PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 7 de maio de 2016

ÁLACRE

Com que álacre sentido terás
por mim matado?
Desde já o instante é um espoucar gratuito,
deste dar de si seu mesmo sumo,
e de ter super prazeres no caudal
desta máquina nau de loucos.

Pois, constantemente chapado,
morro um pouco para mim,
vivo mais para o nada,
convido os anciãos à festa,
dedilho um violão
com pouco esmero,
sopro ao volante do bafômetro,
entremeio um entrementes,
tenho um intermezzo de alucinações.

Oh, roga por mim um leão!
Ruge pelos outros um quinhão.
E não lastimo, não tenho
sequer anotado tudo isso,
pois estou sempre em transe.

Com que álacre sentido teremos
imorredouros ressurrectos?
Com que mais, à paz conquistada,
tenho de ás à valete
uma aposta de debrum?
Uma dor de cotovelo
às avessas?

Pois, de cantar mais alto, aos gritos,
espantei a freguesia, e uma boca
blasfema como a minha
cheira a miasma urbano,
boêmia salgada de pranto,
uma saraivada de exames
sobre o coração decomposto,
os chulos provérbios de
quando enlouqueço,

e no álacre canto, sumo de mim,
tenho pontes, queimo horizontes,
desvelo sete símbolos
de I Ching,
uma sétima sobre o sol,
dez dentes de tigre,
quinze continhas de reza braba,

uma costura bem urdida
em urzes e bambuzais,
numa casa de pau-a-pique
como casebre sem luto,
meia-água,
feliz para cacete!

07/05/2016 Gustavo Bastos

JEFFERSON AIRPLANE

Para o futuro, com a música de avião
sobre a cordilheira andina,
inesquecível.

Parei sobre o solo vocal das notas
em oitavas perfeitas,
como na sombra orquestral
dos címbalos,
e o peito retido com nuances febris
de coração.

Ah, mas passa por telepatia
tais poemas?
Corri feito louco pela avenida,
um peso galo na mão do torturador,
um faixa amarela de benquisto
estrangulamento,
uma faca límpida sobre a mão,
pronta ao ataque.

Depois, os nativos cantos de sobrados,
as toalhas manchadas de molho vermelho,
os brucutus contando vantagem,
as madeixas que deixo ao vento,
os colares de presente às amadas,
os livros de suspense diante
de um livro de alta magia,

eu, tonto de prazer com os pés no gelo,
sinto o torpor inundar a sala,
para olhar, Cordilheira dos Andes,
Crushingura, Jefferson Airplane,
inesquecível.

Paramentado, os lovers brothers sisters
coming together,
I played it very well,
and They do as well,
and They cut my hair
after the party?

Para olhar as montanhas,
carrego em mim as notas estranhas
de um banho de sal,

por todas as portas do segredo
que pulsava na cordilheira,
vi um andino imaginário
do pré-descobrimento,

batendo no avião a música
e os nós para cima
e para baixo,
como um clockwork
retinindo sua guitarra
em meus tímpanos,

como um salto mortal
pela neve sobre o cume
da cordilheira,
quando ouço Airplane.

07/05/2016 Gustavo Bastos

W.B.YEATS, O MAIOR POETA DE LÍNGUA INGLESA DO SÉCULO XX – PARTE III

“a natureza, ao fim, é o paradigma do qual Yeats subsume todas as artes e pensamentos possíveis do engenho humano”
Os poemas da grande fase de maturidade envolve agora o livro A Torre de 1928, parte dele aqui exposta nos três poemas abaixo, “Velejando para Bizâncio”, “Duas canções de uma peça” e “Entre crianças de escola”, livro que também contém o poema “Leda e o cisne”. A linguagem do mito, em todo o seu espaço de criação poética, tem na dupla face Cristo e Dioniso o interior de uma encenação em que o ato sacrificial no poema “Duas canções de uma peça” se consuma com a cena da morte de Dioniso com as simbologias do Gólgota de Cristo, e que tem ainda uma linguagem metafórica que coloca de maneira emparelhada o episódio de Paixão com o Natal, num ciclo em que há a recorrência dos fatos históricos “e nova Troia anunciará sua vinda”, num fluxo em que o mito se torna a emoção humana, quando da imaginação deste mesmo ser humano, diante do desamparo universal, cria-se todos os mitos. Os versos que começam com Dioniso: “Vi uma virgem fixar sua visão/No santo Dioniso trucidado/E arrebatar-lhe o coração do lado” encerram com Cristo: “Com a morte de Cristo o odor da chaga”. Aqui a Virgem Mãe, que carregou Jesus, também se vê diante do sacrifício dionisíaco.
Em meio ao torvelinho dos giros vorticais, o poeta se vê diante da velhice, comparável a um espantalho (“trapos sobre um bastão”) E segue nestes versos o conflito entre sensualidade e intelecto: “O peixe, o pelo e a pluma, no verão/Só louvam o que nasce e vai passar./Na música sensual veem com desdouro/As obras do intelecto imorredouro.” Isto é, a natureza é sensual, e o instinto conhece a natureza, pois é natureza, sendo o intelecto um refinamento da evolução que já de dissocia muito do ser natural. O entendimento produzido pelo intelecto não possui a essência que busca, pois na natureza dada está o sensual, e então o poeta é tentado a fugir das limitações do tempo e do espaço e a buscar o uno e o imutável.
É o que se propõe fazer em “Velejando para Bizâncio”, onde seu ideal de perfeição se transfigura nas glórias da arte bizantina, com seus “áureos mosaicos” e suas aves de ouro em “galho dourado”. Seria algo semelhante à beatitude do 13º Cone (do livro místico Uma Visão), traduzida, porém, em termos estéticos. O paraíso abstrato do “artifício da eternidade”, vislumbrado em “Velejando para Bizâncio”, ainda é um ideal, e quando há esta associação do mundo paradisíaco com a arquitetura de Bizâncio, podemos dizer que há uma homenagem da arte ao que se tem uma ideia do que seria o paraíso. Em versos como: “Oh vós, sábios de Deus no fogo santo,/Como em áureos mosaicos de um mural,/Ensinai-me a cantar”, aqui há a divindade nos mosaicos que trazem para o poeta a canção. E a natureza enfim é o paraíso, pois: “Fora da natureza nunca mais/Forma da natureza irei tomar”. É a fusão de Yeats com a natureza.
Yeats logo percebeu, entretanto, que seu ímpeto no poema de Bizâncio teria que ser equilibrado pelo fato de tal poema ter novamente dissociado o sonho da realidade, cisão incisiva e constante em toda a obra de Yeats. É essa questão que ele analisa em “Entre crianças de escola”. Nessa longa reflexão, após fazer a associação realista das devastações do tempo na pessoa da antiga amada, Maud Gonne (de cuja imagem juvenil se recorda ao olhar os rostos das crianças de uma escola que visitava), após constatar que ele próprio envelhecera e “Platão julgava o mundo um sorvedouro,/Paradigma espectral da fluidez;/Já Aristóteles descia o couro/No firme posterior de um rei dos reis;/Enfim Pitágoras das coxas de ouro/Nas cordas dedilhou por sua vez/O que estrela cantou à surda Musa:/Farrapos num bastão contra ave intrusa.” Yeats afirma aqui que o tempo não poupa sequer os grandes filósofos, os quais também buscam a essência, então parecidos, como diz o poeta, com farrapos, a aventura da Filosofia não dá conta do que o poema tenta versificar, empresa (inútil?) que dá em arte e pensamento.
O autor conclui que os nossos sonhos – sejam eles imagens de carne, como as criancinhas para as mães, sejam imagens de mármore ou bronze, como as estátuas dos santos para as freiras – são abstrações que estimulam as nossas empresas e conquistas, mas que morrem quando são dissociadas do fluxo vital que é nossa realidade. Assim sendo, a essência não se separa jamais dos fenômenos: a natureza, ao fim, é o paradigma do qual Yeats subsume todas as artes e pensamentos possíveis do engenho humano, pois este saiu da natureza com o intelecto, e tem, por outro lado, em alguns, esta nostalgia do paraíso, de uma ilha solar nos confins, que nunca nenhum homem ou mulher teve a impressão senão num delírio.

VELEJANDO PARA BIZÂNCIO

1
Este não é país para ancião.
Jovens aos beijos, aves a cantar
(Mortal estirpe), saltos de salmão,
Cavalas que povoam todo o mar,
O peixe, o pelo e a pluma, no verão
Só louvam o que nasce e vai passar.
Na música sensual veem com desdouro
As obras do intelecto imorredouro.

2
Um velho é apenas coisa irrelevante,
Trapos sobre um bastão ele é na essência,
A menos que a alma aplauda e alegre cante
Acima dos farrapos da existência;
Nem se aprende a cantar senão perante
Os monumentos da magnificência.
Sulquei por isso o mar e cheio de ânsia
Vim à cidade santa de Bizâncio.

3
Oh vós, sábios de Deus no fogo santo,
Como em áureos mosaicos de um mural,
Ensinai-me a cantar, deixando entanto
O fogo, perno em giro vortical.
Tomai meu coração: ansiando tanto,
E preso a perecível animal,
Não se conhece; e eu seja assimilado
Pelo artifício da eternidade.

4
Fora da natureza nunca mais
Forma da natureza irei tomar,
Mas forma que um ourives grego faz
Com ouro fino e fino cinzelar
E a sonolento imperador apraz;
Ou num galho dourado hei de cantar
Para a nobreza de Bizâncio ouvir
Do que passou, ou passa, ou há de vir.

DUAS CANÇÕES DE UMA PEÇA

1
Vi uma virgem fixar sua visão
No santo Dioniso trucidado
E arrebatar-lhe o coração do lado,
E deitá-lo na palma de sua mão,
E carregá-lo a palpitar depressa;
E as Musas se puseram a cantar
O Magnus Annus a desabrochar,
Como se um Deus morrer fosse uma peça.

E nova Troia anunciará sua vinda,
Linhagem nova ao corvo irá nutrir,
De novo a proa de Argo há de partir
Por bugiganga mais vistosa ainda.
Pasma, Roma Imperial largou então
As duas rédeas da paz e da querela,
Quando a virgem ardente com a Estrela
Chamou da fabulosa escuridão.

II
Da mente escura do homem apiedou-se,
Passou aquele cômodo e desceu
Em meio a um torvelinho galileu;
A luz de estrelas babilônia trouxe
Informe e fabulosa escuridão;
Com a morte de Cristo o odor da chaga
As disciplinas dóricas apaga
E apaga a tolerância de Platão.

Tudo aquilo a que os homens dão valor
Dura um momento apenas ou um dia.
Ao amor o prazer do amor esfria,
Queima o pincel os sonhos do pintor;
À sua glória e ao seu poder consomem
A voz do arauto e o passo do soldado:
O que à noite flameja é alimentado
No coração todo resina do homem.

ENTRE CRIANÇAS DE ESCOLA

1
Na sala de aulas a indagar passeio;
Segundo a freira idosa, os escolares
Fazem continhas, cantam no recreio,
Têm história, leituras exemplares,
Cortam, costuram ... tudo com asseio,
No modo mais moderno. Seus olhares
Seguem curiosos e com atenção
O homem público risonho e sessentão.

2
Penso em corpo ledeano, que pendia
Sobre as brasas ... na história que ela urdiu
De dura repreensão, ou ninharia
Que em tragédia mudou dia infantil ...
E nossa dupla essência se fundia
Numa esfera de apego juvenil,
Ou, na imagem platônica de noivo,
Formava a gema e a clara do mesmo ovo.

3
E lembrando esse ataque de ira ou dor
Me indago, a olhar para esta e aquela criança,
Se ela na infância teve igual vigor
(Até filhas do cisne têm na herança
Um quê de qualquer bicho remador)
E a mesma cor nas faces e nas tranças;
Então meu coração fica fremente:
Ei-la criança viva à minha frente.

4
Vejo-a flutuar como é neste momento ...
De mão quatrocentista foi nascida,
Pálida como alguém que bebe o vento
E tem apenas sombras por comida?
Mas se a plumagem rica não ostento
Dos ledeanos ... Não mais! Melhor na vida
Sorrir a quem sorri, que assim eu talho
Um tipo confortante de espantalho.

5
Que jovem mãe, ninando criatura
Traída pelo mel da geração
E que dorme e que grita e se tortura
Conforme a droga ou a recordação,
Diria o filho, visse-lhe a figura
Com sessenta ou mais anos na expressão,
A paga para a dor do nascimento
E as incertezas de seu crescimento?

6
Platão julgava o mundo um sorvedouro,
Paradigma espectral da fluidez;
Já Aristóteles descia o couro
No firme posterior de um rei dos reis;
Enfim Pitágoras das coxas de ouro
Nas cordas dedilhou por sua vez
O que estrela cantou à surda Musa:
Farrapos num bastão contra ave intrusa.

7
A freira, como as mães, adora imagens:
Ante a candeia estas não têm, porém,
A animação da maternal miragem
E no mármore ou bronze se contém.
No entanto, empolgam ... Oh Presenças que agem
Sobre paixão, piedade e amor também;
Oh símbolos das glórias altaneiras;
Da empresa humana inatas zombeteiras;

8
O labor brota e dança onde o prazer
Da alma não fere o corpo; jamais onde
O óleo da meia-noite dá saber
Ramelento, e a beleza em dor se esconde.
Oh castanheira firme a florescer,
Será você botão, ou folha, ou fronde?
Corpo entre sons, oh chispa repentina,
Como apartar da dança a dançarina?

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/28599/17/wb-yeats-o-maior-poeta-de-lingua-inglesa-do-seculo-20-parte-3



sexta-feira, 6 de maio de 2016

CÂNCER

O câncer, pele vítrea
do desassossego,
é um poema.

A rotina de cortar palavras
é uma arte de desmontar
poesia.

América:
meu continente todo meu!

A AIDS, osso duro e carcomido,
é um poema.

Pois de Filosofia terás a bruma
escandida como as setenta luas
de Saturno.

06/05/2016 Gustavo Bastos


BOMBINHAS DOCES

Pele contra pele, os poemas descendo
nesta grande garganta da estrofe.
Uma bomba que cai sobre
Hiroxima.
Uma bomba que cai sobre
Nagasáki.

Pelos arrepios e cerveja.
Não me sinto mal,
não me sinto bem.
Te tenho sem querer.
Ademais, ademanes
são intelectos possantes
como um motor.

Os poemas decaio
em quântica,
bomba contra bomba,
dentro da máquina
de fazer
doenças.

06/05/2016 Gustavo Bastos

TEORIA DO DIREITO

Ventila o corpo, deste demônio
engarrafado, um pacto?
Pois de mistério é mister
a flor.

Por encrencas festivas o festival
de música, um pouco de Woodstock,
Stamping Ground?

Como o grau esquisito do poeta,
este grau de mente esquiva
que depois é só fantasia.

Como poeta, no alto da torre,
me jogo no caudal,
qual Ofélia.

E venho, as espadas contínuas,
cortar teus ventres mutilados,
abrir as pestanas,
descosturar com canivete,
vomitar inglês
sobre o assoalho,
pleitear direitos inalienáveis
sobre os mesmos ditos
que escrevia.

06/05/2016 Gustavo Bastos

BOM COCHILO

A quem, mais do mármore, os braços
torneiam, volteiam?
Como um passo duplo, corriqueiro.
Me dá a dama de espadas,
soturna, ou que dia estará
a janela olhando detrás ou
para fora?

Fora, como eu estou por todo
o continente,
bordeando a reborda musical,
tomando um calmante,
um frasco de perfume.

Oi? Como estás?
E quando esta carta pode estourar?
Quando explodo?

Mais do aço, consome o cigarro
como uma serpente de fumaça.
Mais do mesmo, o arqui-diabo
de mins sem fins,

como era hora diurna, uma passada
pela festa bêbada,
um vidro de veneno na boca,
para dormir.

06/05/2016 Gustavo Bastos

quarta-feira, 4 de maio de 2016

HASTEADO DA FLAMA

Flama bendita, assim urdida,
como brocado translúcido,
para a manta vestir
tal sacerdotisa.

Flama ao som do estalo do corpo,
enxuta, como um lençol de rio,
ao abrir da noite, como o vinho,
e és solar, como na fotografia.

Entro nas casas mortais,
o corpo mortalmente plácido,
a flama se estende sobre
o desenho da geografia,

Ao som mais estridente da chama,
crepita a orquestra de carvão,
e a flama se queima,
na revolta da guerra.

04/05/2016 Gustavo Bastos

ILHA SOLAR DE RIO

Rio que me dá a vida, como sóis
entram no coração as asas do riso,
e os doentes se encantam com faróis
de que o poema é contrito.

Rio bruma e lua de prata,
como o cão manso da pintura,
que mais o pranto mata,
e se refaz em paz de urdidura.

Por que, rio pranto e fábula?
Como cão bravo rosna na cara,
e a mente diurna sai em azáfama,
na flor dita inscrita na mata.

Como quer me banhar, rio manso bravo?
Que sol é mais vigoroso, oh dia?
É o meu rio silencioso e calmo,
bravo no sol como é a ilha.

04/05/2016 Gustavo Bastos

ATAVIOS DO PEITO DERRAMADO

No atavio de minhas canções, um mar se abriu
de frente ao penhasco, falésia do sol com ritmo
de bruta pedra, que ao meu descanso sob o sol
entrou de súbito como uma luz que cega ao pranto,
e os dias que passei no caldo do litoral, em balneários
de oceanos vários, veio como o lenitivo de que sonhou
a pena mal ajambrada que trabalha como talha,
e a música chegou ao seu termo com o peito inchado
de coisas nobres que o coração derramou.

04/05/2016 Gustavo Bastos

ENTRANDO NA CIDADE

Pensando, entrei em colapso.
Que morada ressente
de um conforto?
Em termo abrasivo, em voz vetusta,
o austero estoico prende-se
ao impassível.

Dentro do grito, o beco é atravessado
de ratos, girândolas do outro lado,
na praça da felicidade, dão vivas,
e os ratos do beco correm
à destoada amplidão
do bairro,

oh fortuna de que me empenho,
não temas a espada,
o canto rubro desfalece
em riso,
e os morfemas, silêncios da forma,
fazem em verso a imago
que dá o limite e a proporção
dos magos de antanho,

como o céu é uma força motriz,
a cidade cinza, escurecida,
de ratos e vivas,
girândolas na noite plena,
como um campo de batalha,
fazem da burocracia dos prédios
uma nota de dinheiro,

sim, os carimbos e nomes próprios,
o servente de canções prazenteiras,
o homem operário das cordas esticadas,
o plano todo da arquitetura,
o sonho genial da engenharia,
e os bilhetes premiados
do joguete de febres hostis,

o carrasco, homem de fibra,
mata os palhaços da corte,
e os ratos agora se encantam,
foguetes espoucam
na noite estrelada,
como um plenilúnio
no páramo,
como um leite vigoroso
do arrebol,

e os vinhos melífluos
com cântaros que ressoam
as buzinas do coro dos corneteiros
no amplo dilúvio
de festividades,

como é bom ser poeta
em tempos rarefeitos,
como ser bom poeta
faz bem ao coração!

04/05/2016 Gustavo Bastos


O MARCO ZERO

No canto primeiro:
quando Heráclito nos mostrou
o pólemos,
dos contrários
em harmonia,
e o poema de sol.

Dentro de teu fogo primordial
está a verdade,
com o poema, tal
registro se torna
pedra filosofal.

E os brutos, deste vasto campo,
como reencarnam?
E os delicados, deste turno cansado,
como renascem?

De Buda, Gautama,
o Nada.
Do Ocidente o todo pensado
se coloca em muitas faces,
um diadema é o polígono
da vigília,
panóptico,
ciclópico,
olhos que tudo veem,
cegos sem ver
sempre o nada.

04/05/2016 Gustavo Bastos


PÃES TORRADOS

Passo pelo vão, não muito açodado,
o que o mestre, de sua sombra,
me ensinou?

De verter verso, com um candelabro,
e a mão visível pela tormenta.

Quando das grandes guerras
o sangue corria,
meu cachorro cego latia
com dor de garganta,
meu gato de rua assobiava
canções felinas,
e o leão desdentado de minha aquarela
rugia tinta vermelha.

Ora, que são horas passadas,
este de ter para si
o turno diuturno
de insônia,
o dia vívido quando se dorme
como anjo,
a noite vítrea que corrompe
o bêbado,
os passos preguiçosos
da tarde viciada.

Não muito açodado, com o figurino
bem encorpado, e os braços bem
torneados, com os pés lúcidos.

Quando no tempo de paz,
aqui está o verso plácido
que ressurge na escritura,
e seus tons pastéis e bobos
como um acorde dissonante,
em quinta diminuta
de terror e vinho,

no tempo de paz que nunca chora,
no tempo plácido sem o grito,

a ver da caverna sem sol,
a luz oculta.

04/05/2016 Gustavo Bastos

segunda-feira, 2 de maio de 2016

DEAD KENNEDYS, O FENÔMENO QUE DIVULGOU O NOVO PUNK ROCK CALIFORNIANO

DEAD KENNEDYS, O INÍCIO
Fresh Fruit For Rotting Vegetables foi um dos mais importantes discos a emergir do punk rock, um dos poucos a genuinamente transcender o gênero, ampliando convenções musicais e líricas enquanto estabelecia um novo paradigma (ou vários), este disco não é o London Calling, não é o Never Mind The Bollocks e nem é o disco The Ramones, ele é superior a esse elogiado trio, principalmente por causa da inteligência das letras e da música que o sustenta, que absolutamente cativou e capturou atenções nos idos de 1980, e a sobrevida do ábum é uma realização extraordinária para uma banda que praticamente não teve nenhuma execução em rádio e só lançou discos por selos independentes, nada de EMI, CBS ou Warners, eles não apenas existiam fora do mainstream, como também foram a primeira banda daquela estatura a incomodar e atacar a própria indústria musical.
Os Dead Kennedys colocaram muita coisa em movimento, eles foram parte integral da formulação de uma rede alternativa americana que permitiu que bandas iniciantes fizessem turnês para além de seus próprios quintais. O selo de gravação que eles criaram, a ainda próspera Alternative Tentacles, se vangloria por ter um catálogo desafiador de música nos extremos para agradar o gosto disfuncional de qualquer ouvinte que se possa imaginar. O DNA do punk, por sua vez, segue o quadro negro de Jack Black em Escola de Rock, que traça uma linha reta: Pistols-Ramones-Clash-Dead Kennedys. O triunvirato mencionado acima – Pistols, Clash, Ramones – foi assunto de mais de cem livros publicados, porém, nunca se escreveu com profundidade sobre os Dead Kennedys, e eles também nunca foram prestigiados da mesma maneira, apesar de Fresh Fruit ter vendido mais de 250 mil cópias só na Europa. A culpa é só deles, na verdade. Eles nunca “progrediram” para fazer um disco rock`n`roll, e o que eles colocavam no disco era mais violento perante a percepção pública e crítica. “Claro, eu queria que a banda durasse”, diz Biafra. “Mas algumas das melhores bandas são aquelas que saem de seus caminhos para chocar e incomodar as pessoas, e não só para afagar e agradar”. E a história dos Dead Kennedys dá crédito a esta afirmação.
FRESH FRUIT FOR ROTTING VEGETABLES
Fresh Fruit chegou num momento em que críticos e formadores de opinião tinham se distanciado do punk, clamando pela primazia por sua descoberta, mas desdenhando de sua trajetória subsequente – a escola de pensamento que sugere que a arte é arruinada no momento em que é consumida por mais do que uma pequena elite cultural. O Reino Unido tinha três jornais musicais especializados demandando uma corrente contínua de novidades semanais. Na virada da década, o gênero New Romantic era a última moda para aqueles preocupados com estilo, o heavy metal vinha sendo readmitido à sociedade educada para aqueles despojados de tais preocupações e o punk era amplamente considerado uma vítima da mortalidade infantil. Mas Fresh Fruit veio para confirmar o potencial do punk para se posicionar como algo além das armadilhas da moda e da falsa rebeldia.
O debate sobre a etimologia do punk – se foi originada no CBGB`s ou na Faculdade de Artes St.Martin – é extremamente estúpido, mas é indiscutível que, no final dos anos 1970, o Reino Unido tinha dado forma ao discurso. No entanto, na virada dos anos 1980, o brit-punk começava a se esvaziar. Temas e estilos eram conflitantes. O Crass tinha politizado o punk em uma refutação extrema ao The Clash, que tinha mudado de rumo para luzes brilhantes e estádios, e os Pistols haviam se implodido. Como o próprio Biafra comenta, “o Crass estava tentando fazer os punks pensarem e agirem além do punk, e entender que se sentir bem em comprar um disco chamado Sandinista na realidade não ajudava ninguém na Nicarágua”. Mas com toda sua inteligência e sinceridade, o Crass era abrasivo demais, austero demais para fazer um disco com peso similar. O punk, ao menos no Reino Unido, tinha se tornado lamentavelmente sem humor e sem valor; simplesmente óbvio demais.
Como Al Spicer escreveria, quando “California Über Alles” (single de estreia do Dead Kennedys) foi tocado pela primeira vez por John Peel: “Parecia diferente de tudo que havia escutado antes na cena punk britânica e foi refrescante e acolhedor como o som das trombetas da cavalaria chegando para o resgate”. Fresh Fruit oferecia uma combinação perfeita de humor e polêmica amarrada a um suporte musical que era tão raivoso e criativo quanto os devastadores ataques verbais de Biafra. Aquelas letras eram reveladoras e cruelmente precisas. Mas não teriam funcionado se a base sonora não fosse uma avalanche tão barulhenta, o combustível para a chama viva de Biafra. E se conseguirmos deixar o bate-boca de lado por um momento, podemos nos lembrar de como o Fresh Fruit For Rotting Vegetables era um disco legal, engraçado e selvagem.

SÃO FRANCISCO
São Francisco era um caldeirão natural para o punk. Durante anos, a cidade foi sinônimo do pensamento liberal, com a voz dos direitos dos gays, feministas e lobistas ecológicos e, nos anos sessenta, se tornou um ímã para os Beats e o acampamento de base para o Verão do Amor, um refúgio para os esquisitos, hippies e excêntricos, assim como para pensadores racionais de esquerda. Era natural que, depois de Nova York e junto com sua vizinha Los Angeles, ela se animasse com o espírito do punk. São Francisco era uma cidade que Paul Kantner, do Jefferson Airplane, certa vez descreveu como: “177 quilômetros quadrados cercados pela realidade”. Assim, o punk de São Francisco transformou excentricidades pessoais em algo positivo e ridicularizou a arrogância daqueles que acreditavam ter autoridade sobre os outros, pois havia na cidade uma valorização da individualidade, da criatividade pessoal e da autoexpressão. E um dos mitos sobre o punk é de que seu início foi efetivamente um big bang; uma explosão repentina lançando no ar um monte de caras ferozes atirando para todos os lados, porém, na verdade, o punk apenas revelou aqueles que já estavam por aí mas eram descontentes ou considerados despreparados, que esperavam que acontecesse algo do qual pudessem fazer parte, algo que abraçasse os deslocados e outsiders.
O Dead Kennedys chegaria, em relação a São Francisco e o punk feito na cidade, como parte de uma terceira onda, encabeçada pelo The Offs, que combinava guitarras com chiado de serra, barulhos robóticos ao estilo do Velvet Underground e baixo dub. Portanto, o choque de se escutar o Dead Kennedys, pelo menos fora de São Francisco, tem que ser relacionado a esse contexto único, o que fez “California Uber Alles” e “Holiday in Cambodia” soarem mais barulhentas, sarcásticas e musicalmente rancorosas que a prole de Lydon (Sex Pistols) e Strummer (The Clash) foi o resultado de uma cena amplamente fechada aos olhares externos, com o ímpeto de fazer melhor e superar as performances e ultrapassar qualquer limite, a cidade não só acolheu o punk, mas também acelerou o processo de personalizá-lo.
DEAD KENNEDYS, A FORMAÇÃO DA BANDA
Ray era o único nativo de São Francisco na banda (embora Bay Area), um músico experiente, que havia crescido com a coleção de Duke Ellington de seu pai, sendo influenciado pelo estilo de tocar guitarra de Scotty Moore nos primeiros discos de Elvis, assim como pela fase Syd Barrett no Pink Floyd. Foi assistindo a um show desta última banda no Winterland, em outubro de 1970, aos 12 anos, que ele se convenceu a pegar uma guitarra. Mais tarde, ele se juntou aos Ohio Players quando o rock setentista começou a correr atrás do próprio rabo. Ele ficou imediatamente animado com a chegada dos Ramones e dos primeiros discos de punk inglês que escutou. Ray então queria montar uma banda, mas estava determinado que a musicalidade de sua nova banda deveria ser estimulada e não amarrada à explosão punk, e instintivamente ele rejeitou os dois acordes e o mantra da verdade do punk inglês.
Diz ele: “Originalmente, quando coloquei o anúncio para montar a banda, uma das imagens do punk era a de que você não deveria saber tocar seu instrumento, o que é meio que um mito. Quando coloquei o anúncio, eu disse que queria começar uma banda punk, mas que as pessoas precisavam saber tocar”. Foi quando Eric Boucher, nascido no Colorado, e que em breve seria conhecido pela alcunha de Jello Biafra, respondeu ao anúncio da Aquarius. O próximo a responder ao anúncio foi Klaus Flouride (também conhecido como Geoffrey Lyall), mais ou menos um mês depois que Biafra e Ray tinham dado o pontapé inicial na ideia de ter uma banda. Assim como Ray, ele era um músico de meio período, e já tinha tocado em bandas em Nova York e Boston durante vários anos.
Em sua cidade natal, Detroit, Klaus costumava gravar em fita os shows de alguns lendários artistas da cidade. "Na verdade eu gravei, bem no início, bandas como MC5 e Stooges, no Grande Ballroom” ele diz. “Eram fitas bem cruas, mas muito boas”. No entanto, toda sua coleção de fitas cassete foi roubada de seu porão durante um blecaute. “Tenho certeza que as levaram a uma loja de penhores e o cara pegou uns quatro mangos por todas elas. As fitas provavelmente foram apagadas e, quem quer que as tenha, gravou a coleção do Fleetwood Mac por cima”.
Quando Klaus foi até a garagem de Ray para o primeiro ensaio, ele diz: “A primeira coisa que ele (Ray) perguntou foi se eu sabia tocar ‘Peggy Sue’. Conhecia aquela música inteirinha, tinha sido uma das primeiras coisas que aprendi na guitarra. Era parecida com a progressão de acordes do punk. Ray queria tocar alguma coisa que tivesse aquela sonoridade, sem que fosse uma música dos Ramones que você tivesse decorado – ‘Não vamos para a garagem tocar “Sheena Is A Punk Rocker”. Vamos para a garagem e ver se você pode tocar as origens de “Sheena Is a Punk Rocker”. Lembro-me de uma conversa por telefone quando eu mencionei minha influência dos Residents e Devo. A maioria das pessoas dizia simplesmente Sex Pistols e Ramones. Isso mostrou que tínhamos uma direção para fazer isso soar como algo que se destacaria e não seria só uma sonoridade genérica”.
DEAD KENNEDYS NA ESTRADA E A DIFUSÃO DO PUNK
E o Dead Kennedys faz então sua estreia ao vivo em 19 de julho de 1978 abrindo um show da banda The Offs, no Mabuhay Gardens de Ness Aquino. Espremido entre uma fileira de espeluncas de strip-tease e com agenda controlada por Dirk Dirksen, o local é colocado lado a lado com o CBGB`s em Nova York, o Roxy em Londres ou o Masque em Los Angeles, como um dos pontos-chave da história do punk. E nos Dead Kennedys, já havia chegado o baterista Ted que, como todos os outros músicos da banda, tinha experiência. Ted diz, depois de responder ao anúncio de Ray na Aquarius Records: “Nessa época, havia muitas bandas realmente ruins, pessoas procurando outros músicos. Muita gente estava começando. Naquela época, todo mundo que sabia tocar dois acordes estava tentando formar uma banda. Fiquei agradavelmente surpreso quando fui fazer o teste e vi que Ray e Klaus eram ótimos músicos”.
E pelo fato de nenhuma grande gravadora contratar bandas punk americanas, coisa que durou de 1978 a 1985, quando o Hüsker Dü assinou pela Warner, e mesmo assim com uma mudança substancial de sua sonoridade, diante deste exílio que muitas bandas de São Francisco passaram, “sem acontecer”, o Dead Kennedys acabou criando seu próprio selo, sob o nome de Alternative Tentacles, pois existiam poucas opções, não houve interesse de grandes gravadoras pela banda até que Fresh Fruit tivesse vendido bem na Inglaterra. Nessa época a cena independente do Reino Unido estava bem estabelecida, com o Rough Trade, Chiswick, Beggars Banquet e outros selos liderando o páreo, mas não havia um único representante nos Estados Unidos, e a primeira era do punk independente em São Francisco havia começado.
A 415 Records (do dono da Aquarius, Chris Knab, e do produtor Howie Klein) tinha laços financeiros com Bill Graham, quase universalmente desprezado pelos punks, e seria, em breve, adquirida pela Columbia de qualquer forma. Após lançamentos iniciais do The Nuns e do Mutants, ela se afastou do punk para se concentrar em artistas “new wave” como Romeo Void. “Howie Klein, com a Sire Records, era o cara que promovia bandas new wave e de gravatinhas”, lembra Ray. “Mas isso era anti-punk. E ele era contrário a nós desde o início. Ele queria promover bandas do tipo gravatinhas, “My Sharona” e bandas como o Blondie. Não me entenda mal, o Blondie era uma ótima banda. Não estou dizendo que new wave é ruim. Mas Howie Klein pensava que o punk nunca daria em nada nos Estados Unidos e que precisava promover mais artistas new wave. Agora, ele fala como se estivesse ao nosso lado o tempo todo, nos ajudando – ah, a hipocrisia! Mas ele estava dizendo para baixarmos o tom de nossas músicas e deixá-las mais new wave. Agora, ele diz que nos apoiava 100%”. Biafra tem uma visão mais caridosa de Klein. “Ele não odiava o punk, ele estava desesperado para encontrar o novo The Clash. Mas os Dils o rejeitaram, então ele ficou com os Red Rockers. Um cara da indústria, sim, mas foi ele quem convenceu a Sire a lançar “Cop Killer” do Body Count (projeto de fusão rap-metal de Ice-T) e fez a Warner deixar o Ministry fazer Land of Rape & Honey”.
O SOM DOS DEAD KENNEDYS
“California Über Alles” foi lançada em junho de 1979 e era uma criação totalmente caseira. A música foi moldada em torno do espectro do sotaque do governador (da Califórnia) Jerry Brown. Brown era um político ambicioso com uma ostensiva política de esquerda, que incluía a defesa da “economia budista”. Inicialmente Biafra o considerava tão perigoso quanto Nixon. Outras referências a “zen fascistas” na música remetem à adolescência de Biafra em Boulder, onde o idealismo dos anos 1960 se tornou a ganância dos anos 1970, fantasiado com o falso misticismo hippie. Em essência, é uma herança espiritual de “Who Needs The Peace Corps” do disco We`re Only In It For The Money do Zappa, a música que ridicularizava os hippies do distrito de Haight-Ashbury, em São Francisco. O lado B, “Man With The Dogs” retratava outro personagem de Boulder, cuja rotina diária consistia em levar moradores da cidade à loucura ao batucar e olhar fixamente em seus olhos; exatamente o tipo de “estranho desocupado” que costumava fascinar Biafra. O fim de “Man With The Dogs”, um tipo de garage psicodélico falado dos anos 1960 com o pedal Echoplex de Ray enfiando uma sequência repetida de acordes em indiferença sonora, era uma primeira indicação de que a banda não iria se limitar ao punk tradicional.
E a imprensa logo atentou ao single California Über Alles, com a Sounds dizendo que era como “punk Wagneriano produzido de maneira tão suja quanto a bunda de um urso”. “Tudo se encaixou por acaso. Todos estavam no lugar certo e na hora certa. Primeiro, com “California Über Alles” como single, e então, com Biafra se candidatando à Prefeitura, o que era um enorme chamariz. Meio que nos tornamos a banda punk número um de São Francisco, apesar de que éramos, na verdade, da terceira geração”. Biafra se mantém firme de que sorte e acaso foram chaves para que o DK se tornasse a principal exportação punk da Califórnia. “Era algo com que precisávamos ser bem cuidadosos em nossa cidade natal. Aqui, tivemos essa sorte aleatória que iludiu os Avengers, Dils, X, Weirdos e vários outros. Sempre tentei enxergar isso e continuar me lembrando de que não era necessariamente por sermos a melhor banda daquela época. Era sorte, pura e simples”.
O Dead Kennedys continuou a tocar onde conseguisse, insistindo em shows para menores e agendando por conta própria, no esquema faça-você-mesmo. Como Michael Azerrad apontaria mais tarde no livro Our Band Could Be Your Life, foram os canadenses do DOA e o DK que “se tornaram os pioneiros do circuito de turnês punk, deixando um rastro através dos Estados Unidos que, até hoje, é seguido por outras bandas”. Ou, como Greg Ginn do Black Flag diz no mesmo livro, “fizemos muito network com essas bandas, compartilhando informações”. Assim, o Black Flag abriria para o Dead Kennedys no Mabuhay Gardens em 10 de outubro de 1979; um show que Joe Nolte registraria em seu diário. “A única coisa que eu sabia sobre o Dead Kennedys era que seu vocalista, Jello Biafra, estava concorrendo a prefeito. Os outros três integrantes da banda subiram ao palco parecendo tão assustadores quanto os Crickets. Então, Jello deu um pulo e o pandemônio começou. Aqueles filhos das putas eram DEMAIS – uma das melhores bandas hardcore que eu vi por um bom tempo. Jello poderia ser muito hostil e caía sobre o público à la Darby (Crash, dos Germs). Mas, ao contrário de Darby, ele NUNCA perdeu o controle, NUNCA parou de cantar ... Caos controlado”.
UMA NOVA GERAÇÃO DO PUNK SURGE
É importante lembrar que a fama do DK tinha muito a ver com a recepção fora dos EUA. Numa época em que muitos críticos americanos tinham tendências anglófilas, isso significava que o DK tinha uma abertura internacional que pares como DOA, Black Flag e Minor Threat não podiam, inicialmente, alcançar. O burburinho ao redor da banda no Reino Unido após o lançamento de “California Über Alles” era, portanto, bem-vindo. No entanto, houve um certo temor em relação ao surgimento de uma banda punk altamente politizada da “ensolarada” Califórnia, em uma época na qual os formadores de opinião haviam concluído que o punk estava em estágio terminal – ainda que essa nunca tenha sido a visão de Biafra. “havia toda uma geração agitando logo abaixo da superfície; e essa geração explodiu no ano seguinte. As bandas do selo do Crass, o Discharge, as bandas do selo Riot City e outras, todo mundo estava logo abaixo da superfície. Mas a imprensa musical britânica não estava interessada e não dava atenção a elas”. Havia um bom motivo para isso. Alguns dos lançamentos do Crass Records eram extraordinários e o Discharge tinha, realmente, elevado as apostas; muito do restante era bobeira.
O SOM PUNK NOS ESTÚDIOS
Nesse meio tempo, a banda se ocupou com um segundo single e buscou se superar. “Holiday In Cambodia” cristalizou o que eram os Dead Kennedys. No seu coração existe sarcasmo de padrão olímpico sobre a complacência do centro dos Estados Unidos e sua geração focada no próprio umbigo, traçando uma linha direta com a injustiça de sua política externa. Mas a construção é desafiadoramente não-linear. A música transmite um congruente senso de perigo e repulsa. O arrepiante zumbido do baixo de Klaus cria o ambiente para a guitarra de Ray, entrando e saindo do ritmo, antes de rasgar uma série de frases afiadas. Aquela sensação de ameaça é atribuída por Ray ao uso de uma “quinta diminuta” – alcançada ao tocar uma nota quinta dissonante com a remoção de meia oitava na sequência de acordes. É uma técnica comum tanto no bebop jazz quanto no hard rock, mas também conhecida como “intervalo do diabo” (diabolus in musica). Músicos medievais eram enforcados por usar essa técnica: padres acreditavam que ela destruía o tecido e a consonância de uma oitava perfeita. A conclusão da música é acalorada, toda a peça é perfeitamente arranjada. “Não percebi isso na época”, diz Klaus, “mas a linha do baixo é composta por, basicamente, duas coisas. Tem a coisa do Velvet Underground de ter lá a corda mecânica, como em ‘Venus In Furs’. Fiz essa coisa mecânica constante. Era essa sensação e também um pouco de Led Zeppelin. Acabei de perceber que o que eu fiz, inconscientemente, era um riff acelerado do Zeppelin e o joguei contra uma coisa mecânica. Em música, nada é completamente original, a não ser que você entre no terreno de John Cage. Eu estava simplesmente pegando minha raízes e transformando-as”.
“Era muito difícil encontrar um engenheiro de gravação que quisesse jogar fora seu treinamento de estúdio dos anos 1970”, reflete Biafra, “e toda a mentalidade de estúdio daquela década, que tudo precisava soar limpo, abafado e meloso. Se não, você nunca teria o novo Eagles ou o novo Electric Light Orchestra! Muitas das pessoas que fizeram os primeiros singles punk estavam aprendendo como gravar aquele tipo de música alta e ardente por tentativa e erro. Poucos, como Geza X, estavam usando o que haviam aprendido diretamente no mundo dos estúdios para fazer um single punk com um som mais cheio e mais desagradável que alguns de seus pares. Mas muitos dos engenheiros, na verdade, brigavam com as bandas a respeito do som que elas queriam. O que torna ainda mais irônico que algumas das bandas retrô dos últimos dez anos adaptaram suas guitarras e amplificadores para soarem como os singles punk mal gravados do final dos anos 1970”.
E Fresh Fruit For Rotting Vegetables foi gravado no Mobius Music, em São Francisco, e a banda escolheu o estúdio de Oliver DiCicco em Noe Valley, que havia sido recentemente convertido para 16 canais. Quanto a Ray e Klaus, temos o primeiro como um indiscutível ótimo guitarrista, com uma inacreditável paleta e sonoridade distinta, e o segundo como alguém com um toque altamente pessoal, com suas linhas de baixo controladamente harmônicas, independente da brutalidade do fundo musical, enquanto seu talento como arranjador é uma faceta comparativamente não reconhecida de Fresh Fruit. Todo o disco soava diferente de qualquer coisa que o precedesse. Havia elementos o suficiente que eram claramente “punks” para localizá-lo dentro deste gênero, mas, vendo de outro ângulo, ele soava e passava uma sensação diferente. “Eu diria que, provavelmente, isso é responsabilidade ou tem mais a ver com Biafra!” sugere Ted. “Não comprometer a música e não se transformar em uma banda de reggae ou ter aquele tipo de influência pop tipo do The Clash, mas se manter firme. É uma coisa que eu respeito no cara: essa é a banda e esse é o som e não vamos ser algo que não somos para ficar mais comercial”.
“O lance de Fresh Fruit”, nota Ray, “é que ele tem uma variedade de músicas. Há músicas hardcore como ‘Drug Me’, neo-psicodélicas como ‘Holiday In Cambodia’, mais artísticas como “Ill In The Head” e músicas pop como ‘Kill The Poor’. Todos gostávamos de diferentes tipos de música. Nem toda música precisa ser política. Nem toda música punk precisa ser política. E não precisa ser séria. Essa é uma das alegrias do Dead Kennedys. Tem muita coisa bem humorada. Não estávamos realmente dizendo para matar os pobres – era uma sátira”. E o disco foi mais bem sucedido do que qualquer um poderia prever. Em 1980, foram vendidas cerca de 30.000 cópias no Reino Unido e entrou no Top 10 da Finlândia, Espanha, Portugal e Austrália. Foi o primeiro disco clássico de punk americano da geração pós-CBGB`s, junto com o Damaged do Black Flag, um ano mais tarde.
LEGADO
Atualmente, Fresh Fruit, o disco punk mais musicalmente complexo já lançado, segundo a revista Mojo, e, sem dúvida, o mais engraçado, agressivo e cerebral, teve uma influência colossal. Hüsker Dü, Dinosaur Jr., Pixies, Nirvana e, mais recentemente, todo mundo, desde Green Day e Offspring a Massive Attack, Prodigy e Franz Ferdinand, absorveu e reconheceu sua influência. “Criou um modelo para nós”, diz Klaus. “O disco soava diferente de tudo feito naquela época, que era o que estávamos buscando. Não estávamos tentando necessariamente soar melhor, mas simplesmente diferente. Queríamos ter uma assinatura sonora e o disco criou isso. Não éramos necessariamente um padrão para que outros imitassem, nem para que nós mesmos imitássemos a sonoridade de Fresh Fruit. Havia um monte de bandas que soavam como os Sex Pistols e um monte de bandas que soavam como os Ramones. Não existiam muitas bandas que tentavam soar como os Kennedys”. “Daqui a 50 anos”, diz Ray, “quando todos já estivermos mortos, a única coisa que realmente importará será a música e o que sai do disco. Todo o resto será secundário. O interessante é que Fresh Fruit está mais próximo do início do rock and roll, como as gravações da Sun e Elvis Presley, do que de dias de hoje. É meio surpreendente a enorme variedade musical entre 1955 e 1980”.
(obs: o texto é um resumo adaptado do livro Dead Kennedys de Alex Ogg)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com





domingo, 1 de maio de 2016

W.B.YEATS, O MAIOR POETA DE LÍNGUA INGLESA DO SÉCULO XX – PARTE II

“Como contraponto de seu apreço pela aristocracia, estava seu interesse pelo povo simples”

Dando continuidade à reflexão e demonstração da poesia de W.B.Yeats, temos então essa transição desta obra do poeta que começa no mundo de sonho e perfeição e que vai pousar, de modo nada suave, no mundo real de conflito e responsabilidades, criando novas demandas para o seu processo criativo como um todo, o que não o furtará, mais adiante, de criar seu próprio mito esotérico, como na obra “Uma visão”, publicado em 1925. O caminho realista, “desencantado”, já pode se ver na produção de Responsabilidades em 1914, como no poema “A Manta”, que está no livro, e que já nos leva, mesmo em metáfora, já não mais exultante de simbolismo, mas calcada na sua experiência de vida, e que neste poema aparece como suas “responsabilidades estéticas”, abandonado de vez sua cepa original de idílio e sonho (deixada de bom grado a seus imitadores), e que floresce em um estilo renovado de simplicidade e precisão, sem atavios e penduricalhos comuns à forma metafórica fetichizada dos simbolistas, entrando de fato no mundo moderno com uma propriedade até debitada a esta habilidade anterior, mas com sua orientação para a economia de imagens em função do real e não mais da enunciação puramente metafórica. “A Manta” é a ruptura oficial do poeta Yeats com seu estilo inicial, começando uma nova fase de sua produção criativa.
E tal virada radical pode ter causado uma impressão equivocada em alguns de seus leitores como uma secura ou ressecamento de sua seiva poética, o que era um erro, pois Yeats estava avançando com seu trabalho para além das formas estanques de uma poesia que ficaria datada ao século XIX, e inaugurando a sua linguagem para o século novo do XX, um despojamento necessário da expressão, uma certa amargura que beneficiará, no entanto, um tipo de poesia menos ingênua e inocente, favorecendo de todo o seguimento do que se faria a obra completa do poeta, vista de hoje. Este divórcio com a forma anterior aparece no poema, primeiro com sua falsa sinalização: “Para o meu canto fiz manta/Bordada com fantasias/De antigas mitologias/Do calcanhar à garganta;” aqui com o poeta fazendo referência explícita ao que deixou, mas aparecendo como um engano, o seu bordado ele diz que é este, mas logo em seguida dá uma rasteira em seus imitadores: “E os tolos em seu proveito/Exibiram sua beleza/Como se a tivessem feito.” É como se fosse uma “casca de banana” para os poetas incautos que ficaram ao léu com expressões que Yeats as deu e as abandonou, deixando tal música aos tolos, como se fossem deles, e não do velho Yeats, agora renovado e crítico. E, então, aparece a realidade cristalina: “Canção, aceita o ocorrido:/Existe maior proeza/No andar despido.” Yeats aqui coloca seu despojamento dos atavios já nesta metapoesia em poema e, para quem tem bom entendimento, a armadilha e a cura estão expostas ipsis litteris.
Nos poemas “Os cisnes selvagens de Coole”, do livro homônimo de 1919, e “O pescador”, dois poemas que estão na íntegra logo abaixo, nos dão este novo Yeats com madureza de expressão, um poeta hábil e autoconsciente, senhor de sua expressão, ao bel prazer da pena. Pois, com a publicação de “Os cisnes selvagens do Coole”, de 1919, e de “Michael Robartes e a dançarina”, que é de 1921, o poeta toma novos rumos, na sua busca de um equilíbrio maior de expressão, depois de sua ruptura no poema “A manta”, já na tentativa de síntese do sonho da fase inicial com a realidade do período subsequente. E, com esta mudança de direção, novamente, Yeats começa por mudar de público. Isso estando patente nestes dois volumes mencionados acima, onde já há uma insatisfação com a burguesia irlandesa, e no seu conhecido pendor por outras classes sociais, que são a aristocracia e o povo simples.
Na verdade, Yeats sempre se sentiu muito ligado à aristocracia protestante da Irlanda, que, apesar de superada em muitos aspectos, se reduzindo, conservava ainda, para o poeta, a nobreza de espírito, e algo caro a poetas, o refinamento estético. Aproximar-se deste mundo significava, para Yeats, recuperar algo de seus ideais da juventude, em que a beleza poética era mais importante que uma veia crítica ou da dura realidade. Assim, seus contatos com lady Gregory e família estreitavam-se: trabalhava com eles, visitou com eles a Itália e passava temporadas anuais em sua residência em Coole, no oeste da Irlanda. E tal é o cenário de “Os cisnes selvagens de Coole”, uma visão da beleza reinante que era simbolizada pelo bando de cisnes de graça aristocrática, era o poeta no seu idílio de riqueza, embora já com uma atenção que tenderia a se voltar ao mundo de penúria e guerra, logo a seguir.   
Como contraponto de seu apreço pela aristocracia, estava seu interesse pelo povo simples, repositório das melhores tradições nacionais e preservador da pureza original. Tal é o pendor presente no poema “O pescador”, por exemplo, onde temos a idealização de um homem do povo, diferente da burguesia corrupta e corrompida que Yeats verberaria num estilo ferino que lembraria o de Swift. No entanto, nem o povo simples nem a aristocracia representavam a grande solução para a poesia de Yeats, visto que o poeta continuava distante de estratos importantes do público leitor irlandês.
Foi então que se verificou um fato que alterou radicalmente a situação, que foi o levante da Páscoa de 1916. Um grupo de heroicos irlandeses, não confiando nas promessas da Inglaterra de conceder independência à nação tão logo terminasse a Grande Guerra, sublevou-se. Entre eles figurava John MacBride, o ex-marido de Maud Gonne. A revolta, porém, foi esmagada, e quase todos os seus participantes, executados como traidores. Neste caso do levante, um Yeats a princípio avesso ao tema da guerra, ficou, no entanto, cheio de patriotismo e emoção, escrevendo a comovente elegia “Páscoa de 1916”, que é como uma contraparte contrita de “Setembro de 1913”: pois para ele, toda aquela gente, que antes lhe parecia “vestida de arlequim” como se participasse de uma farsa, se revestiu então de dignidade, revelando-se plenamente à altura do heroico sacrifício. E então a “terrível beleza nasceu.”
O poeta começava a reconciliar-se com a realidade dura da vida prática, preparando-se para reinterpretá-la e recolocá-la numa nova tentativa de síntese, que viria por vias não muito ligadas ao mundo prático, mas que teria a revelação do fundo em que passará a se dar as suas metáforas, versos e poesia. Yeats estava agora pronto para tentar novamente a síntese do sonho e da realidade, e o seu sucesso já pode ser medido pelo que realizou em “Michael Robartes e a dançarina” (o volume que inclui os versos de “Páscoa de 1916”), embora alguns poemas dessa obra, não obstante o inegável mérito, ainda se prendam a atitudes antigas em vias de superação. Mas neste livro temos outros poemas, como “A segunda vinda”, que já nos trazem o Yeats da síntese final.
Tal síntese não foi fácil, mas podemos falar que houve algo de súbito e sobrenatural nesta história poética. O poeta persistiu, e se deu bem. Uma de suas máximas era: “O talento percebe as diferenças; o gênio vê a unidade”. E a visão da unidade passou a ser a sua maior ambição, o imperativo maior. E a grande questão de Yeats, para a sua poesia e a elaboração de seu pensamento, passou a ser como, entretanto, reunir todos os fragmentos? Como conciliar num sistema todos os opostos? T.S.Eliot, por exemplo, recorreu à religião estabelecida. Mas Yeats experimentava outras fontes, pois desde jovem voltara-se para a magia, o ocultismo, o espiritismo, o rosacrucianismo e a Sociedade Teosófica de madame Blavatsky (de quem fora amigo em Londres); lera também com avidez muitos filósofos e místicos, como Plotino, Boehme, Descartes, Vico, Swedenborg, Blake, Gentile e Croce. Com tais leituras, conseguira reunir algumas ideias essenciais, mas precisava ordená-las, isto é, encontrar um sistema em que todas essas coisas se encaixassem.
Estava nesse ponto quando, quatro dias após o casamento, surpreendeu sua mulher a receber mensagens psicográficas. Estimulou-a para aprofundar aquelas mensagens e, graças aos dotes mediúnicos dela, pôde recolher vasto material e com ele concluir a elaboração de seu sistema. A seguir, reproduziu-o com riqueza de detalhes, criando o tal sistema que ele buscava, e que resultou no volume “Uma visão”, publicado pela primeira vez em 1925, e em sua versão final em 1937. O sistema permitiu a Yeats alcançar a ambicionada síntese, abrindo-lhe o caminho para a sua fase de maior grandeza como poeta. E tal sistema deu a Yeats, também, uma teoria da psicologia humana, da vida após a morte e da história. A poesia de Yeats, por sua vez, ganhou em economia e intensidade. E as consequências práticas dessa grande síntese e desse novo estilo podem ser observadas já nos dois últimos volumes de poesia que aqui mencionamos, em poemas como “O pescador” e “A segunda vinda”. E com tais poemas, Yeats não só alcançou a grandeza de outros poetas modernos em evidência, como T.S.Eliot, pelo uso de uma linguagem direta e sem atavios na projeção de um mundo fragmentado, mas também muitas vezes os superou, pela originalidade das concepções e profundidade da percepção. A poesia de Yeats continuaria evoluindo, história que contarei no próximo texto, sobre a sua grande obra de poesia e de pensamento.

UMA MANTA

Para o meu canto fiz manta
Bordada com fantasias
De antigas mitologias
Do calcanhar à garganta;
E os tolos em seu proveito
Exibiram sua beleza
Como se a tivessem feito.
Canção, aceita o ocorrido:
Existe maior proeza
No andar despido.

OS CISNES SELVAGENS DE COOLE

O arvoredo refulge no esplendor do outono,
Nas veredas do bosque está seco o terreno,
O lago no crepúsculo de outubro
Espelha um céu sereno;
Nas águas, entre as pedras transbordando,
Cinquenta e nove cisnes vão-se em bando.

Já venho aqui por dezenove outonos,
Pelo que pude contar;
Mal terminei, voou o grupo todo
Para no azul se espalhar,
Girando em voltas descontínuas e grandiosas
Com asas clamorosas.

Tenho observado essas brilhantes criaturas,
E sinto no peito uma chaga.
Tudo mudou desde que, ouvindo no crepúsculo
Esse badalo de asa nesta plaga
Pela primeira vez cortar o espaço,
Pisava mais leve o meu passo.

Incansáveis ainda, amante junto a amante,
Remam no frio da amável correnteza
Ou escalam os ares;
Nos corações o tempo não lhes pesa;
Emoção ou conquista, aonde quer que vão,
São sempre o seu quinhão.

Mas agora deslizam na água calma
Com sua beleza e mistério.
Em meio a que caniços construirão?
Junto a que lago serão nosso refrigério,
Quando eu, despertando num aurora,
Notar que se foram embora?

O PESCADOR

Mesmo lembrando o sardento
Homem de cinza com vara
Que sobe a um lugar cinzento
Com roupas de Connemara
E na aurora vai pescar,
Já faz tempo que procuro
Ante os olhos invocar
Esse homem simples e puro.
Eu tinha olhado de frente
O que eu esperava que fosse
Escrever p`ra minha gente
E aquilo que o mundo trouxe:
Os vivos que dão desgosto,
O morto que era um amigo,
O covarde no seu posto,
O insolente sem castigo,
Canalha algum intimado
Enquanto um ébrio o aclamar,
O engraçadinho açodado
Com seu chiste mais vulgar,
O esperto que traz nos lábios
Algum bordão de palhaço,
O espaço que falta aos sábios
E a grande Arte sem espaço.
Por desprezo a essa plateia,
Há um ano do calendário,
De repente tive a ideia
De um homem imaginário,
Com o rosto bem sardento
E roupas de Connemara,
Onde a espuma da corrente
Escurece a pedra clara,
A dobrar o punho em riste
Quando o anzol lança risonho;
Um homem que não existe,
Um homem que é apenas sonho;
E, antes que velho, anuncio:
“Vou lhe escrever qualquer hora
Um poema talvez frio
E candente como a aurora”.

PÁSCOA DE 1916

Encontrava os seus vívidos semblantes
Quando voltavam ao cair da noite
De escritório ou balcão, entre o cinzento
Do casario do século dezoito.
Saudava-os com aceno de cabeça
Ou palavras corteses e vazias,
Não concluindo sem lembrar primeiro
Um chiste ou caso em tom de menoscabo
Capaz de divertir um companheiro
Sentado ao pé do fogo lá do clube,
Pois enxergava toda aquela gente
Vestida de arlequim – assim como eu;
Tudo mudou, mudou completamente:
Terrível beleza nasceu.

Ah, aquela mulher passava o dia
Na boa vontade de ignorância atroz,
E a noite inteira discutia,
Até esganiçar a voz.
Que voz se comparava à maravilha
Da sua, quando jovem e formosa
Galopava no encalço da matilha?
Este homem por sua vez tinha uma escola,
E o cavalo com asas cavalgava;
Este outro, auxiliar seu e amigo, flama
Igual nutria, e já desabrochava;
Talvez tivesse conquistado fama
Com sua sensibilidade rara
E o pensamento ameno e vigoroso.
Enfim, aquele outro homem eu sonhara
Um bêbado grosseiro e pretensioso.
Com pessoas que próximas me estão
Ele fora em verdade bem cruel;
Entretanto, eu o incluo na canção,
Porque também deixou o seu papel
Nesta comédia inconsequente;
Também mudança trágica sofreu,
E transformou-se inteiramente:
Terrível beleza nasceu.

Corações onde um só desígnio medra,
Seja no inverno ou na estação estiva,
Mudam-se por encanto numa pedra
Que turba o fluxo da corrente viva.
O cavalo a chegar da estrada além,
O cavaleiro, o pássaro que avança
De trambolhante nuvem para nuvem,
Minuto por minuto têm mudança;
Altera-se minuto por minuto
A sombra se uma nuvem na corrente;
Escorrega na margem uma pata,
E um cavalo chapinha mais à frente;
Chamando o macho para o seu reduto,
Mergulha a ave do brejo em rebuliço;
Todos vivem, minuto por minuto;
A pedra está no meio de tudo isso.

Um sacrifício prolongado
Pode mudar em pedra o coração.
Quando terá bastado?
Este é o quinhão do Céu, nosso quinhão:
Apenas sussurrar nome por nome,
Qual mãe chamando o filho com doçura
Depois que o sono finalmente doma
Seus membros após tanta travessura.
E não é só o anoitecer, o ocaso?
Oh não, não é o anoitecer, foi morte;
E não foi morte inútil por acaso?
Pois talvez a Inglaterra nos liberte
E a palavra que deu seja mantida.
De seu sonho sabemos o bastante:
Eles sonharam, e hoje estão sem vida;
E não foi um amor avassalante
Que os arrastou para a fatalidade?
Vou expô-lo em meu verso ...
MacDonagh e MacBride,
E Connolly e Pearse,
Agora e para a frente,
Onde se usar o verde que era seu,
Mudaram, e mudaram totalmente:
Terrível beleza nasceu.

A SEGUNDA VINDA

Rodando em giro cada vez mais largo,
O falcão não escuta ao falcoeiro;
Tudo esboroa; o centro não segura;
Mera anarquia avança sobre o mundo,
Maré escura de sangue avança e afoga
Os ritos da inocência em toda parte;
Os melhores vacilam, e os piores
Andam cheios de irada intensidade.

Aí vem por certo uma revelação;
Por certo próxima é a Segunda Vinda.
Segunda Vinda! Digo essas palavras,
E do Spiritus Mundi vasta imagem
Turba-me a vista: ao longe, no deserto,
Um corpo de leão com rosto de homem,
O olhar vazio e duro como o sol,
As lerdas coxas move, enquanto em torno
Rondam sombras de pássaros coléricos.
Retorna a escuridão; mas ora eu sei
Que a vinte séculos de sono pétreo
Vexou o pesadelo de um bercinho;
E que rude animal, chegado o tempo,
Arrasta-se a Belém para nascer?

(Poemas de W.B. Yeats, tradução de Paulo Vizioli)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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