PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O DIA EM QUE CONHECI BILLY MOON

“ali não tinha pose, era a performance da vida, um cara vivido ali falava”

Em minhas andanças pelas ruas, tenho o hábito de observar quem, por todas as vias que passo, pode se tornar personagem de uma boa crônica, ou de uma má crônica, por que não? Não se trata exatamente de achar em qualquer um o "Santo Graal das ideias", e nem a busca de um surto de criatividade em meio ao caos urbano, não, mas de pinçar em meio de tudo, algo singular, fora dos padrões.
Numa madrugada de quinta-feira, depois de eu ter tomado três doses de conhaque, depois de ter passado pela beira da praia e visto mulheres e travestis sendo exploradas por rufiões do submundo, e passando por um quiosque, no qual resolvi tomar um suco de laranja e fumar um cigarro, vi ao longe, na areia, um grupo de pessoas, me aproximei deste grupo, vi que eram jovens que escutavam um recital de um velho com cabelo rasta, e que tinha todo um tom teatral, cheio de meneios, uma coisa realmente vigorosa, aquilo me encantou, me tirou do lugar comum daquelas doses rotineiras de conhaque, nas quais estava muito habituado.
Entrei num mundo paralelo, ali, e já deveria ser bem umas três horas da madrugada, até porque trabalho só de noite, como cronista maldito de panfletos, de jornais clandestinos, passo flyers também, não tenho vínculos com o sistema, e por isso me identifiquei logo de cara com aquele senhor rasta que era pura ousadia, e que tinha o poder de hipnotizar um grupo de uns dez jovens, que estavam ali, admirando a performance do velho style rasta.
Ouvia-se da sua performance (peguei o bonde andando): "Tenho tudo do sabor, sabor do vento, sabor da praia, gosto da madrugada e de cerveja, gosto da juventude, tenho tesão de tudo, e tudo me pertence, tal como a água do mar!". Fiquei extasiado com aquelas palavras que eram puro oráculo e pura sabedoria de rua, e com erudição de inteligência universal. "Me visto do jeito que quero, faço o que quero, pois Jah Rastafari é meu pêndulo, meu relógio, tenho minhas horas ao vento, sou poeta ao relento."
Que noite! Pensei em acompanhar aquilo até o fim, via naquele velho rasta um vigor raro de quem tem a coragem de romper, e na ruptura estar mais dentro de tudo que todos os outros. "Venha juventude, temos o tempo do universo, o eterno universo, do qual faço verso e canto pela noite sem fim." Nada mais restaria para mim naquela madrugada, senão travar um lero com aquela figura fascinante que me acordou de um transe de conhaque em plena madrugada urbana.
"Passei pela Jamaica sim, minha cabeça vai aonde eu quero e como eu quero, sou músico, cantor e poeta. Dou a seta, dou a flecha, sei da queda." Encantamento puro, êxtase divino e místico, iria entrevistar aquele cara, não poderia sair dali mais, sem saber um pouco de sua história, este rasta provavelmente já deveria ter passado por muita coisa, coisa que ninguém nunca viu. Logo vieram os urras daquela juventude que fazia um círculo em volta do rasta, parecia um culto, era um culto, o pastor daquelas ovelhas era o velho rasta, que derramava seus versos de sapiência de um lugar único, sua alma que rodava pela noite, não teria realmente mais nada para fazer, e mesmo se tivesse, cancelaria tudo só para ver como aquele evento terminaria.
Eu, Guilherme Thompson, cronista e outsider profissional, reconheci ali um outsider muito mais profundo que eu, era o extremo, eu ainda cantarolava no meio, o rasta já tinha passado do meio, estava na estrada paralela total, ali vivia, e como vivia, não sei, só sei que estava ali, vivo, e declamando no meio da praia, em plena madrugada de quinta para sexta, no meio de uma cidade em que metade de tudo dormia, naquela hora de plenitude e amor. O rasta certamente era muito mais outsider que metade destes que posam por aí, pois ali não tinha pose, era a performance da vida, um cara vivido ali falava, e sabia que jovem é o que vale a pena, pois são eles que ouvem os "malucos da rua".
Ali continuava a performance mais vigorosa que já tinha visto: "Eu penso através do encanto, tudo o que canto eu falo do coração, poesia é tudo de canção, não rima com não, tem tudo de si, pois é sim, sim pra vida." Na lata! Tinha acabado de ver um golaço. E os urras dos jovens não paravam, e eram urras de respeito total, nada irônicos, a galera ali realmente estava curtindo de montão, e eu, com uma curiosidade infinita. Guilherme Thompson, the observer, tinha dado um furo, já tinha pauta, yes!
E, depois de mais uns quinze minutos de improvisação (sabia que o rasta improvisava tudo ali, no momento, on the spot), então veio a coda máxima: "Eu só como vegetais e frutas, tudo é planta, a planta marginal das ideias, e tudo que é ideia vem da alma, vai para o corpo e vira palavra, vira canto e é sinal da estrada, vida da estrada, vida de cantor, vida de quem bate tambor e toca violão, vida de quem bateu de cara, levantou e virou lenda, é a lenda de cada um, folclore da realidade, vida em atividade, ação direta de amor, vida incerta que o rumo deu." Fechou a coda. Vivas e bravos. Decidi me aproximar, discretamente, do velho rasta.
Cheguei até a ele, entre os dez jovens que conversavam com ele. Pedi licença, educadamente, e travei o lero que precisava: "Caramba cara! Gostei muito de tudo que você disse, foi tudo de improviso, man?" "Ah, eu sempre faço o que dá na telha, sempre foi assim, desde que fugi de casa com dez anos de idade, lá no Nordeste, e resolvi viver por aí. Conheci um velho hippie, isso era lá pelas bandas dos anos 60, e ele me ensinou artesanato, e depois mandou eu me virar. Foi bom, passei a viver na estrada, conheço a América do Sul na palma da minha mão, e tenho tudo escrito em diários, não sei se passo isso para a frente, mas desencanei e resolvi dar uma de desapego bicho, sabe como é?!"
"Puxa, sua vida é fascinante, desculpe, não me apresentei, sou cronista de panfletos, de jornais marginais, meu nome é Guilherme Thompson, e isso que você fez, aqui agora, foi a melhor coisa do meu dia, muito obrigado cara, posso citá-lo num texto? Seria uma honra, qual a sua graça?" "Meu nome de batismo é Francisco, mas, meu nome de guerra, em meio aos rastas, é Billy Moon. Bem doido, né bicho?" "Incrível."
"Ah, e pode escrever o que tu quiser bicho, não tem grilo de nada não, nem peço nada, me viro bem por aí, e boa sorte aí nos seus trampos, a vida não é fácil, mas com poesia e música tudo fica bom, bicho. Nem sabia que tinha um jornalista aqui por estas bandas, me vendo nessa doideira improvisada, muito legal bicho, e a juventude nem se fala, são os únicos que nos ouvem por aqui nesse lugar maluco, já já volto para a mata, que é lá o meu lugar." "Que bom cara, vou escrever a matéria hoje, o dia em que conheci Billy Moon, inesquecível, muito obrigado bicho." "Não foi nada, é isso aí!" "Valeu cara, a gente se vê por aí." "Paz de Jah." "Paz de Jah".

Guilherme Thompson, cronista e outsider.

(obs 1 : Guilherme Thompson é um pseudônimo que usarei uma vez ao mês com crônicas fictícias, os outros assuntos gerais e culturais continuarão sendo abordados na coluna)

(obs 2 : Guilherme Thompson é um cronista outsider, documentarista eventual, jornalista autodidata, nascido em 01/01/1974 na cidade do Rio de Janeiro, ganha a vida em jornais diversos, trabalha por demanda própria, vive nas ruas caçando pauta, meio como um antropólogo intuitivo, estuda literatura e filosofia por conta própria, gosta de se vestir com camisas de bandas de rock clássico).    

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36768/14/o-dia-em-que-conheci-billy-moon







BORGES : O INFORME DE BRODIE

“Borges consuma sua história como vivente em sua realização pela literatura”

O CARÁTER GERAL DA LITERATURA DE BORGES

Jorge Luis Borges é um homem enciclopédico, não lhe faz falta uma biografia espetacular ou pirotécnica, é um homem dos livros, escritor de uma biografia discreta, e que tem na sua literatura o encontro entre a literatura europeia pretensamente universal com a literatura regional argentina numa versão híbrida que é como algo que surge de uma leitura original e refeita destes caminhos que em Borges são encontro entre universos diferentes e invenção de uma terceira linha literária no que tange ao seu aspecto cultural, e uma nova literatura no que se refere aos temas borgianos e seu jogo de ilusão entre falso e verdadeiro tanto em seu conteúdo como em sua experiência formal.
Não se conhece, portanto, uma vida do escritor Borges fora da sua história com os livros que leu e escreveu, sua experiência precípua é literária por excelência, Borges consuma sua história como vivente em sua realização pela literatura. Borges então traça uma história que passa por apropriações literárias que vão de Quixote, também quando reescreve aos nove anos um conto de Oscar Wilde, e suas obsessões que iam por Chesterton, Kipling, Stevenson, com traduções que ele faz de Kafka, Faulkner e Virginia Woolf. Por fim, do lado argentino, temos um Borges que torna a poesia gauchesca uma coisa para ele bem familiar, e Borges também nutria interesses alternativos por escritores pouco conhecidos, marginais ou menores.
Borges, por sua vez, também é um escritor sobretudo argentino, para além de sua figura enciclopédica e de erudição universal, e fruto de seu interesse diverso, em que a cultura regional argentina aparece com o mesmo peso na literatura borgiana do que qualquer inspiração ou influência europeia, por mais pretensamente universal que esta seja na cultura geral divulgada pelo mundo. Isto é, o destaque que supostamente teria o apelo europeu na literatura borgiana não ofusca o brilho que tem a cultura periférica dos argentinos em Borges, ele mesmo argentino, o que é talvez uma constatação óbvia ou uma consequência natural de um escritor que tem relações de identidade e não somente de erudição, como é o caso de Borges.
E o caminho de Borges na literatura então parte desta busca original de uma voz regional argentina, a descoberta ou redescoberta, ou no caso borgiano, uma invenção de uma literatura de um país culturalmente periférico como era a Argentina. E a face dupla borgiana, a que está entre a periferia argentina e o centro universal forçosamente europeu, constitui-se também no trajeto cronológico da obra borgiana, mas como uma terceira literatura que não se instala em nenhum destes dois territórios de forma literal, pois Borges opera nas bordas culturais para ter a sua própria voz, e tem êxito, criando ou inventando a sua literatura e não a de uma outra matriz cultural.
Portanto, a literatura borgiana não se fecha na interpretação de um início regional, de criollismo vanguardista, ou na sua produção que começa nos anos 1940, numa erudição ciclópica de contos, falsos contos, ensaios e falsos ensaios. O cruzamento se dá entre tradições ocidentais e de algumas que Borges conheceu do Oriente, encontro que vai se dar no espaço rio-platense, mas com Borges operando um fruto novo e original neste trabalho literário todo seu. Borges então é mais que um híbrido formal ou cultural, ele é algo novo na literatura.
Borges é um gênio que não restringe sua literatura como um instrumento regionalista de cor local ou bairrista, ele é um ficcionista muito mais do que um êmulo cultural, e todas as suas operações culturais se dão no espaço próprio da ficção e do ensaio, seja este um conto verdadeiro ou falso, ou um ensaio sobre uma literatura real ou inventada, pois Borges faz ficção e crítica sem ser um representante de uma aldeia ou de uma erudição universal, seu lugar é literário mais do que um reflexo puramente de um jogo cultural entre a Argentina regional e periférica e o pretenso universalismo europeu.
Sua herança cultural da Argentina não lhe faz ser um particularista em sua literatura, pois se apropria dos dados e códigos das culturas europeia e argentina de um modo próprio, em que se realiza nesta dupla face, esta em que há reflexos de um passado argentino sim, mas repaginado borgianamente, como invenção literária e não como literatura regional. Borges junta sua leitura estrangeira com a reinvenção do passado argentino numa via contemporânea, ou seja, a literatura rio-platense tem a riqueza de uma leitura de um conhecedor universal da literatura europeia e do mundo.
Borges conhece a civilização de forma erudita, ciclópica e enciclopédica, e quando se volta ao termo periférico da cultura gauchesca de matriz argentina, tem este olhar abrangente de um ficcionista que já sabe bem o que está fazendo, e faz uma invenção. O cosmopolitismo borgiano é que, por fim, encontra a tonalidade certa para uma literatura argentina. Ele é o autor que é crítico e escritor ao mesmo tempo, ou ainda, um contista que é filósofo, e que na sua escrita faz eclodir questões da teoria literária, e isto de uma forma oblíqua, com a mesma lateralidade em que o aspecto cultural influi na literatura borgiana. 

O INFORME DE BRODIE, UMA VISÃO

“O informe de Brodie”, conto que dá título ao livro de contos de Borges de 1970, é um conto que parte de uma inspiração em Swift e seu Viagens de Gulliver, e que representa uma tensão entre moral e ironia, pois em Swift tudo está certo e delimitado, temos uma lição moral embutida, ao contrário de Brodie, em que o terreno é ambíguo e enigmático do ponto de vista de conteúdo moral, restando uma operação clara da ironia borgiana, arrebentando as fronteiras de um suposto conto fabular, fronteiras de um Esopo fabulista, pois aqui ele faz uma desconstrução de uma pretensa moral fabular, O Informe de Brodie tem esta abertura interpretativa, que tem como efeito ou resultado a ironia sutil de Borges.
Borges encara uma questão moral e política quando demonstra o informe do conto, pois este se trata de um missionário escocês informando ao governo de Sua Majestade britânica uma descrição da cultura dos Mlch. E o julgamento moral de Brodie é então instável, ao contrário de um Gulliver que vive num mundo unidimensional. Swift ganha aqui uma reescritura, e a moral nítida do conto fabular com matriz em Esopo é destruída pela ironia borgiana, que torna o mundo opaco e não mais previsível como na moral final das fábulas ou no juízo maniqueísta de um Gulliver em Swift.
Nas reescrituras que faz neste livro de contos, temos o do conto “Homem da Esquina Rosada”, publicado originalmente em 1935 na sua História Universal da Infâmia. Este conto no livro novo tem uma mudança na perspectiva narrativa, em que a covardia inicial do cuchillero na primeira versão, em que ele foge da briga, agora tem a versão mais complexa de um espelhamento em que o fugitivo reconhece em seu rival um reflexo de si mesmo que lhe constrange e então ele foge.
E a composição dos outros contos do livro, como, por exemplo, em “História de Rosendo Juárez”, em que se opera um deslocamento do ponto de vista, temos então um conto que não se restringe a uma narração apenas entendida como ação, mas também como uma abertura em que nos deparamos com um campo de saberes e por fim, uma ética.
E este aspecto ético aparece como a famosa moralidade de vendeta que temos em contos mais gauchescos como “O Encontro”, “Juan Muraña” e “O Outro Duelo”, em que há a projeção de uma ação repetida de duelos e mortes, em que a ironia borgiana coloca tal ética de macheza em perspectiva autocrítica, o ridículo se dando então na repetição destes padrões engessados de relações sociais e de moral.
E com o tema filosófico dos duplos, estes que representam a repetição inconsciente de um padrão comportamental herdado e mimético, temos a cultura como este limiar em que os personagens parecem ser manipulados por um hábil títere que governa as ações e suas relações de causas e efeitos, sempre dando em resultados semelhantes e até iguais.
Tal repetição indefinida que terá lugar nestas tramas gauchescas de macheza, vingança, coragem que mais parece temeridade, provas de hombridade e valentia, estes padrões que Borges coloca em perspectiva e os repete infinitamente para lhes dar a face ridícula pela sua ironia sistemática, na qual os destinos se repetem, mesma repetição que se dará também no conto “Guayaquil”, este que coloca a disputa acadêmica banal entre historiadores como também nesta dimensão que tende ao infinito, numa repetição ridícula.
O conto “O Inimigo”, por sua vez, opera uma reescritura do final de El Juguete Rabioso, primeiro romance de Roberto Arlt, publicado em 1926, pois tanto tem no novo conto uma recolocação do romance no nome de um dos personagens secundários do conto borgiano, como também nas tramas de confraria entre marginais e traições à amizade, deslealdade presente em Roberto Arlt, e que é reescrito no conto de Borges, tal traição que desaparece no outro conto borgiano, “A Intrusa”, em que os laços de lealdade não se rompem nem diante de um assassinato.
No conto “O Evangelho Segundo Marcos” temos como tema o mal-entendido cultural, pois diante da recapitulação sutil de um relato de Ezequiel Martínez Estrada, “La Inundación”, temos a trama que é reescrita no conto borgiano, pois é na mesma planície sob as águas em que se dá a confusão, a crucificação de um citadino fruto de uma interpretação literal de peões, o mal-entendido se dando entre esta fronteira de interpretações diferentes que se dá entre peões, de um lado, e citadinos, de outro, tudo fruto de uma leitura diversa de ambos do evangelho de Marcos, mal-entendido que resulta em tragédia, e com o relato bíblico virando, por fim, paródia.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://www.seculodiario.com.br/36766/8/borges-o-informe-de-brodie






segunda-feira, 27 de novembro de 2017

AUGUSTO DOS ANJOS – EU E OUTRAS POESIAS – PARTE V

“uma poesia que reunia no mesmo bojo antecipações modernas, e a forma conservadora parnasiana com sonoridade simbolista”

O PESSIMISMO DE AUGUSTO DOS ANJOS

Mesmo com a poesia e a vida intelectual do poeta Augusto dos Anjos sendo influenciada diretamente pelas ideias científicas do evolucionismo de Darwin e de Spencer, e pelo Monismo, um sistema de fundo místico e totalizante de Ernest Haeckel, estas que representavam uma cosmovisão de certa forma otimista do universo e da humanidade, na poesia de Augusto dos Anjos temos, no entanto, além dessas ideias reproduzidas fielmente em versos, o outro lado, seu contraponto, que é o pessimismo herdado de uma poesia decadentista, além da filosofia de Schopenhauer, que também trazia esta carga de vazio budista, de um mundo fundado na dor e no sofrimento e a vida espiritual se resumindo em se libertar desta condição num nirvana indiferenciado.
Os dados pessimistas da poesia de Augusto dos Anjos também são efeitos de uma biografia extremamente acidentada, com privações financeiras, e sem qualquer reconhecimento literário, pois seu único livro publicado em vida, o livro de poesia “Eu”, fora recusado pelas editoras e só veio a lume com as despesas de uma publicação particular, a qual o poeta dividiu com o irmão, ou seja, suas ambições de trabalho e de lugar na imprensa não aconteceram, não conseguiu, ao fim, o que mais almejava, ter sua poesia reconhecida, pois estava numa época de império dos poetas parnasianos e simbolistas.
Augusto dos Anjos adotou um pessimismo radical em sua poesia, abalando, de certo modo, um humanismo que lhe restasse em sua sensibilidade poética, com uma visão visceral, literalmente, da vida material, e com uma condição humana biológica e perecível reinando e destruindo os ditames metafísicos que ainda resistiam numa suposta visão cósmica ou transcendente da poesia, e somente nos seus poemas de publicação póstuma é que teremos uma versão mais solar da poesia de Augusto dos Anjos, com poemas de títulos como A esperança, que dão uma visão mais de fé restaurada diante da morte, em que o amor e a crença ganham corpo frente ao desalento comum de sua poesia em geral.

A DOR EM AUGUSTO DOS ANJOS

Em meio a dor física e moral, enfim, a dor da existência, esta aparece quando se fala da influência do estro simbolista, ainda presente na poesia de Augusto dos Anjos, sobretudo na sonoridade e na forma, no que temos uma visão em que o eu lírico se harmoniza com facilidade a esta condição humana que anda no limite, pois a poesia de Augusto dos Anjos, neste ponto, herda tanto o espiritualismo estetizado do Simbolismo, como a negação extrema da vida pelo Decadentismo, resultando numa poesia que se torna impassível diante da morte, em que a decomposição dos corpos não perturba mais os sentidos e nem a alma, e a dor aqui não passa de um veículo de libertação com a dissolução final da vida, diante de seu corpo vulnerável, em que o poeta descansa da sua angústia inicial e se depara de forma normal com o inevitável, sua finitude. A dor aqui, sob a influência simbolista, ganha fundamento como via de transcendência espiritual.

CONCLUSÃO

Embora tenha ganho certa serenidade simbolista com a transcendência espiritual, a poesia de Augusto dos Anjos, vide seu fundo decadentista também, tem um reino visceral do pessimismo, diante da incapacidade da ciência e da filosofia de dar conta da morte, e que vem com estas questões radicais carregadas de um vocabulário científico, na já citada influência do pensamento evolucionista e monista, e com um corte profundo que marca a sua poesia, de outro lado, com a filosofia de Schopenhauer.
Com uma poesia sui generis, pré-moderna, uma poesia que reunia no mesmo bojo antecipações modernas, e a forma conservadora parnasiana com sonoridade simbolista, o poeta Augusto dos Anjos tem também, por fim, este pessimismo que lhe vem da poesia decadentista, em uma visão fatalista, de culto da dor, flerte contínuo com a visão fúnebre e de uma riqueza vocabular biológica que é mais um modo de tematizar a finitude através da descrição de um corpo perecível, além da podridão dos agentes da morte que são os vermes na decomposição, uma poesia que usa o horrível sob forma sublime, com um verso que continua elegante, mas que tem como tema o grotesco e a desolação do mundo material da finitude.

POEMAS :

O CONDENADO : O poema descreve um ser condenado, a imagem da finitude e da morte ganha aqui o ar da sepultura, no que temos, nesta visão que vira pó : “Alma feita somente de granito,/Condenada a sofrer cruel tortura/Pela rua sombria d`amargura/- Ei-lo que passa – réprobo maldito./Olhar ao chão cravado e sempre fito,/Parece contemplar a sepultura/Das suas ilusões que a desventura/Desfez em pó no hórrido delito./E, à cruz da expiação subindo mudo,/A vida a lhe fugir já sente prestes/Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo./O mundo é um sepulcro de tristeza,”. A visão desolada do mundo, como sepulcro de tristeza, tem aqui também a imagem de um ser maldito, em expiação, e a desventura tem aqui sentido de desilusão, com a morte em seu sentido total que vem como uma imagem em que tudo se cala, a morte é o reino do silêncio, mas a sua imagem terrena é a da dor.

LIRIAL : O poema tem a imagem sinestésica do lírio, o som reina num poema suave, mas que logo vem com a carga amorosa de um ser sofrido, no que temos : “Por que choras assim, tristonho lírio,/Se eu sou o orvalho eterno que te chora,”. O desejo vem com toda a sua nuance, o beijo tem a conta de um delírio, melhor ainda, Martírio, e resta ao poeta sorrir uma imaginária sombra da ventura, sonho esvaecido, último suspiro de um poema amolecido : “Baixa a mim, irmã pálida da Aurora,/Estrela esmaecida do Martírio;/Envolto da tristeza no delírio,/Deixa beijar-te a face que descora!” (...) “Ai! que ao menos talvez na vida escassa/Não chorasses à sombra da desgraça,/Para eu sorrir à sombra da ventura!”.

SONETO : O soneto aqui descreve a vida breve de um poeta, no que temos : “A orgia mata a mocidade, quando/Rugem na Carne do delírio as feras,/E o moço morre como está sonhando/Nas suas vinte e cinco primaveras!” (...) “Como arvoredos juvenis tombados/Os moços mortos, os brasões manchados,/E um turbilhão de púrpuras no lodo!”. O turbilhão de púrpuras no lodo, aqui, pode ser a imagem que evoca a potência estética de um poeta e sua poesia, mas que desaparece de forma abrupta num mundo desolado, em que o reino é o da morte prematura destes que tinham o que fazer, no entanto.

VAE VICTIS : O poema descreve com mestria a imagem da dor, o poema fere e se arrisca, o poeta define por fim a dor como esta finitude perecível, os miasmas que vêm da podridão da carne morta, e o poema que se farta destes fantasmas das estações, no que temos : “A Dor meu coração torça e retorça/E me retalhe como se retalha/Para escárnio e alegria da canalha/Um leão vencido que perdeu a força!/Sobre mim caia essa vingança corsa,/Já que perdi a última batalha!/E, enquanto o Tédio a carne me trabalha,/A Dor meu coração torça e retorça!/Cubra-me o corpo a podridão dos trapos!” (...) “Repositório de milhões de miasmas/Onde se fartem todos os fantasmas/Primavera, verão, outono, inverno!”. O poema junta a dor geral das coisas do mundo e lhe dá a face mortal do que apodrece.

SONETO : O soneto fala para Nietzsche, e descreve a luta vã da filosofia diante de tudo que há, que é este mundo tão radical que devora a ciência, a arte, a religião e a filosofia como um grande grito brutal que arde em ilusões e tragédias, no que temos : “Para que nesta vida o espírito esfalfaste/Em vãs meditações, homem meditabundo?!/- Escalpelaste todo o cadáver do mundo/E, por fim, nada achaste ... e, por fim, nada achaste! .../A loucura destruiu tudo que arquitetaste/E a Alemanha tremeu ao teu gemido fundo! ...” (...) “Pois, para penetrar o mistério das lousas,/Foi-te mister sondar a substância das cousas/- Construíste de ilusões um mundo diferente,/Desconheceste Deus no vidro do astrolábio/E quando a Ciência vã te proclamava sábio,/A tua construção quebrou-se de repente!”. De súbito, os grandes edifícios da razão, da virtude, do intelecto, e de toda pesquisa desmoronam num mundo cruel por si mesmo.

SONETO : O soneto tuberculoso tem este estro de doença, a poesia e seu carma de tosse, no que temos : “Vinhas trilhando gárrulo a Avenida/Onde Deus manda que todo homem goze,/Quando o fantasma da tuberculose/Pediu-te, em ânsias, o óbolo da Vida!” (...) “Das tuas dores na procela brava/Não soubeste talvez que eu te estimava!/Mas a amizade oculta não se finda .../Embora oculta, ela subiu, no entanto ...” (...) “Que hoje que és morto – ei-la que sobe ainda!”. E, ao fim do poema, um grande brinde da amizade, este caro coração que colore a vida tão de abismo em que a maioria vive.

O ÉBRIO : O poema alcoólico bebe e se embriaga, no que temos : “Bebi! Mas sei por que bebi! ... Buscava,/Em verdes nuanças de miragem, ver/Se nesta ânsia suprema de beber/Achava a Glória que ninguém achava!/E todo o dia então eu me embriagava” (...) “A ninguém nunca eu contarei a história/Dos que, como eu, foram buscar a Glória/E que, como eu, irão morrer também!”. O homem e o poeta bebem até morrer, a Glória aqui é uma ilusão de uma luz artificial que mora no álcool, mas que é o inferno e as trevas do ébrio que morre de seu vício.

DOLÊNCIAS : O amor neste poema aparece aqui como nostalgia de uma figura que já morreu, o poeta luta aqui com um desejo inútil, no que temos : “Oh! Lua morta de minha vida,/Os sonhos meus/Em vão te buscam, andas perdida/E eu ando em busca dos rastos teus ...” (...) “Ah! Se morreste pra minha vida!/Vive, consolo de minha morte!/Baixa, portanto, coração ermo/De lua fria/À plaga triste, plaga sombria/Dessa dor lenta que não tem termo./Tu que tombaste no caos extremo/Da Noite imensa do meu Passado,/Sabes da angústia do torturado .../Ah! Tu bem sabes por que é que eu gemo!” (...) “Ninguém me chora! Ah! Se eu tombar/Cedo na lida .../Oh! Lua fria vem me chorar,/Oh! Lua morta da minha vida!”. A Lua como imagem feminina aqui reina no poema, e o poeta quer que alguém lhe chore no fim, uma vez que tudo já morreu dentro dele.

VÊNUS MORTA : O poema homenageia Vênus e sua delícias, e que aqui são prazeres torturantes e uma via sacra em que tudo é miséria, na verdade, no que temos : “A Via-Sacra Azul do amor primeiro/Veste hoje o luto que a desgraça veste/No miserere do meu desespero ...” (...) “No vácuo imenso das desesperanças/E dos passados viços,/Recordo o beijo que te dei nas tranças”. O poema segue com um sabor nostálgico que lhe inflama o desejo do beijo, e a tragédia shakespeariana logo dá seu ar clássico como num suicídio e loucura de Ofélia, um poema que está fora de si, por fim, no que temos : “Eu guardo o travo deste beijo ardente/E a Nostalgia desta Pátria – a Carne!/Sonho abraçar-te, pálida camélia,/Mas neste sonho, langue e seminua,/Pareces reviver a antiga Ofélia,/À opalescência trágica da lua!”. E o poema ganha, por fim, um ar religioso, numa redenção de amor que sofre e faz poesia, no que temos : “Reza-lhe todo o cantochão memento/Dessa Missa de amor da Extrema Agrura,/Abençoada pelo meu tormento/E consagrada pela sepultura./E que ela suba na serena gaza/Dos mistérios dourados e serenos/À terra Ideal das púrpuras em brasa/E ao Céu dourado a auroreal de Vênus!”.

POEMAS :

O CONDENADO

Alma feita somente de granito,
Condenada a sofrer cruel tortura
Pela rua sombria d`amargura
- Ei-lo que passa – réprobo maldito.

Olhar ao chão cravado e sempre fito,
Parece contemplar a sepultura
Das suas ilusões que a desventura
Desfez em pó no hórrido delito.

E, à cruz da expiação subindo mudo,
A vida a lhe fugir já sente prestes
Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.

O mundo é um sepulcro de tristeza,
Ali, por entre matas de ciprestes,
Folga a justiça e geme a natureza.

LIRIAL

Por que choras assim, tristonho lírio,
Se eu sou o orvalho eterno que te chora,
P`ra que pendes o cálice que enflora
Teu seio branco do palor do círio ?!

Baixa a mim, irmã pálida da Aurora,
Estrela esmaecida do Martírio;
Envolto da tristeza no delírio,
Deixa beijar-te a face que descora!

Fosses antes a rosa purpurina
E eu beijaria a pétala divina
Da rosa, onde não pousa a desventura.

Ai! que ao menos talvez na vida escassa
Não chorasses à sombra da desgraça,
Para eu sorrir à sombra da ventura!

SONETO

A orgia mata a mocidade, quando
Rugem na Carne do delírio as feras,
E o moço morre como está sonhando
Nas suas vinte e cinco primaveras!

Em cima – o oiro sem mancha das esferas,
Embaixo oiro manchado de execrando
Festim dos sibaritas, das heteras
Lubricamente se despedaçando!

Em cima, a rede do estelário imáculo
Suspensa no alto como um tabernáculo
- A orgia, embaixo, e no delírio doudo

Como arvoredos juvenis tombados
Os moços mortos, os brasões manchados,
E um turbilhão de púrpuras no lodo!

VAE VICTIS

A Dor meu coração torça e retorça
E me retalhe como se retalha
Para escárnio e alegria da canalha
Um leão vencido que perdeu a força!

Sobre mim caia essa vingança corsa,
Já que perdi a última batalha!
E, enquanto o Tédio a carne me trabalha,
A Dor meu coração torça e retorça!

Cubra-me o corpo a podridão dos trapos!
Os vibriões, os vermes vis, os sapos
Encontrem nele pábulo eviterno ...

- Repositório de milhões de miasmas
Onde se fartem todos os fantasmas
Primavera, verão, outono, inverno!

SONETO

A Frederico Nietzsche

Para que nesta vida o espírito esfalfaste
Em vãs meditações, homem meditabundo?!
- Escalpelaste todo o cadáver do mundo
E, por fim, nada achaste ... e , por fim, nada achaste! ...

A loucura destruiu tudo que arquitetaste
E a Alemanha tremeu ao teu gemido fundo! ...
De que te serviu, pois, estudares, profundo,
O homem e a lesma e a rocha e a pedra e o carvalho e a haste?!

Pois, para penetrar o mistério das lousas,
Foi-te mister sondar a substância das cousas
- Construíste de ilusões um mundo diferente,

Desconheceste Deus no vidro do astrolábio
E quando a Ciência vã te proclamava sábio,
A tua construção quebrou-se de repente!

SONETO

Vinhas trilhando gárrulo a Avenida
Onde Deus manda que todo homem goze,
Quando o fantasma da tuberculose
Pediu-te, em ânsias, o óbolo da Vida!

Recordo agora a nossa despedida
Na Estação do Cobé – santa nevrose
Que com fios de ferro as almas cose
Principalmente se uma está ferida!

Das tuas dores na procela brava
Não soubeste talvez que eu te estimava!
Mas a amizade oculta não se finda ...

Embora oculta, ela subiu, no entanto ...
E subiu tanto e subiu tanto e tanto
Que hoje que és morto – ei-la que sobe ainda!

O ÉBRIO

Bebi! Mas sei por que bebi! ... Buscava,
Em verdes nuanças de miragem, ver
Se nesta ânsia suprema de beber
Achava a Glória que ninguém achava!

E todo o dia então eu me embriagava
- Novo Sileno – em busca de ascender
A essa Babel fictícia do Prazer
Que procuravam e que eu procurava.

Trás de mim, na atra estrada que trilhei
Quantos também, quantos também deixei!
Mas eu não contarei nunca a ninguém,

A ninguém nunca eu contarei a história
Dos que, como eu, foram buscar a Glória
E que, como eu, irão morrer também!

DOLÊNCIAS

Oh! Lua morta de minha vida,
Os sonhos meus
Em vão te buscam, andas perdida
E eu ando em busca dos rastos teus ...

Vago sem crenças, vagas sem norte,
Cheia de brumas e enegrecida,
Ah! Se morreste pra minha vida!
Vive, consolo de minha morte!

Baixa, portanto, coração ermo
De lua fria
À plaga triste, plaga sombria
Dessa dor lenta que não tem termo.

Tu que tombaste no caos extremo
Da Noite imensa do meu Passado,
Sabes da angústia do torturado ...
Ah! Tu bem sabes por que é que eu gemo!

Instilo mágoas saudoso, e enquanto
Planto saudades num campo morto,
Ninguém ao menos dá-me um conforto,
Um só ao menos! E no entretanto

Ninguém me chora! Ah! Se eu tombar
Cedo na lida ...
Oh! Lua fria vem me chorar,
Oh! Lua morta da minha vida!

VÊNUS MORTA

A Via-Sacra Azul do amor primeiro
Veste hoje o luto que a desgraça veste
No miserere do meu desespero ...
- Lótus diluído n`alma dum cipreste!

Como um lilás eternizado abrolhos
Tinge de roxo o arminho da grinalda,
Rola a violeta santa dos teus olhos
- Tufos de goivo em conchas de esmeralda.

No vácuo imenso das desesperanças
E dos passados viços,
Recordo o beijo que te dei nas tranças
Emolduradas num florão de riços.

E como um nume de pesar, plangente,
Guarda a saudade que levou do Marne,
Eu guardo o travo deste beijo ardente
E a Nostalgia desta Pátria – a Carne!

Sonho abraçar-te, pálida camélia,
Mas neste sonho, langue e seminua,
Pareces reviver a antiga Ofélia,
À opalescência trágica da lua!

Tu, oh! Quimera, de reverberantes
E rubras asas de heliantos pulcros,
Crava-lhe n`alma o tirso das bacantes,
Brande-lhe n`alma o frio dos sepulcros.

Reza-lhe todo o cantochão memento
Dessa Missa de amor da Extrema Agrura,
Abençoada pelo meu tormento
E consagrada pela sepultura.

E que ela suba na serena gaza
Dos mistérios dourados e serenos
À terra Ideal das púrpuras em brasa
E ao Céu dourado a auroreal de Vênus!

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/36724/17/dor-existencial-vem-a-tona-quando-se-fala-da-influencia-do-estro-simbolista

  




domingo, 26 de novembro de 2017

LIGA DE AÇO

No porto em que atravessa
meu astrolábio,
dou voltas com as pontas
de minhas ficções,

um elmo diante dos golpes,
as falanges formam
a tríade dos pretores,

leve os cônsules se erguem
com sua facções,

o poeta, um heráldico potente
em ferro como hefestos,
dá a cara de metal
de sua guerra titânica,

prata ou ouro,
metal cobre
na idade do bronze,
uma liga de aço
que arrebente
em verso!

26/11/2017 Gustavo Bastos

ESTRELA BAILARINA

De um livro que preparo,
com esmero :
os três capítulos iniciais
são introitos e prolegômenos
de como a ação poética
é desgoverno dos sentidos,
uma nau sofrida lhe encampa
as sensações marítimas,
e o riso frouxo e fácil
lhe intumesce a face rósea,
as plantas têm papel precípuo
e as raízes dão ao poema
a face de um arvoredo florestal
como um bosque de fauno
com origem no ditirambo,

os cinco capítulos seguintes
são separados por fases lunares
e estações climáticas,
aqui já se desenha a face do mundo
e a cosmovisão, o poeta amadurece
seus hemistíquios como um "lirista"
que corre trinta jardas como
um maestro ébrio e lúbrico,
o lirismo e o discurso são revesados
com um estro já de seu tempo,
já sem as leituras atávicas,
datadas ou anacrônicas,
o poeta aqui voa rápido
pelas veredas e astros sutis,

mais cinco capítulos, e o letrista
sonha e delira flechas e corpos
como tratados poéticos
numa dose crítica e politizada,
seu esmero e exigência galopam
num grande mundaréu de versos,
uma saraivada sonora e melodia,
uma melopeia, outra melopeia e ...
zás, um ensaio social
com correção teatral e ortográfica,
com uma gramática de revolta
e revolução, na subversão
da forma consolidada de sua época,
inaugurando um termo extemporâneo
não-identificável pelo meio editorial
que não lê os tais originais,
um sumo de poesia em marcha,
no entanto, é inexorável,
como um bote ou golpe de enxada
na cabeça dos maus pensantes
da crítica cômoda
ou breve,
o escândalo desperta
e no futuro é cânone,

os três últimos capítulos,
somando agora dezesseis,
são o epílogo e o posfácio,
agora com um canto dos malditos
como nota nova no cenário musical,
o poeta vira pedra filosofal
entre seu esmero e o fruto
e mérito de seu estro
montado em cavalos selvagens,
a poesia é fundada
por toda a paisagem,
como um autor
que dá a luz
a uma estrela bailarina.

26/11/2017 Gustavo Bastos

O AUDAZ ROTO POETA

Filosofia inconteste, um palmo
de crítica literária literal,
o sumo do fracasso
benquisto,

semeio as luas e mares,
oh corsários, venta tanto
no litoral, vem desvendar
o mergulho como sereia,

filosofia de corpo e alma,
o poeta é um maldito
de galochas, grita como
um iconoclasta
contra o furacão
da morte,
berra como um bezerro
diante da derrota,

ah, mas calma, poeta!
que teu numerário é público
e não paga nada!

26/11/2017 Gustavo Bastos

O SISTEMA ESTÁTICO

O claro ritmo da fotografia
anunciava em sete quedas
a presença do vizir,
seu governo de estatutos,
seu coronelismo enfadonho.

Na letra da escritura um contrato
amarfanhado de ilícitos,
pontes movediças no delírio
da contabilidade,
barrigas cheias do mais puro
desleixo,

as cortes trabalhavam, enfadadas,
no saco cheio das legislaturas,
seus acólitos, os desbravadores
do lodaçal, eram prosélitos
de ocasião na lentidão capital
das leis mal interpretadas,

supremo legal e caolho,
os despertos conflagrados
contra os espertos,
e o populacho admirado
do léxico castiço
de suas autoridades.

26/11/2017 Gustavo Bastos