientação estética, abordando os traços marcantes que colocaram o poeta na ponta e na vanguarda do movimento romântico brasileiro, numa dicção moderna que alguns de seus textos poderiam nos apresentar, como é o caso do poema Ideias Íntimas.

POEMAS :

PREFÁCIO : O prefácio da segunda parte da Lira dos Vinte Anos de Álvares de Azevedo não é exatamente um poema, mas o coloco aqui, pois é um texto importante para o entendimento do livro e qual é o seu sistema poético, sua binomia, no que temos a palavra do poeta, que diz o seguinte :“Cuidado, leitor, ao voltar esta página! Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico.” (...) “A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces. Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto aqui é tema, senão mais novo, menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tão fashionable desde Werther e René. Por um espírito de contradição, quando os homens se veem inundados de páginas amorosas, preferem um conto de Bocaccio,”. A transição da lírica para a poesia satírica se dá aqui também como uma mudança amorosa da tendência goethiana, de um Werther sofrido, para uma galhofa bocacciana, com a mordacidade dando aqui sua lufada de ar no engessamento tanto da forma como dos sentimentos da primeira parte desta Lira, no que o poeta segue aqui com a sua explanação : “e reduz as moedas de ouro sem liga dos grandes poetas ao troco de cobre, divisível até ao extremo, dos liliputianos poetastros.” (...) “Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo, e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de ouro. O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem”. O poema vem à terra e aos que nela habitam, o corpo e suas exalações são a matéria bruta e verdadeira do poema, no que segue o poeta, nos dizendo : “isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não há poesia. O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta, porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico sem ser monótono. Digam e creiam o que quiserem. Todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.”. A transição ou transformação aqui é premeditada, e o poeta explica, na perspectiva da fortuna crítica dos poetas que lhe orientam o estro, a sua operação mágica, no que temos, para arrematar o salto azevediano, nesta Lira, o que segue : “Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde. É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o Giaour de Byron vem Caim e Don Juan” (...) “Deus me perdoe! assim é tudo! até os prefácios!”.

IDEIAS ÍNTIMAS : Este poema de dicção moderna, nos apresenta uma situação que coloca este poema na vanguarda de tudo o que o poeta Álvares de Azevedo escreveu, no que temos : “Ossian o bardo é triste como a sombra/Que seus cantos povoa. O Lamartine/É monótono e belo como a noite,/Como a lua no mar e o som das ondas .../Mas pranteia uma eterna monodia,/Tem na lira no gênio uma só corda,/Fibra de amor e Deus que um sopro agita :”. O spleen logo domina, a fileira da poesia arde em seu coração, mas seu lenitivo logo será o fumo, no que temos: “Basta de Shakespeare. Vem tu agora,/Fantástico alemão, poeta ardente” (...) “Contudo,/Parece-me que vou perdendo o gosto./Vou ficando blasé, passeio os dias/Pelo meu corredor, sem companheiro,/Sem ler, nem poetar. Vivo fumando.” (...) “Não passeio a cavalo e não namoro;” (...) “Se assim me continuam por dois meses/Os diabos azuis nos frouxos membros,/Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso. Enchi o meu salão de mil figuras.” (...) “Um sonho de mancebo e de poeta,/El-Dorado de amor que a mente cria/Como um Éden de noites deleitosas ...”. De um amor sem namoro, de uma imagem vaporosa, ele se perde nos seus mestres românticos, um Byron ou Goethe aqui aparecem como um ideal evanescente, o seu leito será a figura recorrente neste seu poema Ideias Íntimas, por ser seu quarto o cenário íntimo e suas ideias estas entidades que pulam de seu leito e de seu coração, no que ele tem de mais fundo dentro de si, ou seja, íntimo, temos então  : “A mesa escura cambaleia ao peso/Do titâneo Digesto, e ao lado dele/Childe-Harold entreaberto ou Lamartine/Mostra que o romantismo se descuida/E que a poesia sobrenada sempre/Ao pesadelo clássico do estudo.” (...) “Marca a folha do Faust um colarinho/E Alfredo de Musset encobre às vezes/De Guerreiro ou Valasco um texto obscuro.”. E vem a descrição detalhada do ambiente físico e ao mesmo tempo espiritual do poeta, no que temos : “Na minha sala três retratos pendem/Ali Victor Hugo. Na larga fronte/Erguidos luzem os cabelos loiros/Como c´roa soberba. Homem sublime,/O poeta de Deus e amores puros/Que sonhou Triboulet, Marion Delorme/E Esmeralda a Cigana ...” (...) “Aquele é Lamennais – o bardo santo,/Cabeça de profeta, ungido crente,/Alma de fogo na mundana argila/Que as harpas de Sion vibrou na sombra,/Pela noite do século chamando/A Deus e à liberdade as loucas turbas./Por ele a George Sand morreu de amores,” (...) “E o gênio do futuro parecia/Predestiná-lo à glória. A história dele?/Resta um crânio nas urnas do estrangeiro .../Um loureiro sem flores nem sementes .../E um passado de lágrimas ...”. E ele se volta à cena do sono, a imagem clichê da musa que dorme, o peito aqui rima com seu leito, o poeta tem um sutil delírio, tranquilo e doce, e que lhe enche a alma de poesia, e que o faz escrever o que vem : “Em frente do meu leito, em negro quadro,/A minha amante dorme.” (...) “O pobre leito meu, desfeito ainda/A febre aponta da noturna insônia./Aqui lânguido à noite debati-me/Em vãos delírios anelando um beijo .../E a donzela ideal nos róseos lábios,/No doce berço do moreno seio/Minha vida embalou estremecendo .../Foram sonhos contudo. A minha vida/Se esgota em ilusões.”. Aqui, a cena emblemática da Lira dos Vinte Anos, em todo o seu vigor e tragédia : “Oh! ter vinte anos sem gozar de leve/A ventura de uma alma de donzela!/E sem na vida ter sentido nunca/Na suave atração de um róseo corpo/Meus olhos turvos se fechar de gozo!/Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas/Passam tantas visões sobre meu peito!” (...) “Imploro uma ilusão ... tudo é silêncio!/Só o leito deserto, a sala muda!/Amorosa visão, mulher dos sonhos,/Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!/Nunca virás iluminar meu peito/Com um raio de luz desses teus olhos?/Meu pobre leito! eu amo-te contudo!” (...) “Meu leito juvenil, da minha vida/És a página d`ouro. Em teu asilo/Eu sonho-me poeta, e sou ditoso,/E a mente errante devaneia em mundos/Que esmalta a fantasia!”. No leito o poeta dorme com seu cânones, no que temos : “Junto do leito meus poetas dormem/- O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron –/Na mesa confundidos. Junto deles/Meu velho candeeiro se espreguiça/E parece pedir a formatura./Ó meu amigo, ó velador noturno,/Tu não me abandonaste nas vigílias,” (...) “Quero-te muito bem, ó meu comparsa/Nas doidas cenas de meu drama obscuro!/E num dia de spleen, vindo a pachorra,/Hei de evocar-te dum poema heroico/Na rima de Camões e de Ariosto,/Como padrão às lâmpadas futuras!/Aqui sobre esta mesa junto ao leito/Em caixa negra dois retratos guardo./Não os profanem indiscretas vistas./Eu beijo-os cada noite : neste exílio/Venero-os juntos e os prefiro unidos./- Meu pai e minha mãe. – Se acaso um dia,/Na minha solidão me acharem morto,/Não os abra ninguém. Sobre meu peito/Lancem-os em meu túmulo. Mais doce/Será certo o dormir da noite negra/Tendo no peito essas imagens puras./Havia uma outra imagem que eu sonhava/No meu peito na vida e no sepulcro./Mas ela não o quis ... rompeu a tela/Onde eu pintara meus dourados sonhos./Se posso no viver sonhar com ela,” (...) “Não poderei na sepultura, ao menos,/Sua imagem divina ter no peito./Parece que chorei ... Sinto na face/Uma perdida lágrima rolando .../Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,/Derrama no meu corpo as gotas últimas/Dessa garrafa negra .../Eia! bebamos!/És o sangue do gênio, o puro néctar/Que as almas de poeta diviniza,/O condão que abre o mundo das magias!/Vem, fogoso Cognac! É só contigo/Que sinto-me viver.” (...) “E no cérebro passam delirosos/Assomos de poesia ... Dentre a sombra/Vejo num leito d´ouro a imagem dela/Palpitante, que dorme e que suspira,/Que seus braços me estende .../Eu me esquecia :/Faz-se noite; traz fogo e dois charutos/E na mesa do estudo acende a lâmpada ...”. A visão do sepulcro já acompanhava o poeta breve, e seus pais iriam como imagens de seu apreço para este fundo do mistério, o que lhe restava ainda em vida era apenas apreciar as diversões satânicas de um bom Cognac. 

POEMAS :

PREFÁCIO

Cuidado, leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei, e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório : - a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.
Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto aqui é tema, senão mais novo, menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tão fashionable desde Werther e René.
Por um espírito de contradição, quando os homens se veem inundados de páginas amorosas, preferem um conto de Bocaccio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de Shakespeare, um provérbio fantástico daquele polisson Alfredo de Musset, a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na moda, e reduz as moedas de ouro sem liga dos grandes poetas ao troco de cobre, divisível até ao extremo, dos liliputianos poetastros. Antes da Quaresma há o Carnaval.
Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo, e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de ouro.
O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem, Homo sum, como dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado. Tem nervos, tem fibra e tem artérias – isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não há poesia.
O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta, porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico sem ser monótono. Digam e creiam o que quiserem. Todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.
O poema então começa pelos últimos crepúsculos do misticismo brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia puríssima banha com seu reflexo ideal a beleza sensível e nua.
Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.
É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o Giaour de Byron vem Caim e Don Juan – Don Juan que começa como Caim pelo amor, e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.
Agora basta.
Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas páginas, destinadas a não ser lidas. Deus me perdoe! assim é tudo! até os prefácios!

IDEIAS ÍNTIMAS

I
Ossian o bardo é triste como a sombra
Que seus cantos povoa. O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas ...
Mas pranteia uma eterna monodia,
Tem na lira no gênio uma só corda,
Fibra de amor e Deus que um sopro agita :
Se desmaia de amor a Deus se volta,
Se pranteia por Deus de amor suspira.
Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
Fantástico alemão, poeta ardente
Que ilumina o clarão das gotas pálidas
Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Meu coração deleita-se ... Contudo,
Parece-me que vou perdendo o gosto.
Vou ficando blasé, passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar. Vivo fumando.
Minha casa não tem menores névoas
Que as deste céu d`inverno ... Solitário
Passo as noites aqui e os dias longos;
Dei-me agora ao charuto em corpo e alma;
Debalde ali de um canto um beijo implora,
Como a beleza que o Sultão despreza,
Meu cachimbo alemão abandonado!
Não passeio a cavalo e não namoro;
Odeio o lansquenet .. Palavra d ´honra!
Se assim me continuam por dois meses
Os diabos azuis nos frouxos membros,
Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.

II
Enchi o meu salão de mil figuras.
Aqui voa um cavalo no galope,
Um roxo dominó as costas volta
A um cavaleiro de alemães bigodes,
Um preto beberrão sobre uma pipa,
Aos grossos beiços a garrafa aperta ...
Ao longo das paredes se derramam
Extintas inscrições de versos mortos,
E mortos ao nascer ... Ali na alcova
Em águas negras se levanta a ilha
Romântica, sombria à flor das ondas
De um rio que se perde na floresta ...
Um sonho de mancebo e de poeta,
El-Dorado de amor que a mente cria
Como um Éden de noites deleitosas ...
Era ali que eu podia no silêncio
Junto de um anjo ... Além o romantismo!
Borra adiante folgaz caricatura
Com tinta de escrever e pó vermelho
A gorda face, o volumoso abdômen,
E a grossa penca do nariz purpúreo
Do alegre vendilhão entre botelhas,
Metido num tonel ... Na minha cômoda
Meio encetado o copo inda verbera
As águas d`ouro do Cognac fogoso.
Negreja ao pé narcótica botelha
Que da essência de flores de laranja
Guarda o licor que nectariza os nervos.
Ali mistura-se o charuto Havano
Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo.
A mesa escura cambaleia ao peso
Do titâneo Digesto, e ao lado dele
Childe-Harold entreaberto ou Lamartine
Mostra que o romantismo se descuida
E que a poesia sobrenada sempre
Ao pesadelo clássico do estudo.

III
Reina a desordem pela sala antiga,
Desce a teia de aranha as bambinelas
À estante pulvurenta. A roupa, os livros
Sobre as cadeiras poucas se confundem.
Marca a folha do Faust um colarinho
E Alfredo de Musset encobre às vezes
De Guerreiro ou Valasco um texto obscuro.
Como outrora do mundo os elementos
Pela treva jogando cambalhotas,
Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!
     
IV
Na minha sala três retratos pendem.
Ali Victor Hugo. Na larga fronte
Erguidos luzem os cabelos loiros
Como c´roa soberba. Homem sublime,
O poeta de Deus e amores puros
Que sonhou Triboulet, Marion Delorme
E Esmeralda a Cigana ... E diz a crônica
Que foi aos tribunais parar um dia
Por amar as mulheres dos amigos
E adúlteros fazer romances vivos.

V
Aquele é Lamennais – o bardo santo,
Cabeça de profeta, ungido crente,
Alma de fogo na mundana argila
Que as harpas de Sion vibrou na sombra,
Pela noite do século chamando
A Deus e à liberdade as loucas turbas.
Por ele a George Sand morreu de amores,
E dizem que ... Defronte, aquele moço
Pálido, pensativo, a fronte erguida,
Olhar de Bonaparte em face austríaca,
Foi do homem secular as esperanças.
No berço imperial um céu de Agosto
Nos cantos de triunfo despertou-o ...
As águias de Wagram e de Marengo
Abriam flamejando as longas asas
Impregnadas do fumo dos combates
Na púrpura dos Césares, guardando-o.
E o gênio do futuro parecia
Predestiná-lo à glória. A história dele?
Resta um crânio nas urnas do estrangeiro ...
Um loureiro sem flores nem sementes ...
E um passado de lágrimas ... A terra
Tremeu ao sepultar-se o Rei de Roma.
Pode o mundo chorar sua agonia
E os louros de seu pai na fronte dele
Infecundos depor ... Estrela morta,
Só pode o menestrel sagrar-te prantos!

VI
Junto a meu leito, com as mãos unidas,
Olhos fitos no céu, cabelos soltos,
Pálida sombra de mulher formosa
Entre nuvens azuis pranteia orando.
É um retrato talvez. Naquele seio
Porventura sonhei douradas noites :
Talvez sonhando desatei sorrindo
Alguma vez nos ombros perfumados
Esses cabelos negros, e em delíquio
Nos lábios dela suspirei tremendo.
Foi-se minha visão. E resta agora
Aquela vaga sombra na parede
- Fantasma de carvão e pó cerúleo,
Tão vaga, tão extinta e fumarenta
Como de um sonho o recordar incerto.

VII
Em frente do meu leito, em negro quadro,
A minha amante dorme. É uma estampa
De bela adormecida. A rósea face
Parece em visos de um amor lascivo
De fogos vagabundos acender-se ...
E como a nívea mão recata o seio ...
Oh! quantas vezes, ideal mimoso,
Não encheste minh`alma de ventura,
Quando louco, sedento e arquejante,
Meus tristes lábios imprimi ardentes
No poento vidro que te guarda o sono!

VIII
O pobre leito meu, desfeito ainda
A febre aponta da noturna insônia.
Aqui lânguido à noite debati-me
Em vãos delírios anelando um beijo ...
E a donzela ideal nos róseos lábios,
No doce berço do moreno seio
Minha vida embalou estremecendo ...
Foram sonhos contudo. A minha vida
Se esgota em ilusões. E quando a fada
Que diviniza meu pensar ardente
Um instante em seus braços me descansa
E roça a medo em meus ardentes lábios
Um beijo que de amor me turva os olhos,
Me ateia o sangue, me enlanguesce a fronte,
Um espírito negro me desperta,
O encanto do meu sonho se evapora
E das nuvens de nácar da ventura
Rolo tremendo à solidão da vida!

IX
Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher ... e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso ... Que delírios!
Acordo palpitante ... inda a procuro;
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo ...
Imploro uma ilusão ... tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?

X
Meu pobre leito! eu amo-te contudo!

Aqui levei sonhando noites belas;
As longas horas olvidei libando
Ardentes gotas de licor dourado,
Esqueci-as no fumo, na leitura
Das páginas lascivas do romance ...

Meu leito juvenil, da minha vida
És a página d`ouro. Em teu asilo
Eu sonho-me poeta, e sou ditoso,
E a mente errante devaneia em mundos
Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes
Do levante no sol entre odaliscas
Momentos não passei que valem vidas!
Quanta música ouvi que me encantava!
Quantas virgens amei! Que Margaridas,
Que Elviras saudosas e Clarissas
Mais trêmulo que Faust eu não beijava,
Mais feliz que Don Juan e Lovelace
Não apertei ao peito desmaiando!

Ó meus sonhos de amor e mocidade,
Por que ser tão formosos, se devíeis
Me abandonar tão cedo ... e eu acordava
Arquejando a beijar meu travesseiro?

XI
Junto do leito meus poetas dormem
- O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron –
Na mesa confundidos. Junto deles
Meu velho candeeiro se espreguiça
E parece pedir a formatura.
Ó meu amigo, ó velador noturno,
Tu não me abandonaste nas vigílias,
Quer eu perdesse a noite sobre os livros,
Quer, sentado no leito, pensativo
Relesse as minhas cartas de namoro!
Quero-te muito bem, ó meu comparsa
Nas doidas cenas de meu drama obscuro!
E num dia de spleen, vindo a pachorra,
Hei de evocar-te dum poema heroico
Na rima de Camões e de Ariosto,
Como padrão às lâmpadas futuras!

XII
Aqui sobre esta mesa junto ao leito
Em caixa negra dois retratos guardo.
Não os profanem indiscretas vistas.
Eu beijo-os cada noite : neste exílio
Venero-os juntos e os prefiro unidos.
- Meu pai e minha mãe. – Se acaso um dia,
Na minha solidão me acharem morto,
Não os abra ninguém. Sobre meu peito
Lancem-os em meu túmulo. Mais doce
Será certo o dormir da noite negra
Tendo no peito essas imagens puras.

XIII
Havia uma outra imagem que eu sonhava
No meu peito na vida e no sepulcro.
Mas ela não o quis ... rompeu a tela
Onde eu pintara meus dourados sonhos.
Se posso no viver sonhar com ela,
Essa trança beijar de seus cabelos
E essas violetas inodoras, murchas,
Nos lábios frios comprimir chorando,
Não poderei na sepultura, ao menos,
Sua imagem divina ter no peito.

XIV
Parece que chorei ... Sinto na face
Uma perdida lágrima rolando ...
Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,
Derrama no meu corpo as gotas últimas
Dessa garrafa negra ...

Eia! bebamos!
És o sangue do gênio, o puro néctar
Que as almas de poeta diviniza,
O condão que abre o mundo das magias!
Vem, fogoso Cognac! É só contigo
Que sinto-me viver. Inda palpito,
Quando os eflúvios dessas gotas áureas
Filtram no sangue meu correndo a vida,
Vibram-me os nervos e as artérias queimam,
Os meus olhos ardentes se escurecem
E no cérebro passam delirosos
Assomos de poesia ... Dentre a sombra
Vejo num leito d´ouro a imagem dela
Palpitante, que dorme e que suspira,
Que seus braços me estende ...
Eu me esquecia :
Faz-se noite; traz fogo e dois charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada ...

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://www.seculodiario.com.br/36071/17/alvares-de-azevedo-construiu-poesia-lirica-com-formas-solidas