PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 9 de abril de 2016

STÉPHANE MALLARMÉ, A POESIA NOVA DE VANGUARDA – PARTE III

“No poema de Mallarmé as miragens gráficas do naufrágio e da constelação se insinuam tênue, naturalmente”

Pode-se considerar, de acordo com Augusto de Campos, Un Coup de Dés (Um Lance de Dados) de Mallarmé como “o limiar da nova poesia”. E ainda segue a descrição precisa de Augusto de Campos sobre o acontecimento que foi este poema: “Mallarmé é o inventor de um processo de organização poética cuja significação para a arte da palavra se nos afigura comparável, esteticamente, ao valor musical da série, descoberta por Schoenberg, purificada por Webern, e através da filtração deste, legada aos jovens compositores eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen. Esse processo se poderia exprimir pela palavra estrutura”.
Ainda podemos dizer que tal inovação corre junto aos desempenhos e conquistas formais de Ezra Pound e James Joyce, e ainda o radical cummings, concluindo Augusto de Campos, com esta: “as subdivisões prismáticas da Ideia de Mallarmé, o método ideogrâmico de Pound, a simultaneidade joyciana e a mímica verbal de cummings convergem para um novo conceito de composição – uma ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de forma – uma ORGANOFORMA – onde noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo, tendem a desaparecer diante da ideia poético-gestaltiana, poético-musical, poético-ideogrâmica de ESTRUTURA”.
Mallarmé então é um dos primeiros poetas da História a fazer uma denúncia até então incompreensível, de que havia algo a demolir, e por uma razão radical: era o tempo novo da crise do verso e da linguagem. A esta consciência nova é que Mallarmé dá voz, usando em imagem o que o verso silogístico só poderia realizar de maneira prolixa, rompendo então com este nexo lógico para algo circular em forma de mosaico. Então, não é mais possível, a partir de Mallarmé, e sobretudo quando este faz O Lance de Dados, algum poeta que queira o novo não passar por este caminho aberto, como uma cruzada para o desconhecido, navegando para além do cabo da tormenta, nesta esperança renovada que Mallarmé soprou para os que viessem depois dele.
E, falando da poesia de língua portuguesa, por exemplo, não há como entender suas novas linhas de expressão de poesia moderna, sem lembrar de Mallarmé, pois sem ele não há como acessar o sentido desta nova poesia. Como diz Augusto de Campos: “Pense-se em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro (especificamente o Fernando Pessoa dos sonetos de “Passos da Cruz” e o Sá-Carneiro que, em defesa do cubismo, escreve ao primeiro: Entretanto, meu caro, tão estranhos e incompreensíveis são muitos dos sonetos admiráveis de Mallarmé. E nós compreendemo-los.) Pense-se em Pedro Kilkerry, em Drummond (o Drummond de “Áporo”, “Claro Enigma” e “Isso é Aquilo”), no João Cabral de “Anti-Ode” e “Psicologia da Composição””.
Em relação ao conflito do poeta com o mundo, Mário Faustino pontua: “A um mundo infame, como ainda é o nosso” (...) “Rimbaud, que o rejeitava, reagiu rejeitando também a própria poesia. Mallarmé, que o rejeita, reage, refugiando-se na poesia. Em todo um século ninguém é mais poeta; ninguém celebra e personifica mais que ele a dignidade, a nobreza, a divindade da Poesia; ninguém faz tanto da poesia um instrumento, um meio e uma justificação de existir” (...) “seus poemas são atos e são coisas”. E cabe mais uma observação de Augusto de Campos: “As experiências tipográficas funcionais, iniciadas por Mallarmé em Un Coup de Dés tiveram continuação muito menos lúcida, alguns anos após, com o Futurismo italiano e Apollinaire, para só se cristalizarem outra vez funcionalmente nas obras de Joyce, Pound e cummings.
A revolução tipográfica futurista, por sua vez, não foi marcada, portanto, por uma realização funcional da estrutura mallarmaica, pois era fruto de uma época de vanguardas, em que era comum rupturas retumbantes caracterizadas em demasia pelo excesso e inebriação, como um ímpeto artístico sem muita ciência ou direção. No entanto, coube a Marinetti e ao Movimento Futurista a prioridade, dentre as outras vanguardas, na afirmação decidida por uma nova tipografia. Pois já no seu “Manifesto técnico da poesia futurista (1912)”, Marinetti já se afirmava contra as limitações do diagrama da página, o que levava ele a vislumbrar a poesia contra tais fluxos e refluxos, poemas com cores, com rompantes tais como: “cursivas para as séries de sensações análogas e rápidas, negrito para as onomatopeias violentas”. Ou ainda: “Livre direção das linhas (oblíquas, verticais etc.), substituição da pontuação pelos sinais matemáticos e musicais etc.”
Pode-se perceber, contudo, que tais rompantes ainda careciam de algo mais sólido, pois havia muito de ingenuidade em algumas das vanguardas do século XX, ainda que fossem fundamentais para a ruptura com formas tradicionais de arte, tendo então ainda como efeito o fato de que no futurismo havia uma renovação poética que os próprios não realizariam inteiramente, embora fosse uma proposta com maior alcance de suas intenções que, por exemplo, movimentos como o dadaísmo e o surrealismo. Sendo uma realização muito mais eficiente, embora ainda com limitações, os Calligrammes de Apollinaire, o qual reconhecia seu débito com o futurismo, como o primeiro poeta a tentar uma explicação para a nova ordem poética pelo ideograma, mas ainda ingênuo, forçando representações figurativas, ideograma que ganhará foco e luz com Ezra Pound, este sim um poeta de ciência, que daria cabo do problema, pois era um homem mais culto, enérgico, amplamente dotado e informado, estabelecendo em definitivo a noção do método ideogrâmico aplicado à poesia.
Pois Pound chega a esta particular forma, assim como Mallarmé, partindo da noção de estrutura, e Pound a liga à música, mas tal noção de estrutura tem ainda mais felicidade com Pound, pois este a realiza com maior objetividade, e isto através do ideograma chinês. E tal junção da poesia com o ideograma é aplicado inventivamente ao gigantesco empreendimento dos Cantos. Nesse poema extraordinário, de fragmentos justapostos, Cantos a Cantos, sem ordem silogística, o poema vem completo, como uma imensa configuração de um fantástico ideograma da cosmovisão histórica poundiana. Um sentido de estrutura semelhante ainda realiza o poeta cummings, com todo o cabedal ideogrâmico e musical poundiano. Mas este usa mais da intuição, sem a consciência histórica totalizante de Pound, levando, cummings, tal estrutura para o lado oposto, o do ideograma e do contraponto à miniatura. Pois cummings prefere o “cromo lírico” aos grandes eventos histórico-culturais de Pound. E acaba fazendo uma obra com dimensões reduzidas, como um microscopista decompondo o léxico e chegando à estrutura básica do ideograma e do contraponto. E cummings ainda padece de um certo figurativismo, mas muito mais sutil do que o de Apollinaire, por exemplo.
Por sua vez, finalmente, depois deste passeio histórico-poético, falando do poema Um Lance de Dados, de 1897, “Un Coup de Dés” não é exatamente um poema de fragmentos, embora pareça, pois é um todo coeso de estrutura circular. As relações, como o dado e seus lances, acontecem num horizonte probabilístico, através de formas verbais condicionais e com futuros hipotéticos, numa vértebra epistemológica que ainda contém ablativos absolutos e gerúndios. O texto mallarmaico, portanto, evoca, suscita, incita, numa conformação geral em que o fragmento em si aparece como sentido sutil, forma fluida, de maneira mais topológica do que como uma imposição definida por uma pictografia exterior, tal imposição que ocorre, por exemplo, na maioria dos caligramas de Apollinaire.
Augusto de Campos deixa clara a diferença entre o pensamento visual de Mallarmé e a ideia caligrâmica de Apollinaire: “É certo que se pode indagar aqui do valor sugestivo de uma relação fisiognômica entre as palavras e o objeto por elas representado, à qual o próprio Mallarmé não teria sido indiferente. Mas ainda assim, cumpre fazer uma distinção qualitativa. No poema de Mallarmé as miragens gráficas do naufrágio e da constelação se insinuam tênue, naturalmente, com a mesma naturalidade e discrição com que apenas dois traços podem configurar o ideograma chinês para a palavra homem (...) Já em Apollinaire a estrutura é evidentemente imposta ao poema, exterior às palavras, que tomam a forma do recipiente, mas não são alteradas por ele.”
Como teoria da composição, uma hermenêutica de Un Coup de Dés (Um Lance de Dados) pode passar pelo sentido de que neste poema não há a abolição do acaso, não há sua elisão, mas a sua incorporação como forma e conteúdo, como o termo ativo do processo criativo. E encerra então Décio Pignatari: “Renunciando à disputa do absoluto, ficamos no campo magnético do relativo perene.” Tal é o roteiro, digamos, em que Mallarmé alcança um racionalismo construtivo, sensível, não científico, no labor sobre os dados da sensibilidade, um poema do acaso e da probabilidade de um simples lance de dados.

UM LANCE DE DADOS

JAMAIS
Mesmo quando lançado em circunstâncias
Eternas
Do fundo de um naufrágio
Seja
Que
O Abismo
Branco
Estanco
Iroso
Sob uma inclinação
Plane desesperadamente
De asa
A sua
De

Antemão retombada do mal de alçar o voo
E cobrindo os escarcéus
Cortando cerce os saltos
No mais íntimo resuma
A sombra infusa no profundo por esta vela alternativa
Até adaptar
À envergadura
Sua hiante profundeza enquanto casco
De uma nau
Pensa de um ou de outro bordo

O MESTRE
Exsurto
Inferindo
Dessa conflagração
Que se
Como se ameaça
O único Número que não pode

Hesita
Cadáver pelo braço
Antes
De jogar
Maníaco encanecido
A partida
Em nome das ondas
Uma
Naufrágio esse
Fora de antigos cálculos
Onde a manobra com a idade olvidada

Outrora ele empunhara o leme
A seus pés
Do horizonte unânime
Prepara
Se agita e mescla
No punho que o estreitava
Um destino e os ventos
Ser um outro
Espírito
Para o arrojar
Na tempestade
Repregar-lhe a divisão e passar altivo
Apartado do segredo que guarda
Invade a cabeça
Escoa barba submissa
Direto do homem
Sem nau
Não importa
Onde vã

Ancestralmente em não abrir a mão
Crispada
Para além da inútil testa
Legado na desaparição
A alguém
Ambíguo
O ulterior demônio imemorial
Tendo
De regiões nenhumas
Induzido
O velho versus esta conjunção suprema com a probabilidade
Aquele
Sua sombra pueril
Afagada e polida e devota e lavada
Suavizada pela vaga e subtraída
Aos duros ossos perdidos entre as pranchas
Nato
De um embate
As águas pelo ancião tentando ou o ancião contra as águas
Uma chance ociosa
Núpcias
Cujo
Véu de ilusão ressurto ânsia instante
Como o fantasma de um gesto
Vacilará
Se abaterá
Insânia
(Poema de Stéphane Mallarmé, tradução de Haroldo de Campos)

(obs: pela dimensão do poema, aqui está somente as duas primeiras partes do poema, e também não repliquei as diferentes formatações dos versos e palavras, que muitas vezes aparecem em caixas diversas e dispersos no papel, nos dois casos por razões de concisão, lembrando que sua leitura ideal, isto é, o poema, se dá sobretudo como experiência visual)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/28146/17/stephane-mallarme-a-poesia-nova-de-vanguarda-parte-iii 

domingo, 3 de abril de 2016

RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM CÃO DE DYLAN THOMAS

“Retrato do Artista Quando Jovem Cão, publicado pela primeira vez em 1940, é sua primeira obra editada no Brasil”
INTRODUÇÃO
Dylan Thomas (1914-1953) teve uma vida curta e intensa, trabalhando como repórter, profissão que lhe possibilitou viajar pela Europa e pelos Estados Unidos, sendo que, na Segunda Guerra, passou na BBC de Londres, e sua produção, como citei em outra resenha, tem dois momentos chaves: a poesia, com o Collected poems (Poemas reunidos) e o volume de contos que farei aqui uma pequena digressão, Retrato do Artista Quando Jovem Cão, que é uma espécie de versão própria do autor para Dublinenses de James Joyce.
Ainda em sua obra, em Dylan Thomas podemos ainda citar que ele fez romances, roteiros para cinema, e também documentários. Ele também foi referência no comportamento como um dos antecessores principais do que viria a ser chamada de a geração beat. Participou de movimentos, o que o levou a um tipo de sucesso que lhe permitiu ganhar prêmios literários, com inúmeras conferências em universidades, tornando-se uma celebridade, via pela qual ele seduziu seu público como escritor e homem de boêmia.
Retrato do Artista Quando Jovem Cão, publicado pela primeira vez em 1940, é sua primeira obra editada no Brasil, e é considerada um dos maiores exemplares da prosa poética de Dylan Thomas, com seu caráter moderno de narrativa ligada ao cotidiano autobiográfico do autor, que é uma literatura moderna, com a fonte de Dublinenses se tornado, contudo, outro exemplar original, mesmo com esta referência joycenana até no título do volume de contos.
AUTOBIOGRAFIA
A veia evidentemente autobiográfica do autor nestes contos se dá pelo fato de ser uma sucessão de acontecimentos que seguem a mesma cronologia feita por Joyce em Dublinenses, isto é, infância, adolescência e início da vida adulta. Os contos, que em Joyce podemos encaixar na narrativa realista e naturalista, por vezes, aqui com Dylan Thomas, contudo, temos algo como um apanhado que flerta com o surrealismo e o humor.
Escritor de veia sonhadora, Dylan Thomas é um escritor atento à sonoridade das palavras e de um estilo que ganhou um caráter totalmente pessoal, pois a literatura tem dessas noções que colocam o escritor num mundo referencial, ou seja, aqui os contos de Thomas partem da matriz joyceana, para ganhar o que o escritor na verdade busca: sua voz própria. E nestes contos Dylan Thomas toma Joyce no esquema (a sucessão das idades e talvez o tom autobiográfico) para depois ter em sua originalidade na fronteira surrealista e de humor que lhe dão o toque Dylan Thomas de escrita e estilo, que já não é nada o Joyce de Dublinenses.
Pois Dylan Thomas é daqueles fantásticos e surpreendentes autores que têm o raro dom de encantar e conquistar o leitor, deixando-lhe a ótima impressão de estar diante de uma obra fundamental para a literatura mundial, com esta intersecção irlandesa e inglesa que só uma biografia como a de Dylan Thomas produziu, e que na verdade é uma cisão entre Gales e a Inglaterra, o veio irlandês entra aqui como a face inspiradora das letras joyceanas. Sua obra é indispensável, e este volume de contos não está fora deste caudal original, que toma para si Joyce, e desemboca no si próprio autobiográfico chamado Dylan Thomas.
CONTO E POESIA
Pois um dos sentidos depreendidos é o de que a prosa de Dylan Thomas é um prolongamento de sua poesia, ou ainda, uma das vias que este caminho literário tomou para si, pois entre o conto e a poesia, não há necessariamente uma descontinuidade, os temas são parelhos numa mesma via ou caminho, pois quando lemos Dylan Thomas, temos o termo simbolista e moderno em sua poesia, e a matriz joyceana do cotidiano irlandês que logo se arvora em um caráter surrealista de pena própria, a escrita que ganha voz única, e na poesia e conto de Dylan Thomas falamos de uma continuidade entre uma matriz e outra, o escritor tem uma unidade firme em sua obra, tanto que se destaca em ambas.
A prosa de Dylan Thomas, portanto, é uma visitante de sua poesia, e é uma visita ilustríssima, com a mesma propriedade de sua poesia, não há queda de qualidade entre ambas, pois o escritor, para além até da prosa e poesia, mantém seu domínio e suas conquistas também como grande roteirista que foi, isto é, Dylan Thomas tem amplo território, e não se fez de pequeno, pois queria ser até “mais do que Keats foi”. Sua prosa, então, convive com sua poesia, e sua poesia lhe dá as entranhas do que serão os seus contos, isto é, quando se lhe conhece a tessitura poética, os contos são mesmo um prolongamento do que havia feito em versos, a mesma veia artística lhe possui do início ao fim em poesia, e que detona um caudal autobiográfico como prosa.
As short stories deste Retrato do Artista Quando Jovem Cão (cujo título pega velado tributo à influência que sobre o autor exerceu a revolucionária prosa de Joyce, embora Thomas evasivamente o negue), revelam um escritor em estado de contínua insubordinação contra cânones a princípio realistas (daí a possível ruptura com a matriz, por suposta, de Joyce) e contra os limites racionais que lhe impunham também os cânones sintáticos e vocabulares da língua inglesa, como se vê, por exemplo, em suas duas outras coletâneas de contos, ambas de publicação póstuma, Quite early one morning (Certa manhã, bem cedo, 1954) e A prospect of the sea (Uma visita para o mar, 1955), e em seu romance inacabado Adventures in the skin trade (Aventuras no comércio de peles, 1955).
O CONTISTA GALÊS
Os contos de Dylan Thomas, por fim, não são o Dublinenses de Joyce, e o título do Retrato não é o romance de Joyce, para ficar claro: Dylan Thomas parte de Joyce na forma dada, mas nem tanto, pois ele é escritor próprio, sendo a matriz joyceana um tipo de referência irlandesa para a sua escrita também irlandesa, neste sentido, como fonte, mas galesa na biografia, em estado de guerra contra os limites da língua inglesa, com a cisão biográfica do vivente Dylan Thomas, entre a Irlanda e a Inglaterra literariamente, e entre o País de Gales e a Inglaterra de fato na vida.
Nos dez contos que constituem esse tumultuoso e lírico retrato da infância e parte da adolescência do autor, se percebe a matriz irlandesa, mais do que a simplesmente joyceana, e que, contudo, se trata do cotidiano galês, o que se vê, por exemplo, na presença de sua terra natal, Swansea, e na verdade todo o País de Gales, com seus pormenores e personagens característicos. Ou seja: a escrita de Dylan Thomas parte de um imbricamento irlandês joyceano, uma vida profissional tipicamente inglesa, e uma história de vida nascida nas entranhas do País de Gales.
Dylan Thomas, se pudermos escolher dentre as três esferas culturais, diante de seus contos, ele é irremediavelmente galês, e de Swansea, e de uma vida nada inserida na língua inglesa, pois a Inglaterra aparece para Dylan Thomas como meio de vida e de futuro, mas seus pés não saem da origem galesa, daí sua originalidade, que lhe colocou à parte de sua própria geração, mas que não lhe condenou ao ostracismo, muito pelo contrário. Em Dylan Thomas: com Joyce se tem a Irlanda, ainda se tem a competição metafísica com Keats, uma juventude à moda Rimbaud, um meio de vida inglês, e uma vida literária com olhos voltados ao País de Gales. Este resumo coloca os dilemas e influências culturais que cercaram e fizeram a produção escrita de Dylan Thomas, mas ele é galês, sem dúvida.
O País de Gales aparece então neste volume de contos Retrato do Artista Quando Jovem Cão como a verdadeira matriz de Dylan Thomas, isto é, a sua vida de fato. Swansea, portanto, e nem tanto a Irlanda literária de Joyce ou a Inglaterra profissional de seus roteiros, é o que de mais forte se tem em sua literatura, sobretudo em seus contos. O mar e os bosques aos quais Dylan Thomas se refere, e que também estão em seus últimos poemas, configuram uma espécie de regresso cósmico às suas origens galesas.
MEMÓRIAS DO JOVEM CÃO
O “jovem cão” é a memória de Thomas que vira contos. Pois nos contos que envolvem este volume, tais como “Os pêssegos”, “Uma visita ao avô”, “A luta” ou ainda “Um sábado quente”, captam a veia própria de uma infância específica num lugar específico, que não é a grande Londres, é a pacata Swansea. E neste caminho dos contos se traça, desde a infância, um matiz de zombaria irônica de si mesmo pela sina solitária do jovem poeta rimbaudiano que quer ser melhor ainda do que foi Keats, e que não morre tão jovem, ou não abandona a poesia, como os dois citados, mas que terá na bebida, futuramente, sua fundação beat e sua morte aos 39 anos. O destino do poeta Dylan Thomas se transforma, em seus contos, em um regresso memorial à sua fonte galesa, a sua Swansea da infância e adolescência, e o que resulta nisso é um apanhado do cotidiano galês como expressão de arte, contos de poeta, pois.
Dylan Thomas jamais deixou para trás a consciência de seu destino retrospectivo, a alma de jovem poeta que não se esquece das praias, dos vales e das campinas galesas. Por outro lado, na sua técnica, seus contos de poeta, contudo, em se tratando como no caso de sua poesia, portanto, sua prosa aparece marcada por um caráter matizado e marcado pela experimentação, por acentuados traços surrealistas e pelo elemento supremo de surpresa que só os grandes escritores como Dylan Thomas são capazes de produzir, pois não há dívida com a prosa joyceana em seu caso, a estrutura infância-adolescência é um ponto de partida, mas seu ponto de chegada é original e de fonte galesa, não irlandesa ou inglesa, mesmo que sua literatura tenha pés também nestas terras.
Desde o primeiro até o último conto tem-se a observação e a percepção de que há uma evolução de seu estilo, de sua arte de narrar esses episódios que lhe marcaram a infância em Swansea, sobretudo o que encerra esta coletânea do jovem cão, o “Um sábado quente”, onde a memória ficcional de Dylan Thomas alcança seu estágio mais amadurecido, onde intriga, ação e personagens se delineiam com extraordinária propriedade, com pleno domínio de recursos, e algo que também está nos contos joyceanos, a concisão literária que não dá toque fora do lugar em matéria de ritmo.
CONCLUSÃO
Alguns incautos poderão dizer, por exemplo, que por se tratar de contos de poeta, estes escritos de Dylan Thomas são relatos que sofrem interferência excessiva de sua poesia ou veia poética, pois poderia haver neste caso o grande poeta que foi Dylan Thomas confrontando o tempo todo em seus contos o fato de ele ser originalmente poeta.
Oras, não há descontinuidade entre poesia e prosa em Dylan Thomas, mas isto não quer dizer que ele, como contista poeta, tenha feito de seus contos algo acessório em relação à sua poesia, não. A continuidade e prolongamento entre poesia e prosa em Dylan Thomas não é de uma noção acessória, é uma transposição entre técnicas diferentes que podem, no entanto, ter nuances semelhantes de estilo, mas Dylan Thomas é contista, e não só poeta. Poesia e prosa contínuas não são siamesas em técnica, são modos de expressão com propriedades próprias e que não fazem concessões entre si.
Pois tal continuidade entre poesia e prosa em Dylan Thomas aparece, pois sim, como uma virtude literária, antes do que uma suposta limitação, então não se trata de uma falha do escritor, mas de sua virtude ficcional em que o resultado é um fluxo narrativo que nos fascina e surpreende a cada instante, com imagens e situações às vezes estranhas ao linearismo discursivo da prosa tradicional. É mantido nos contos de Dylan Thomas, portanto, toda uma gama de habilidades a matizes que afirmam a propriedade do poeta sobre estes contos, o que resulta propriamente numa narrativa de magia poética que não é só poesia, é conto mesmo, com o conflito habitual de Dylan Thomas com os cânones linguísticos ingleses, e com toda a sua pertinente agilidade para diálogos precisos, pontuais e não gratuitos, num ritmo amiúde vertiginoso daquele que foi, por fim, “o maior poeta galês dentre todos os poetas maiores da língua inglesa”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/28045/17/em-retrato-do-artista-quando-jovem-cao-dylan-thomas-mergulha-na-sua-veia-autobiografica